domingo, 29 de setembro de 2013

O Rouxinol da Minha Janela


 Pousava ao pé da minha janela, todo dia (apesar de sempre à noite), um ávido e intrépido rouxinol. Bicava o vidro incansavelmente, tentando me fazer despertar. Depois cantarolava algumas belíssimas notas que me tocavam a alma, penetrando a grossa vidraça. Aí ele partia.

Voltava no dia seguinte, no mesmo horário, e cumpria seu ritual. A verdade é que eu estava acordado e, com os olhos semicerrados, acompanhava a angústia daquela pequena ave tentando chamar a atenção. Já fazia duas semanas e eu tinha certeza que queria me dizer algo.

Por algum motivo que desconheço, resisti. Resisti o quanto pude às investidas do passarinho, mas gostava da sua visita diária. A música emitida por seu minúsculo bico não se repetia e era sempre encantadora, já a vontade de ser notado, estava em seus olhos, essa não mudava!

Levou mais uns dias e eu finalmente decidi que ele podia se manifestar. Esperei-o acordado naquela noite. Arrastei a poltrona para a frente da janela e levei uma meia garrafa de merlot comigo. Sentei e golejei direto do gargalo, sem pressa, até que fosse a hora dele aparecer.

Precisamente às três da madrugada, pousou, pela última vez, diante do parapeito da janela, encontrando-a escancarada. Ergui a garrafa em brinde e convidei-o para dentro. Surpreso por não ter o vidro bloqueando o caminho, aproximou-se em pequenos e excitados saltos.

Era pacificador ver o alívio em seus pequenos olhinhos de caroço de mamão. Ele então voou até meu ombro e me encarou profundamente. Em seguida disse: “Não tenho mais nada para lhe oferecer, e você?” – Eu não tinha nada a oferecer. Ele então voou janela a fora, para sempre.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Lá Fora


- Dá só uma olhada lá fora...

- É, acho que ficaremos o dia todo aqui!

- Vai ser um longo dia...

- Alguma ideia de como passar o tempo?

- Não sei, mas, se tivéssemos uma televisão...

- Besteira! Deve ter algum passatempo por aqui.

- Não. Só esses livros que, francamente, já me cansei de ler!

- Podemos cozinhar!

- Só temos congelados...

- Veja a rua, está deserta!

- E quem se arriscaria nessa tempestade?

- Fica bonita, sem o trafego intenso e as pessoas...

- É, fica.

- E se arrumássemos a casa?

- Não vai levar muito tempo...

- É mesmo um apartamento pequeno. Muito pequeno.

- Quase claustrofóbico.

- Em dias normais, não parece.

- Em dias normais estamos lá fora.

- Precisamos nos preparar para situações como essas.

- Precisamos é de uma televisão!

- Podíamos comprar um desses computadores que vêm com internet.

- Não saberíamos como usar isso!

- É, acho que não...

- Quer saber? Acho que devemos ir lá fora!

- Nessa chuva, você enlouqueceu!

- Sim, nessa chuva, vamos!

Tomou-a pela mão e desceu as escadas do velho prédio no centro da cidade. Incomodaram-se com a água fria no início, mas, logo passaram a se divertir com as poças e com as cascatas dos telhados do comércio ao redor. Eram apenas um par de idosos na chuva.

Aos poucos, toda a lamentação que ecoava de cada um dos apartamentos do velho prédio, embaçando a vidraça das janelas, diminuiu o tom, quase em constrangimento, até que desapareceu. Depois disso, a rua ficou repleta de pessoas ensopadas que sorriam..

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Quando Miranda Amou


Nenhuma protuberância havia jamais surgido involuntariamente daquele corpo jovem e esguio. Até mesmo as espinhas, na época da adolescência, pediam licença antes de brotarem daninhas em seu rosto angelical. Miranda era paz, e felicidade absoluta, apesar de incompleta.

Pois lhe faltava o amor. Não que faltasse de fato, afinal, não o conhecia, mas, já sabia há muito (mesmo sem saber) que o retumbante e imparável eco no peito, era o vazio ruidoso causado unicamente pela falta de um amor. Miranda não fez alarde, ou excitou um músculo sequer.

Pelo total desconhecimento de causa, manteve cada molécula do corpo em estado de dormência, poupava suas energias para aquilo que sabia fazer, já que não gostava do esforço em vão. Diziam que não se encontra o amor, mas, é encontrado por ele. E ela confiava.

Confiava, com o coração e com a segurança da paz que lhe era habitual, que o amor, um dia, beijaria sua testa com suavidade, cessando finalmente o incômodo vazio de si. Enquanto isso tinha a saúde em dia. O buraco do peito não aparecia nos exames e, portanto, tudo bem.

Até que veio. Alto, viril, dominador. Homem. Disritmou seu compasso cardíaco, sufocou-lhe os pulmões e anuviou sua vista. Fez surgir em seus raios-x, uma imensa mancha branca. Clinicamente – diziam os médicos – tinha o tamanho exato do amor! E pediram-lhe repouso.

Mas Miranda estava em estado terminal: Sofria de amor crônico. Acabaria sucumbindo a qualquer momento e, justamente num momento qualquer, quando convidada ao cinema, explodiu, numa viscosa profusão de órgãos e vísceras e sangue, tornando o mundo mais belo.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dalva


Há um azul no céu que, de tão infinito e, tão insólito nos tons, confunde a direção do prisma de nossos olhos deslumbrados, e transforma o azul multitonal em um impenetrável negro. Uma escuridão tão profunda que me coça a curiosidade: Quê há por trás da cortina do céu?

Um espetáculo, certamente reservado apenas aos que ousam atravessar o breu do desconhecido, absoluto em seus mistérios. E nada, arrisco dizer, pode ser mais fascinante que o além-Terra. Neil, Buzz e outros dez. Só. Os heróis do quase. No fim, só discípulos de Laika.

Ninguém, na verdade, foi capaz de dizer dos mundos de lá. Nem Neil e nem Buzz. A pobre Laika ou meu amigo Cauê, com suas divertidas teorias extraterrestres. Verdade mesmo, por ora, é que a tela cupular que me expõe o infinito, exibe nada, senão dúvidas transcendentais.

Dúvidas que me instigariam ao salto do alto do Himalaia, se isso me guiasse em sua direção, mas, minha noção de gravidade e a enorme falta de ousadia conservam essa frágil armadura em terra firme. Pregada e trêmula. Trincada de perguntas e, também, refém de respostas.

Que não virão ou, ainda pior, tardarão ao derradeiro desfile no pacato prado, enquanto visto roupas brancas e leves, dançando entre feras e anjos, completamente dopado! O céu será, eternamente, um monumento ao meu fracasso. Tão interminável quanto indecifrável.

Gasto horas, o observando penetrantemente de soslaio. Lhe confesso meus pecados mais ocultos, na esperança de uma simples confissão: Quê guarda, por trás da cortina? - E é quando beiro a desistência, que me entrega ela, musa, alva, Dalva. Aí me renovo, à sua procura!

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Células Sacanas e Leveduras



Herdo, pelo inevitável aprisionamento da espécie que me define em células e ego, algumas possibilidades nefastas. Sou humano e, por essa e outras razões, pertenço a incontáveis grupos de risco! Eu podia, por exemplo, ter câncer, mas, malandro que sou, prefiro ter sede!

Sou sujeito simples, digo, de gostos simples e, sede, me apetece mais que células mutantes se multiplicando desordenadamente em meu organismo. Simples, não? Ademais, sou avesso a quase todo tipo de tumulto. Porque tumulto, vira e mexe, dá câncer! E câncer, me cansa.

Prefiro mesmo a sede. Gelada e amenamente amarga. Dourada e borbulhante. Alva e cremosa! Colar? Toda a elegância de dois dedos e mais nada! Um só gole, no verão, e até a alma estremece refrescada! Quem, em sã consciência tem câncer se, tanta cerveja por aí!

Tão milenar que, sagrada. Amém! Renegada por romanos e por mim, lá atrás, mas, tempo que passa, sufoco romanices (sem blasfemar o rubro sangue do homem) e ergo a caneca (despudorado triângulo alcoólico-amoroso): “Saúde!” – Meu sincero desejo, a plenos pulmões!

Saúde para quem nunca teve câncer e, saúde, muita saúde, para quem teve. Saúde e sede! De cerveja. Se não, do que for! Beba! Deslize na boca o néctar mais refrescante. Se afogue de vida! E estremeça a alma. Beba o quanto puder, enquanto sedento. Mas nunca, de vida, sacie-se!