domingo, 28 de setembro de 2014

Ego e Obrigado! Tchau!


Enquanto eu falava, visceral e hemofágicamente, pesados sacos de areia despencaram do alto e grudaram o veludo vermelho partido, um no outro, sacramentando o fim do medíocre e egocêntrico espetáculo. O show acabou, meus amigos, e não há nada mais para se ver por aqui.

O pouco que havia a ser dito, dito foi e, qualquer mais, é carência descarada ou, indiscreto pedido de socorro. De uma forma ou de outra, coisa feia! Tão, que soa falta de educação. Por isso, preservando-me um pouco, despeço-me, na escuridão das cortinas que se colidem em fim.

Embora, no meio do argumento e, muito embora, na opacidade do espelho de alguns holofotes. Creio que a máxima exposição (recente, pois, do ato anterior) seja suficiente para a vida de comodismo que virá, já que medíocre no sangue AB+, tanto quanto e nos versos C-. Parei!

Estou à beira do colapso, confesso. No deprimente limite de onde posso chegar, por isso, convalescente, reconheço atingir, depois de tanto esforço, mil léguas menos (ao menos) que pretendia, com minhas pretensas remadas. Morro débil, com mais água que ar, nos pulmões.

Por isso interrompo o semi-autocêntrico-monólogo, enquanto restam aplausos (dispersos e furtivos) na corriqueira plateia. Obrigado, minha gente! Não renego, nem mesmo alcoolicamente adulterado, o combustível que me propulsionou por (quase) cinco anos.

Quem diria! Quem, próximo a mim, diria que qualquer algo resistiria quase cinco anos no âmago das minhas sinceras vontades. Pois, vomitar meus pequenos literalismos ao mundo, resistiu tempo o suficiente para orgulhar-me do meu fracasso e, assim sendo, bêbado, brindo a mim!

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O Último Humano


Recuperava-se da primeira metade do dia mastigando, com dificuldade, um sanduíche frio. Concluiu que tudo era números. O mundo andava tão calculado e frívolo que a vida tinha se tornado mecânica e, o ser humano, convertido, finalmente, em máquina. E engasgou.

Seu sanduíche de baixas calorias parecia pesado, e tinha um gosto amargo. Seu terno de linho, de milhares de dólares, queimava seu peito e, a gravata de grife o estrangulava. A pressão subiu e já era hora de voltar ao pregão. “É tudo números!”, reiterou enquanto a bolsa despencava.

Bilhões foram para o ralo naquela fatídica manhã. Dólares e pessoas. Alguns poderosos, milhares de acionistas, milhões de operários. E Jesse. Jesse faliu meia América com uma única decisão. “São só números...” – Amenizou. “É tudo números!” – Confirmou, implacável, o ex-chefe.

Da rua, assistiu seus semelhantes indo e vindo de cabeça baixa, apressados. Imersos em seus aparelhos eletrônicos multifuncionais. Apenas ciborgues, desconectados da dilacerante angústia de Jesse que, rompendo o protocolo, mirou a imponente escultura metálica à sua frente.

Mergulhou de cabeça, violentamente, nas nádegas maciças do touro que exibia seus lustrosos bagos de metal, e explodiu o crânio em mais de três toneladas de puro bronze. Aterrizou agonizante, em seguida, jorrando seus miolos pela tumultuada Wall Street.

Absorto em sua própria convulsão, flutuou na imensidão negra que se encontrava e, com a energia de seus últimos espasmos, propulsionou-se para muito longe da Terra. O rosto desfigurado, não foi capaz de demonstrar, mas, por dentro, na alma, sorria. Aliviado, liberto e humano.

sábado, 20 de setembro de 2014

Outreu


Chegou a mim com a despreocupada pompa dos que não se importam - ou fingem - estar acima das carências de atenção daqueles que, na nossa idade, querem quase nada que não, só isso. Apresentou-se amigavelmente: “Carlos Francisco, mas, me chama de Carlão!” – Assim o chamei.

E rebati: “Carlos Francisco, mas me chamam de Chico...” – O nome, sim, era tão o mesmo quanto todo o resto. Exatamente! Carlos Francisco, o outro, tinha a minha cara em cópia, como todo o resto, na fisionomia. Acabamos amigos, porque, afinal, era impossível não ser amigo do Carlão!

Sujeito boa praça, polido, querido. Pensava comigo que, a bizarra versão melhorada de mim. Conversávamos muito e, sem que eu percebesse, estudava meus jeitos, meus métodos e hábitos. Apresentei-o à minha vida e, as pessoas, claro, adoraram-no irresistivelmente.

Não levou tempo algum até que eu, Chico, me convertesse a coadjuvante naquela dupla gêmea. Apócrifo do meu próprio círculo social. Carlão estava em todas. Indiquei-o a assistente na minha repartição e logo assumiu meu posto, consolidando o anonimato que já me era habitual.

Da mesma forma, arrebatou minha maravilhosa vizinha, paixão antiga que, francamente, nunca me deu bola. Até meus pais (PAIS!), estimavam o Carlão como o filho que nunca tiveram. Com tudo isso, toda a minha mediocridade escancarada, decidi, complacente que era a hora de partir.

Éramos tão próximos e iguais, que apenas deixei-o a cargo dos meus compromissos. Carlão imediata e primorosamente assumiu minha identidade de forma que ninguém deu falta da inutilidade minha. Ele mesmo, solicito que só, indicou meu destino, até o fim dos dias.


Tratava-se de uma espelunca, a muitas milhas de qualquer lugar, onde os hóspedes eram todos a versão errada de si. O ambiente parecia hostil no início, mas, eventualmente na televisão, o “outreu” de algum deles dava as caras, bem sucedido. E nesses dias, em festa, vibravámos todos!

domingo, 14 de setembro de 2014

Juca, Fruteiro


O Juca era um cara simples, desses que a gente chama de simples para não chamar de chucro. Juca era chucro, e essa era a verdade. Ele tinha uma quitanda humilde, em um bairro nobre, que recebia todo o tipo de gente. Era um cara simpático, apesar de discreto. E eu gostava disso nele.

Num dia desses, um dia qualquer, um casal à beira da terceira idade, discutia as injustiças do mundo quanto a noção de maturidade entre os gêneros. Estavam bem à minha frente, entre Juca e eu, escolhendo suas frutas e legumes e, divagando suas aflições a quem quizesse ouvir.

Era inevitável ouvir, ela dizia: “Acho ultrajante que envelheçamos, enquanto vocês, amadurecem! O mundo trata de nos empurrar à cova e ascendê-lo à sabedoria!~ - Creio que quem a ouviu, compactuou do desabafo. O patriarqusimo do mundo é triste e incontestável.

Mas o homem, prontamente, replicou empunhando uma tenra manga: ~A meu ver, tratamos os gêneros de forma diferente. Enquanto vocês são frutas, que logo atingem sua deslumbrante e suculenta maturidade, somos como garrafas de vinho, desprezadas até que se envelheça ~.

Nos entreolhamos envolvidos pelo diálogo. Juca, ao contrário, fazia seu trabalho de indicar e pesar os itens aos clientes. “Mas eu quero ser vinho, mereço ser vinho, não acha?” – “Acho! Acho sim, mas o mundo é o mais cruel dos articuladores. Talvez nossa netinha dê sorte...”.

Ela concordou decepcionada e, todos nós, nos decepcionamos um pouco. Juca não, manteve-se sereno. Na minha vez, apontei um cacho de uvas e ele, com sua indefectível discrição, provocou-me: “Sabe, o sujeito estava certo, homens são como garrafas de vinho e mulheres como frutas!”.

Espantei-me com a afirmação e não dissimulei. Ele logo emendou: “Mas quando um cara não envelhece ao lado da sua mulher, a mulher de uma vida, acaba garrafa e só. Oco e de vidro. É que o vinho, meu amigo, é fruto da fruta!” - Juca era um cara chucro, que sabia das coisas.

domingo, 7 de setembro de 2014

O Calor da Fé


No meio do deserto. Me sinto abandonado, bem no meio do mais extenso e árido dos desertos. Vagando cambaleante, dia e noite, a procura de qualquer gole dágua ou resto de comida que prolongue a vida e alimente a esperança de dias menos arenosos. São longos e solitários dias.

Logo adiante, um suculento cacto repousa com seus espinhos compridos e crocantes. O miolo tenro, aquecido pelo forno solar de quarenta e oito graus celsius, me lembra o delicioso assado que minha mãe costumava fazer aos domingos. Hoje, os domingos em casa parecem longe dali.

Da base mastigada do meu almoço, emerge uma adocicada e cristalina porção de água, o mais puro dos elixires, não abundante (nunca é), mas suficiente para hidratar, por mais alguns quilômetros, os pulmões maltratados pela areia fina ao redor. Sigo minha falida jornada.

Já nem sei mais em que direção, há tempos que me sinto andando em círculos. Creio, inclusive, já ter devorado o mesmo cacto algumas vezes. Regenerado e, irônicamente mais corpulento que eu, apesar das cicatrizes evidentes da minha dentição. O cacto parece não se incomodar.

Mesmo assim eu peço licença, toda vez, e agradeço no final. Como que cortejando-o por alimentar minhas esperanças, muito mais que o corpo. A areia fofa e escaldante, destrói minha articulações e grita, a cada passo meu, debochando da minha fé, no assado da minha mãe.

Passaram-se muitos anos e, a essa altura, minha mãe já deve ter morrido. Meu corpo está velho e cansado. Foram milhares e milhares de quilômetros sem rumo, e já não lembro como me meti nessa enrascada. Começo a pensar que é hora de desistir, mas, antes, veja. Um cacto, suculento!

domingo, 29 de junho de 2014

Brevíssimo Ensaio Sobre o Caráter


Algo se mexe no frio lago da luz. Existe uma força, por enquanto estranha, no centro do lago que agita a água e provoca leves ondas, sacolejando sutilmente as pedras da margem. Me aproximo e, do parapeito da ponte que adorna o lago artificial, percebo um algo quase irresistente.

É um corpo. Humano! Involuntariamente trépido, de frio e medo. E pelo avesso da face, deduzo, à beira do afogamento. Debruço-me sob a ponte e observo-o com todas as minhas ponderações: Faz frio, é fato! A névoa sob a água, a fumaça ao redor da boca, o orvalho madrugal e o capote.

Tudo denuncia o frio mais invernal e, enquanto isso, alguém se afoga. Estou apenas comigo diante da cena, mas, e se não? E se de mãos dadas com a futura mãe dos meus filhos? Atiro-me bravamente ao congelante lago e salvo o desconhecido? Aceitaria Hércules uma pneumonia?

E se, mais anônimo, deparo-me com um punhado de incapazes angustiados, acenando ao pré-morto no lago, atiro-me? Ou se, sob a lente de uma câmera do horário nobre? Ou pior, diante de pequenos e marejados olhos infantis dos filhos da vítima do lago? Quando é que me molho?

Quando é que, afinal, o altruísmo sobrepuja a vaidade? Julgando que, de alguma forma ou momento, sobrepujaria. A triste verdade é que, a vida de um possível suicida está nas minhas mãos, ou, pior, sob a tutela leviana da minha vaidade. E, faz um frio do cão, volto a ressaltar!

Estou sozinho no lago da luz no alto da madrugada e, agora os espasmos são menos frequentes. E cessam. Se alguém perguntar, eu nunca estive aqui! Amanhã pela manhã, quando a polícia e os jornais terminarem seu trabalho, estarei acordando, e aos olhos da lei, eu nunca estive aqui!

domingo, 22 de junho de 2014

Messias



Na superfície longínqua do mar sem ondas, emergem sete bolhas, perfeitamente cilíndricas e oxigenadas. Estouram em seguida, com respeitável vigor, diluindo-se anônimas na atmosfera. Essas pequenas esferas de ar jamais encontrarão, por conta própria, um novo par de pulmões.

Como quando tentamos, falidamente, preencher, por absoluta e bem intencionada prepotência, os pulmões murchos dos menos afortunados. Julgando-os incapazes. Não desinteressados, mas, incapazes. De condições melhores de vida. E cidadania. Julgando-os, afinal, menos afortunados.

Muitas vezes, ao longo da vida, misturamos o conhecimento teórico à completa falta de bom senso e metemos o bedelho na vida alheia, escoltados por um pedaço de papel timbrado, na expectativa de salvar o mundo! Como se ele estivesse, justamente, à nossa profética espera.

É de conhecimento geral que o mundo, vem dando suas indiferentes voltas desde que, homônimamente, é mundo. E muito antes do sujeito ter a epifania messiânica sobre as mazelas terrenas, ele já não dava a mínima. E tentou alertar, mais de uma vez! Mas todo herói é teimoso!

Com sorte, essas inúteis investidas trazem de volta não mais que algumas escoriações, físicas ou morais. Noutras, menos tolerantes, torna-o pauta de caderno policial que, pragmático ou lírico (dependendo da relevância em cifras), resume seu empenho em: “Morreu tentando!”.

Enquanto isso, Nathan, que era pós-doc em conflitos urbanos e transbordava disposição para mudar o mundo, desapareceu, nalgum beco da baixada santista. E jamais o encontrarão, pois, extinguiu-se, há pouco, em sete bolhas, perfeitamente cilíndricas e oxigenadas.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Tic-tac Grão de Areia


O tempo é, sem dúvida, o mais cruel dos tipos. Irreparável e vil, na cadência das luas que vêm e vão (coadjuvantes multifacetadas), e dos sóis que sobem e descem, dia após dia e que, apesar de qualquer céu, iluminam ultravioleticamente as profundezas da nossa sombria existência.

Só o tempo, e mais nada e nem ninguém, é capaz de impôr, cessar, sugerir ou exterminar possibilidades. Cada sol e cada lua em nossa vida, meus amigos, é o holofote escancarado das possibilidades diante de nossas débeis intenções. E somos, intencionalmente dementes!

Devotos dos nossos sonhos mais loucos e, reféns inválidos (e esquálidos) das nossas mais inúteis impossibilidades. Ainda que, em algum momento da vida, com as luzes apontando direções mais serenas e claras, escolhemos caminhos desiluminados, por puro capricho aventureiro...

Pois somos desbravadores da nossa própria teimosia e, apenas por isso, caprichosamente malsucedidos na vida (exceto as exceções, é claro!). Somos aqueles que se frustram pensando e que, lá na frente se dão conta que, talvez, fosse melhor do outro jeito. E eram só dois, os jeitos.

Mas já não o são, porque, apesar dos caminhos bifurcados, pernas para uma trilha apenas. E lá longe, com os joelhos duros e barulhentos,  com o corpo rastejante, temos no jeito alternativo apenas um vislumbre. O mesmo cintilante e bijutário vislumbre do equivocado caminho primo.

Enquanto isso, o tempo, algoz das más escolhas, deleita-se com as rugas no rosto e com o irreversível fracasso estampado no rosto. Somos metade carne (a dor, insustentável, em cada terminação nervosa) e metade sonho (o afago, onírico, no corpo transcendental). E mais nada!

Razão, é ilusão....

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Deus e Diabo na Terra. E o sol?


Subo o tom e digo, em dó maior, que é necessário, em vida, eleger Deus e Diabo, na Terra. Apesar de qualquer credo ou transcendentalismo. Em terra. Duas entidades rigorosamente imbatíveis, tão frágeis quanto você. E lhes digo por bem, após trinta míseros anos e, quase mais.

Mas não respeitem meus trinta por mais que os dez mil dias de vida que deixei para trás. Meu respaldo resvala neste único e micho argumento. Se menos que isso, aceite, de bom grado, o conselho a seguir. Se mais, conteste, cronológicamente, pelo direito de ensinar-me a vida.

Mas, até que me interrompa, desembucho! Pela epifania súbita dos supracitados eleitos. Creio em Deus como creio no papai do extremo norte, mas, decidi de estalo que, um Deus palpável, humano e eleito, é crucial para meu desenvolvimento moral, físico, intelectual e todo o resto!

Tal qual o Diabo. O antagonista sujo a todas as qualidades inatingíveis que, inútilmente, almejo. A verdade é que, pela bagagem que carrego, carrego comigo, há mais tempo e, muito mais sacramentado, o Diabo de mim. Aquele que espelho e dedico minha existência, ao avesso.

E, nem por isso, essencialmente ruim, mas irremediavelmente oposto, de mim. Apenas por ser quem é. Apenas para que eu não o seja. Creio, aliás, que seja seu papel maior, carregar o fardo de se impôr socialmente com tudo aquilo que desprezo. Meu Diabo é, na prática, meu desprezo.

Já Deus, meu dilema atêico, migra feito vírus, entre corpos cristãos e pagãos. Entre moralismos e ceticismos. Meu Deus é uma vadia fácil e transitória, enquanto, meu Diabo, reina confortável e insubstituível. Já o sol, bem, o sol segue no alto do céu, fervendo minhas ideias...

domingo, 8 de junho de 2014

Uma Puta no Balcão


Tocou ruidosamente o balcão com o copo vazio e acenou ao garçom que completasse a dose, depois pediu que dobrasse. Tinha o olhar vago e a respiração cansada, típica dos desmotivados. Bebericava sem pressa e assistia, inerte, as pedras de gelo diluírem-se lentamente na vodca.

Estava àquele balcão havia horas e, ao mesmo tempo, estava em lugar nenhum. Desde os últimos dez ou doze anos, tinha parado de contar. Era a perfeita definição do fracasso. Um emprego de merda e uma vida social de merda, especialmente após a separação. Nenhum filho.

Mas não se ocupava em punir a própria existência. Queria apenas suportar o fim de mais um dia ordinário. Vestia-se com a habitual gravata turquesa e a camisa branca de mangas curtas. O broche da concessionária e a carta de demissão amassada, denunciavam sua mediocridade.

Pretendia apenas um pouco de solidão antes de entregar-se ao pesado e agitado sono dos embriagados. Mesmo assim, aproximou-se sem cerimônias uma bela senhora: “A vida tem te tratado mal, meu amor?” – “Desde que me lembro, sim!” – “E que tal um pouco de diversão?”.

“Não sou do tipo que se diverte...” – “Isso não é possível, todo mundo se diverte de vez em quando!” – “Você acha? E tem alguma ideia?” – “Que tal uma foda, aqui mesmo, no banheiro masculino!” – “Claro, porque não?” – “E o que acha de acertarmos quinhentas pratas?”.

“Então terei que rejeitar, estou liso e demitido!” – “Você me entendeu mal... Estou te oferecendo dinheiro!” – “Espera, vou te comer e ainda ganhar uma grana?” – “Sim, comigo é assim. Te incomoda?” – “Nem um pouco... pervertida!” – “Ótimo, então me acompanha... puta!”.

domingo, 30 de março de 2014

Do que me Alimento



Estou todo lambuzado e estufo o peito para dizer! Sabe aquele bolo de mãe que você espera babando, sem nem deixar a cozinha, até que o bicho esfrie ao ponto de ser, categoricamente, devorado? Era assim que me sentia até ontem, pois hoje, sujo, saciado e todo lambuzado!

E que delícia! São só palavras, mas, analogamente, são também só raspas de chocolates... Me esbaldei! Tenho agora letras grudadas no rosto todo. Escorrem pelo pescoço e pousam na altura do coração. Sinto-me sinceramente alimentado. Cada um com seus nutrientes. Eu como letras!

Letras que se integram e se agororobam, que formam um bolo de palavras, indescritível e saborosíssimo. Um bolo de palavras que têm no topo, a cereja da personalidade. Não como-leio, necessariamente, quem deva ser comido-lido, mas, apenas quem me sacia na pança e no peito.

Vamos falar de amor! De sonhos e de todas as nossas angústias. Vamos desabafar como se confessássemos ao espelho nossos temores que, isso, me abre o apetite a ponto de roncar o músculo. Conta para mim o que se passa porquê, assim, outorgo o tempero da minha alma.

A fome se mistura a falta de apetite quando me alimento de porcarias, mas, quando como o nutriente certo, me sinto com as energias recompostas. Chego a arrotar, ruidosamente, o alfabeto inteiro. Pois eis o endereço, no topo da página, para garantir a veracidade do dito!

São só palavras, eu sei. Mas as palavras certas. Decidi (há pouco) mudar minha dieta e comer quase só o que me faz bem, apenas palavras, não conta lá em casa. Vou ao mercado sempre que a dispensa ocaliza, se atentem estimados, pois, quando eu chegar, por favor me alimentem!

domingo, 23 de março de 2014

Anoiteceu Dentro


É desesperador, mas, constato: está ficando tarde. Lá fora escureceu e, aqui dentro, também. Uma luz turva e fraca é o que me resta e não serve. Já não consigo ver e creio que a cegueira natal teria sido menos cruel, pois, olhos sadios no breu, são nada mais que falsa esperança!

E para quê diabos me servem as falsas esperanças já que, até mesmo as esperanças verdadeiras são perigosas? E que tremenda violência conviver com a memória dos dias claros. Os detalhes e a clareza do sol batendo na alma. A nitidez da auto-estima. Tão alta! As palavras que fluiam...

Hoje não. Olhos cerrados e veias saltadas em um esforço feio e medíocre para encontrar um qualquer enredo que mantenha os olhos iluminados. Agora é tarde, caros amigos. Está escuro e não há mais nada que possa ser feito. Talvez amanhã. Quando amanhecer amanhã, talvez...

Por enquanto noite! Uma longa e interminável noite. Fria e sem lua. Suaves tropeços e pequenos passos rastejantes no escuro me mantêm vivo. Mas não muito. De todos os sentidos, o que mais faz falta é o que me falta. Nenhum dos cinco perceptivos, mas, aquele etimológico e original.

Porém, reforço que enxergo! Envolto na completa ausência de luz, enxergo. Mesmo assim, é como se cego. Surdo, anósmico, ageunésico e anestésico. É como se morto, companheiros, se isso facilita a compreensão! Defino agora, do alto da minha derrota, que os dias claros se foram!

Bons. Mas extintos. Até que, quem sabe um dia, amanheça...

domingo, 16 de março de 2014

Suco de Banana


 Encaixo no lugar, toda a parafernália do meu espremedor de laranjas e separo uma penca de bananas. É um esforço dos diabos extrair suco de banana! Talvez, tivesse sido mais fácil espremê-las com os punhos, e claro, teria sido mais fácil ainda espremer laranjas. Mas não hoje!

Hoje tenho apenas bananas e uma sede que me resseca a goela e raspa a saliva de ponta a ponta na garganta. Acho que o nó que dizem que dá, não é figura de linguagem, afinal de contas. A sede exagerada e a falta do que beber criam uma espécie de caroço que trava até o oxigênio.

E cérebro mal oxigenado dá um barato estranho... Uma coisa muito louca, porque oca. No fim, deve ser isso, o fluído certo na boca, que empurre o caroço para baixo e desobstrua os pulmões. Fluído certo é laranja, eu sei, mas, que faço eu se apenas uma duzia de bananas nas mãos?

Espremo! Aperto e empurro. Pronto! Abaixo do espremedor, meia caneca de um creme esbranquiçado e feio. Em volta, vestígios do mesmo creme, espalhados por toda a cozinha. Meto o copo na boca, torcendo para que o pseudo-suco surta algum efeito positivo nessa sede súbita.


Mas a droga da papa de banana entala na garganta e corta de vez o tráfego de ar. Agora é tarde, em pouco tempo cairei roxo no chão frio da minha cozinha. Morto. De Sede e frustrado. Bananas? Que ideia! Que ideia? Como eu queria ser do tipo de cara que espreme laranjas...

sexta-feira, 7 de março de 2014

Odara


Odara costuma se gabar que fora Caetano quem a batizara! O próprio Caetano Veloso! Odara é filha única de Maria do Carmo e Maria do Carmo é fã de Caetano. Caetano não conhece Maria do Carmo, mas é fã de Talking Heads. E David Byrne, da tropicália. E ele conhece Caetano!

Mas Byrne não conhece Odara, a filha da Maria do Carmo. Caetano também não. Odara vive no Rio Grande do Sul e, Caetano, no Rio. Odara gosta de conversar e sempre se anuncia como afilhada de Caetano, porque todo mundo já ouviu Odara. Mas Odara não sai muito de casa.

Nessas férias, para variar, comprou passagens para o Rio. Não tinha nenhuma intenção de conhecer Caetano, mas, disse a todo e qualquer um que cruzasse seu caminho, que viajava para encontrar o “dindo” na cidade maravilhosa. Depois contava que fora Caetano quem a batizara!

No voo, sentou-se ao lado de um sujeito grisalho, que falava coisas que ela não entendia. Odara é péssima em línguas e o sujeito entendia muito pouco do português. Odara ainda tentou se apresentar por duas ou três vezes, antes de desistir do sujeito e se apresentar à comissária.

O homem aproveitou para pedir uma dose de vinho. Byrne, fizera um show em Porto Alegre na noite anterior e estava cansado. Agora, voava ao Rio para encontrar o velho amigo Caetano e, Odara, que distraía-se com a TV interativa do avião, não fazia ideia de quem era David Byrne!

sábado, 1 de março de 2014

Tobias e o Sonho de Sete Centímetros


Tobias era um cara simples, desses que são sinceros por pura inocência. Costumavam pensar que Tobias tirara a sorte grande em um concurso público, pois, batia ponto no Banco do Povo.  Só não sabiam que Tobias tinha um sonho e que, apodrecer num cargo estúpido, era sua punição.

Arquivista! Tobias era o arquivista da unidade em que trabalhava. O único arquivista de uma pequena agência na região periférica. Um cargo que exigia pouco e pagava para que ficasse sozinho a maior parte do tempo, como gostava. Tobias era simples, com um sonho apenas.

E já tinha, pelo menos, dez anos que Tobias metia-se por oito horas ininterruptas nos fundos daquela pequena agência, todos os dias de sua vida (exceto os dias santos), buscando apenas solidão. Nesse tempo descobrira que, solidão demais atrai atenção, e prezava pelo anonimato.

Por isso, todo ano, no fim do ano, os funcionários da agência organizavam uma típica confraternização que, a Tobias, parecia nada mais que um sádico ritual, necessário para determinar a paz ao longo do ano seguinte. Portanto, ali, socializa com seus colegas!

Uma vez por ano e só. Cerveja, amigo secreto, karaokê e toda a algazarra prevista para uma festa de fim de ano. Tudo o que abominava. “Como se o ano que vem estivesse a milhas de distância e como se fôssemos esquecer toda a merda dita aqui amanhã!” – Ele pensava.

Mas sorria e acenava positivamente. Definitivamente não entendia o ser humano. Toda vez, no alto álcool da festa, alguém o chamava para proclamar seu sonho. Enfaticamente dizia: “Queria ser ator pornô!” – “E o que te falta?” – Replicavam – “Cerca de sete centímetros” – Treplicava.

As pessoas riam. Quem o conhecia e quem não. E garantiam, todos, entre aplausos e acenos positivos, que Tobias era gente boa! Tobias, atônito, contribuía com um sorriso incrédulo, capaz de dissimular as lágrimas de uma imensidão inatingível, de apenas sete centímetros...

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Agnes

                                                               Arte: Cristian Girotto

Quando o celular vibra uma música pop randômica,  na cabeceira da cama, Agnes sabe que é hora de se levantar. O visor do aparelho acusa que em dez minutos serão seis horas e, talvez, falte tempo para todos os compromissos. A caminho do banheiro, Agnes confere sua agenda.

Reunião no colégio, tratamento de beleza e aula de culinária. Aula de inglês seguida de aula de francês. Natação, ioga, Pilates. Tudo antes do almoço. Agnes respira fundo e demoradamente, mal pode crer que esta são suas férias. O sol logo despontará no céu e não poderá aproveitar.

Um dia tão lindo... apenas não é justo. Em frente ao espelho, escolhe com cuidado os cremes, cada um para uma região do corpo. Esconde toda a frustração da vida sob uma pesada camada de base neutra, antes de se maquilar. Chapa o cabelo com uma máquina fervente e se veste.

Desce para o café, disposto colonialmente à mesa. Observa o pote de creme de chocolate na estante e se reprime com a promessa de evitar comidas gordurosas antes do fim de semana. Contenta-se com frutas picadas e leite frio, semidesnatado. Pensa na vida, tão semidesnatada.

Tudo é excessivamente calculado, para Agnes. Como se houvesse um propósito para tudo. Um aprendizado que não acaba. Um necessidade incansável de estar a frente, melhor que os outros. Reconhece a vida que leva como sua, questiona apenas a possibilidade de uma tarde no parque.

Junta suas pastas, bolsa, celular, agenda e segue com a governanta da casa até o carro de Jurandir. São sete horas e, como de costume, o chofer pergunta sobre seus afazeres: “Tanta coisa...”- Ela diz. “Êta menina dedicada!” – “É!” – “E vai ser o quê quando crescer?” – “Criança...”

domingo, 26 de janeiro de 2014

O Peso da Liberdade


Começou com meu marido. O tempo que durou entre o conselho e a insistência foi curto. Parecia realmente um problema: “Acho melhor, sei lá, você procurar um nutricionista!” – dizia ele, feito bom amigo. Eu podia sentir que a silhueta já não era a mesma. Por Deus, não sou cega!

Eu era capaz de perceber, na saída do banho, que minha juventude começava a se esvair pelos poros. Ele, aparentemente, não. A mim, parecia problema pouco. A ele, parecia problema! Pesquisou profissionais e convenceu minha família que era caso urgente e de saúde pública.

Eu estava gorda, ele dizia. Uma larga vida de sedentarismo e nada mais que dois filhos sem cesária. Era preciso tratar minha deformidade antes que fosse tarde. A barriga, as coxas e um tal de culote! Topei, pois, simplesmente amava aquele bastardo, parece que, mais do que a mim.

Meus pais e amigas me aconselharam a frequentar uma academia e dar um jeito de não perder o meu homem, que já não me procurava na cama, me fazendo ver a luz vermelha do nosso casamento piscar incessantemente. E as tais aulas de spinning eram terrivelmente chatas!

Quando, quase esgotada de tanta aeróbica inútil, fui a um especialista: “Você está acima do peso!” – “Acima? Acima do quê?” – “Do seu biotipo, oras!”- “Mas essa sou eu, sempre fui assim! O que dizem os exames?” – “Bom, parece que tudo vai bem, mas, precisa mudar a alimentação!”

Eu não precisava mudar a alimentação! A urgência era outra. Saí da consulta mais determinada que nunca e, em casa, cortei de pronto as sobras e perdí uns cem quilos maléficos: Marido, TV e padrões. Se me perguntam hoje, quanto peso, digo que o incomensurável peso da liberdade!

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Negociando Por Peso


Surgiu da dispersão de uma súbita nuvem de fogo, na alta cadeira de metal cromado à minha frente, do lado de lá da mesa. No lado de cá, um par de assentos talhados diretamente do tronco de um jequitibá ainda novo. Não eram confortáveis, mas, certamente, muito elegantes.

“Bem-vindo, jovem senhor, em que posso ser útil?” – A pele excessivamente vermelha me causava a estranha impressão do sangue fervilhando nas veias, buscando uma maneira de sair de lá. Eu quase podia assistir, indiscretamente, os glóbulos afobados, correndo em mão única.

“Dinheiro!” – respondi pragmaticamente, tentando disfarçar meu estranhamento. “Sua primeira vez aqui, não?” – “Sim...” – Não hesitei, deduzindo que tentar enganar aquele cara não traria benefícios aos negócios. “E o senhor tem alguma ideia de como funciona nosso banco?”.

Eu não tinha nenhuma ideia de como funcionava aquele banco de uma só agência, na parte baixa do centro da cidade: “Não, não faço a menor ideia...” – “E o senhor precisa de dinheiro?” – Transpirava um suor escuro, que manchava a camisa branca de botões e a gravata vermelha.

Era um tanto grotesco, mas, eu não tinha escolha: “Sim! De muito!” – “Não se preocupe, temos de sobra! E como pretende pagar?” – “A prazo!” – Ele riu da minha piada involuntária. “Pois teremos prazer em conceder-lhe o empréstimo!” – E pirofajou num estalo o contrato.

“Uau, é uma alta quantia! Mas não entendi as condições...” – “O senhor paga quando morrer. E não se preocupe, terá uma vida longa e plena!” – “Mas e o preço? Gostei das condições, mas, sinceramente, não entendi o preço!” – “Nada mais que vinte e um gramas, senhor!”.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Crianças...


- Que cara é essa, Bruninho?

- Estou irritado...

- Irritado? Logo é ano novo, será que dá para relaxar um minuto?

- Mas é o seu presente!

- Desculpa, meu amor, a gente resolve isso no ano que vem, bem no comecinho, pode ser?

- Para mim isso é coisa séria! Não consigo fingir que nada está acontecendo.

- Mas é só um jogo, Bruninho...  

- Para você! Esperei o ano todo por isso. Até mais!

- Videogame, Bruno! Vê se cresce! É só um jogo de videogame...

- É GTA V, caralho! Assassin´s Creed é “só um jogo de videogame”!

- Olha como você fala comigo!

- Desculpa, estou irritado! Isso nunca me aconteceu...

- Mas é uma besteira, o jogo está funcionando, não?

- Sim, mas, o encarte... É parte fundamental!

- Você quer que eu ligue na...

- Rockstar!

- Quer que eu ligue na Rockstar?

- Sim, quero, é um desaforo!

- Pode ser ano que vem?

- Não! Agora!

- Eles devem estar de folga, Bruninho!

- Dúvido! E merecem saber o que fizeram...

- Tudo bem, vou ligar na merda do SAC da empresa! Qual o telefone?

...

- Boa tarde, obrigado por entrar em contato com a Rockstar. Em que podemos servi-la?

- Alô, boa tarde! Gostaria de registrar uma queixa!

- Uma queixa senhora? Pois não!

- O jogo, GTA V, comprei de presente e o encarte, aparentemente, veio incompleto.

- Pode me passar o número de série?

- Sim, é 1234lalaralala5!

- Certo! Só um minuto! 

- Ok...

- Senhora, consta em nossos registros que o lote referente a esse número de série apresentou falha na impressão do encarte! Emitiremos um novo encarte personalizado, em nome do seu filho!

- Marido!

- Desculpe?

- É marido, não filho!

- Oh! Sinto muito..,

- Não se preocupe, apenas mande a droga do encarte! O nome é Bruno! E ano que vem, pode apostar, comprarei uma camisa para ele!

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Carniceiros


“Kellog, vem cá, meu filho! Traz para mim esse saco pequeno. Não! O preto, do outro lado. Isso, esse aí!” - O menino arrastou o pesado saco até ao alcance da mãe. – “Acho que tem coisa boa aqui, sinto o cheiro!” – De repente, estavam todos esperançosos e Gina rompeu o nó do plástico.

“Nada. Só lixo!” – Disse a moça, desconsolada com a falta de sorte. Philip Morris, seu marido, vinha lá de longe, por trás da pilha de entulho que se misturava à pilha de gente faminta e miserável. “Ei, moçada, encontrei salsicha na pilha lá de trás!” – Todos vibraram, esfomeados!

“Olha só Seara, é uma das suas!” – Disse Kellog à irmã, apontando para a lata amassada, suja de gordura e restos. Seara apontou orgulhosa para seu nome, estampado no almoço da família, e rebateu: “Faz tempo que um dos seus não nos alimenta, né, irmãozinho!” – Todos riram.

Ao longe, na pilha de gente e de lixo, uns se gabam de uma velha e enegrecida fatia de pizza, outros urram por um prato descartável, untado de pasta de maionese e uns grãos de farofa (sentem até o cheiro da carne). As crianças disputam, com as baratas, os potes de Danette.

Os que vencem a briga, herdam a alcunha do creme de chocolate, e recebem o respeito dos demais. É assim que se ganha um nome por aqui, como se fosse um título, como se valesse a propria honra nesse habitat hostil e esquecido pelos afortunados da mesma espécie.


Do alto da colina, observam horrorizados os urubus, esperando pelo resto da sobra dos que não têm escolha. Às vezes uma mísera migalha, noutras muitas vezes, um banquete de Kellog, ou Gina, ou Philip Morris ou Seara. Até mesmo os carniceiros estranham a inversão da ordem.