terça-feira, 31 de dezembro de 2013

No Reveillon


No último dia no ano que passou, estava quente feito o cão, um verão dos infernos! Decidi, então, abandonar de vez o maniqueísmo de mim e convidar, Deus e  Diabo, para relaxar num papo descontraído. Mandei-os ao boteco do Pulga, pois, minha garganta coçava por um trago.

Com pouco atraso, deu as caras o Capeta, sorridente e debochado, com a língua de fora. Cumprimentou-me feito velho conhecido, e deu-me um bilhete muito branco, riscado com letras angelicais: “Desculpe Fabiano, mas, no Pulga não vou. Te espero para um café. Att, O Pai”.

“Porra!” – Esbravejei do alto do meu segundo whisky – “Tive todo o cuidado de escolher um lugar nem cá, nem lá e o cara me vem com essa ladainha de que aqui não dá? Ouviu isso, Pulga?” – O dono da bodega consentiu, como se soubesse que Deus jamais apareceria por ali.

Ergui o copo ao Coisa-ruim e ofereci um brinde ao ausente. Ele, excitado pelo deboche ébrio, ergueu seu copo em direção ao meu e, com a outra mão tragou inesitante, o copo cheio que separei para Deus, antes dos dois chegarem. “O primeiro é do santo!” – Disse ele gargalhando.

“Aê Pulga, vai enchendo que é por minha conta!” – Ordenou o Sete-peles, como se amigo do cara. Olhei desconfiado. “Vira e mexe tô aqui, recrutando umas almas bêbadas e fáceis de levar.” – Pulga acenou positivamente, ouvindo a conversa de cabeça baixa, enquanto lavava uns copos.

“Porra, Deus é foda...” – Disse eu magoado, já no próximo estágio da bebida. “Pois é, meu velho, o cara só dá furo! Tu tem que fechar comigo. Aqui é parceria mesmo. Chamou eu vou!” – Ofereceu, oportuno, o Anjo-caído, tentando me convencer às trevas. Abracei-o afetuosamente.

“Cara, gosto para caralho de você!” – Soltei, sincero e de língua mole – “E também tenho o maior apreço pelo cara lá de cima!” – Ele assustou e, marejou os olhos – “Mas não vou contigo, porque, na prática, não acredito no trampo de vocês...” – O fiz, então, chorar feito uma criança bêbada.

“Ei, ei!” – Afaguei-o – “Não quer dizer que não podemos tomar um goró de vez em quando! Tu é bacana, bicho! Só que essa coisa de céu e inferno, para mim, é uma besteira sem tamanho. Mas olha aí, esse monte de babaca bebendo, loucos para serem convencidos em subir ou descer!".

“Comigo é isso!” – Continuei, buscando concluir – “Um porre contigo e um café com Deus. Topa?” – Ele acenou positivamente, enxugando as lágrimas dos olhos, e eu me despedi. Pedi ao Pulga que pendurasse minha bebida na conta do Capiroto, e empurrei a porta de saída.

Era meia-noite e os fogos da virada brilhavam no céu, iluminando o letreiro do bar: Pulgatorium – “Dava uma foto boa!” – Pensei, cambaleante. No ano seguinte, acordei em casa, sem saber como tinha chegado lá e, a foto do boteco, em meio aos fogos, era tudo que eu lembrava...

domingo, 29 de dezembro de 2013

Eterna


Trançou as pernas, valendo-se da adorável sensualidade das tímidas, e ajeitou o cabelo. Sorriu, no deck patinado, e posou. Atrás, o oceano. Dava as costas para o oceano, como se não percebesse o infinito ao redor. Como se ele não estivesse lá. O infnito. Ela só não se importava!

Com o infinto, embora, reconhecesse o imponente bico de mar derramado ante os ombros. Naquele preciso momento, pretendia nada mais que a leveza da vida, apoiada num par de pernas trançadas, agraciada por um sorriso terno e contemplativo. Essa era ela, naquele cenário.

A pele branca, lisa e macia, misturava-se ao deck rajado de branco e ao céu pálido, coberto de nuvens. A água refletia o branco do céu. Era tudo tão claro e sem cor, tão aparentemente sem vida que, só ela, com seu vestido preto de bolinhas brancas e espírito leve, valia a paisagem.

Era a paisagem, ela. Pesada feito uma pluma, dona de si. Dizem que a porção de água que vem do alto-mar e bate na costa, volta para o oceano e se perde, no infinito. Jamais seria infinita. E não queria, porque naquela foto, com seu sorriso leve e suas pernas brancas, era eterna.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Chove na Lua


No chão rachado, nem sinal de água. A terra seca e craquelada traz nela uma beleza sórdida e sedenta. Plástica, mas, tão sombria. Fabiano está estatelado, a meio caminho de qualquer lugar, em todas as direções. Nada que faça, fará com que sobreviva, no agreste do mundo.

Está exatamente em lugar nenhum. Distante das câmeras da TV e da importância que as pessoas dão aos dramas alheios. Fabiano observa o quilo de carne seca no chão e as duas peças de rapadura caídas pelo caminho. Alguém dará falta da carne quando ela não estiver lá.

Na dispensa arejada e assombreada de alguém que não costuma ter fome. A família de Fabiano terá mais fome. Quando a rapadura melar o solo seco do sertão, terão mais fome ainda. E os mocinhos da cidade se queixarão da sobremesa ausente depois que o prato limpo.

O sol castiga o solo e a pele, no deserto sertanejo. E a pele de Fabiano já apresenta os mesmos sintomas da terra. Ressecada e rachada, estão quase fundidos. O tempo se estende, lentamente. E se esgota, lentamente. Morrer, dura quase mais tempo que a própria gestação.

Uma gota d’água e nada disso seria necessário. A sede, o sufoco e a insolação, inexistiriam. Apenas uma gota para uma outra história. Mais verde e azul, menos opaca. Menos crua. Anoitece na terra do abandono. O sol vai embora. Ninguém fica. Nem Deus, nem os urubus.

Sobra apenas Fabiano no breu absoluto. Um escuro frio, que o refresca e mata, sadicamente e sem nenhuma pressa. Sobra junto, a respiração ruidosa e roca de seus pulmões empoeirados. É sábado, e a vida segue ao redor do mundo. A mesma vida desidratada e anônima do sertão.

No alto da noite, desponta no céu um semiastro luminoso. É a lua. Cheia. Um holofote espectral que reascende as fendas do chão e evidencia carcaças esquecidas ao tempo. Fabiano já é quase a carcaça de si e, entre medos e delírios, percebe que, lá em cima, na lua, chove...

sábado, 14 de dezembro de 2013

Beneficente


Depositou o copo meio cheio (de água) sobre a mesa. Delicadamente, para que não esbarrasse em nenhum outro artefato da elegante mesa. Prezava pela discrição e, com todo cuidado do mundo, perguntou: - Arnaldo, será que isso vai dar certo? – Arnaldo se mostrou confuso.

- Nós dois, você diz? – Lorena acenou positivamente. Ambos tomaram mais um gole de suas águas (em absoluto silêncio) e logo o garçom apresentou o vinho. Arnaldo autorizou que fosse servido. Brindaram, como se brindassem pelos ali presentes, e tragaram a taça de uma só vez.

- Acho que não, Lorena! – Ela engasgou suavemente, como se, quase surpresa. Se entreolharam, buscando algo que os fizesse dissuadir do fracasso iminente daquele jantar. – E o que você sugere? – Francamente? – Sim – A lagosta! – Me refiro a nós dois! – Ah sim. Mais vinho!

Lorena tratou de acionar o garçom e Arnaldo, batendo displicentemente com o indicador na garrafa vazia, solicitou outra. E lagostas. No fim do jantar (e da quarta garrafa de vinho), Lorena parecia menos reticente e ousava exibir seu sorriso aos demais, naquele jantar beneficente.

- Me sinto o centro das atenções, todos nos olham! – Creio que seja um bom sinal, beba seu vinho! – Lorena virou, num só gole, a décima (ou décima primeira) taça e gargalhou ruidosamente, chamando toda a atenção no enfadonho evento. Depois brindou, de taça vazia.

Uns pareciam constrangidos com a senhora de sessenta anos, à mesa com um garoto de vinte e poucos. Outros pareciam discretamente contrariados. Lorena, recém traída (e divorciada), só parecia feliz, e realizada, com seu garotão. Como se representasse toda uma categoria.

Não representava e, antes de ficar aborrecida com os julgamentos vizinhos, tratou de contribuir com a causa (com a admirável e habitual generosidade) e levar sua sobremesa para um motel, perto dali.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Pode Ser


- Oi, essa cadeira tá vaga?

- Claro! Digo, tanto faz.

- Vem sempre aqui?

- Não. Primeira vez. E você?

- Toda semana!

- É de onde?

- Bujari. Interiorzão do Acre. Você?

- Camaquã. Rio Grande do Sul.

- E tá fazendo o que aqui, na capital?

- Trabalhando. E você?

- Pós-doc na federal. Artes Visuais.

- Interessante.

- É sim. E sua área?

- Nada interessante. Bancária. Pelo menos a grana é boa!

- É, artes interessa, mas, dá grana nenhuma!

- Se precisar de um empréstimo...

- Se precisar de uma escultura barroca...

- Ah! Esculturista?

- Entre outras coisas. Gosta?

- Na verdade não.

- Sem mágoas, também não gosto de bancário!

- Mas gosto de teatro!

- Acho um porre!

- E gosta do quê?

- Música. Samba e choro.

- Tenho nenhuma paciência para ritmos nacionais.

- E ouve o quê?

- Clássico. Jazz.

- Imperialista!

- Ah! Música boa te incomoda?

- A burguesia me incomoda!

- Meu querido!

- O que foi?

- Temos nada em comum!

- É. Nadica de nada!

- ...

- ...

- ...

- Então, acho melhor eu ir embora...

- Pode ser. Espere! Torce para que time?

- Odeio futebol!

- É, acho melhor você ir embora.

- Eu vou, mas antes, por curiosidade, quer transar?

- É... Pode ser!

sábado, 30 de novembro de 2013

Alma Gêmea


As vezes nos convencemos que existe sim, nalgum ônibus lotado ou qualquer outro buraco imundo, a tal da alma gêmea! A minha estava por aí dando sopa, e eu a encontrei. Acreditem! Não tem muita gente disposta a sair na noite para não conhecer ninguém. Eu tenho. Ela também!

Foi assim que aconteceu. Numa dessas noites, ela se esparramava no balcão de um boteco barato que eu costumava frequentar. Sozinho e sozinha. E bebia vodka com coca. Me aproximei com um copo baixo molhado e raso de whisky ruim. Não disse nada, só me aproximei. Por esporte, talvez.

Percebi que afastava todos os caras que se apresentavam. Ora mostrava o dedo médio, ora mandava-os à merda. Sempre decidida. Estava apenas tentando beber sua bebida sem conversa fiada. Cutuquei-a com as costas da mão: - Moça? - Escuta otário, vê se me deixa em paz, ok!?

- Foda-se! Sua bolsa tá no chão... - Ah, obrigado! - Foda-se! - E ficamos curtindo o constrangimento daquela situação mais um tempo, até que as bebidas acabaram.  Ficamos encarando os copos vazios, de braços cruzados, até que o garçom tratou de enchê-los.

Um whisky ruim dá, no copo, um efeito mais bonito que um whisky bom. É mais turvo, mais denso e oleoso. Tão artificial. Acho que é assim com tudo. O eterno esforço em ser aquilo que não é. Refleti calado. Enquanto isso, ela tinha voltado a descartar seus pretendentes bêbados e estúpidos.

Tinha nos olhos a exata expressão do desprezo. Como se cauterizada, depois de mutilada por um grande e verdadeiro amor. Até nossas cicatrizes pareciam sincronizadas. E estávamos ali, tentando  sacramentar a mesma busca pela solidão. Era, definitivamente, minha alma gêmea!

Eu tinha que fazer algo e, quando tive certeza que não me via derreter-se, paguei a conta. Só a minha parte. Peguei sua bolsa no chão (novamente) e, sem falar nada, pendurei-a na cadeira. Virei as costas e, apaixonado, fui embora sozinho. Depois disso, nunca mais apoiei os cotovelos no balcão daquele bar!

sábado, 23 de novembro de 2013

Vermes da Minha Vida


Tempos atrás, depois do banho, notei uma mancha, escura, estranha e brotada da noite para o dia no meio alto da minha bochecha direita. Era feio e muito feio, mas, até então, só feio. Percebi, após muito enxugar, que não sairia e, para preservar a vida social,  disfarcei com barba.

Funcionou por um tempo. Os pelos todos trataram de dissimular minha marca erijonhsoniana e preservaram o acolhimento que a noite me dava. A noite, sempre foi mais amiga e mãe que o dia. Até que um cheiro! Forte e fétido. Pútrido, na prática. Nem eu suportava lidar com aquilo.

As pessoas ainda me respeitavam, mas, não disfarçavam o nojo que era estar perto de mim. Lembrei daquela mancha e tirei toda a barba. Um buraco a havia substituído. Grande como uma boca. Colonizado por vermes, brancos e famintos. Determinados. Um deles olhou pra mim!

Me convenceu, com seus gordos filos, que o hospedeiro de toda aquela cena grotesca era eu. Que minha carne era mero combustível. Levou, ainda, muito tempo, até eu perceber que havia passado tempo demais. A cara já estava tomada por vermes e o corpo todo era um banquete.

De fronte ao espelho eu jazia, vivo e nu, vislumbrado com a atividade incessante dos meus pequenos parasitas. Havia beleza em assisti-los, proliferando-se e engordando às custas da minha ínfima vida. Eu morri, meus caros! E admitir isso é o ponto alto da minha existência!

Cedi mesmo. Porque julguei justiça maior na vida dos vermes que na minha. Havia propósito no que eles faziam e propósito nenhum no que eu fazia. Simples! Vida medíocre de escritório e supermercado não merece durar. Venero os vermes, tão belos e eficientes em me decompor.

Já não existo mais e não me importo, aliás, muito obrigado pela nefastia artística da despedida, vermes da minha vida.

domingo, 17 de novembro de 2013

A Densa Mata Baldia


Parece daninha, já que cresce irregular por todo o redor, espalhando a camuflagem que enegrece, vagarosa e precisamente, meu universo particular. Essa mata que protejo, dissimula um qualquer algo sombrio, já há muito escancarado nos traços mais óbvios do meu rosto.

Brota, imponente e irrefreável, do jardim da frente. Formando uma espessa barreira às trilhas projetadas a me guiar entre as flores. Não sou um entusiasta das flores. Não! Convalesço apenas por elas, coloridas e cheirosas e fincadas no chão, sujeitas ao abandono assassino do homem.

Por isso então, brota de mim a mata densa. Barreira, escudo e cerca. A negra mata do ostracismo e seus espinhos imaginários. O selvagem capim escuro que desconhece foice, enxada, rastelo e creme mentolado. Se espalha por cada poro e cada clareira, conquistando todo o território.

Vertiginosamente vertical. Dominando-me e abandonando-me de mim. Aí que reservo-me bicho. Ao arremesso dos restos, à presença dos ratos. Aos entulhos. Tenho cada vez mais, uma expectativa menor. Cresce o mato e vão-se as portas e portões. Ficam cobertas as janelas.

Até que só mato. E eu lá dentro, esquecido. Envolto nas grossas e rudes folhas de capim-preto (alguns albinos). Aí, enfim, baldio! Inculto, ou, analogamente, incultivado. Tão impenetrável que, em seguida, floresta! E finalmente não mais um insignificante terreno improdutivo.

Agora, propriedade ambiental! Patrimônio! Da humanidade! Sim, isso significa que de todos vocês! A improdução canonizada. A vida eterna que almejei com muito desleixo e falta de vontade. Enquanto penso, e desconverso, ouço o mato crescendo silenciosamente em mim.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Post Mortem


Tenho uma estranha relação com a idolatria. De aversão, quero dizer. Sinto, aliás, uma enorme desnecessidade em admirar qualquer dito cujo por quaisquer que sejam seus feitos na Terra. Mas me refiro, exclusivamente, aos massissamente admiráveis (da TV, internet, palcos e discos).

Uma pura mesquinhez, não hesito em confessar. Inveja grossa dos que chegam lá e agarram, com garras afiadas, os sonhos que são também meus. E que morrem sonhos, em mim. Aí dou pouca importância mesmo. Apenas pela arrogância de não ser eu, brilhando lá, no mundo real.

Já aos mais próximos, é justo dizer, guardo genuína simpatia quando das próprias realizações. E não por que estive lá, acompanhando de perto o que pretendiam fazer e fizeram, mas, por que estive lá, torcendo em ser alguma nota de rodapé na biografia, pela colossal influência exercida.

Aqui dentro, jovens, do lado de onde encaixoto sonhos que não realizo, dou confortável morada a uma criança insegura e egocêntrica, desesperada por atenção. Que se ampara comensal, feito rêmora faminta, no sucesso alheio. Afinal, claro, preguiçosa demais para si. Graças, amigos!

Aí eles morrem! Não, não os amigos! Esses firmes e jovens e fortes (mesmo os enfermos), mas, as celebridades. Essas, invariavelmente, morrem. E só então sou capaz de reconhece-los mito. Como Reed, por exemplo, meu mais novo ídolo Post Mortem. E levei só quinze anos para ceder.


Por que desde sempre esteve lá a banana wahroliana. E eu preferi outras coisas. Coisas tão menos sinceras que o Velvet. E que Lou Reed. Coisas, as vezes, tão estúpidas e vazias. Lou deu sua vida por coisas boas. Eu devia ter dado conta antes. Antes dele dar ao mundo, sua morte.

Lou Reed * 1942 - 2013

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Ah Se Eu Fosse Uma Toupeira!


Para que servem os olhos se, socadas na terra a vida toda? Cegas da calamidade humana. Iluminadas pela escuridão divina ante as frivolidades do homem. Eu que, irreversivelmente humano, e que, afortunadamente pouco míope, vejo, triste, humanos esbanjando humanidade.

Com seus (muy bien definidos) conceitos de autossuficiência e de fodessência aos demais que compartilham da espécie, bradando: “Tem mais é que se foder!” – Qualquer um e todo mundo, eles dizem: “Têm mais é que se foder!” – “Menos eu! Eu não mereço me foder nem fodendo!”.

Penso nas formigas em fila, nas hienas em bando, nas araras monogâmicas e, PORRA, tanto bicho se autocooperando e fui logo evoluir à espécie mais autocêntrica do planeta? Amebe-me! Planarie-me, ou, mamiferamente (que adoro leite), touperize-me! Me cave um buraco e deixa!

Deixa que lá embaixo tomo rumo. E vou longe. Cavo adiante e profundo, distante das guerras e disputas que dividem minha espécie prima. Aquém das estupidezas que definem meu reino, classe, filo, ordem e etc. Me permita levantar a fuça aos berros: “Eu sou uma toupeira!”. E é só!

Tem gente humana querendo megasena. Gente em busca de uma medalha de ouro e, gente desejando ser melhor do mundo nalguma coisa. Mas quem melhor que um igual a não ser que, exclusivamente, mais dedicado? E se próprio suor, só mérito pessoal e, nunca, demérito alheio.

Triste é o homem que crê na ilusória sapiência do poder infindável. Com aquela clarividência arrogante dos deuses. Formigas, hienas e araras reconhecem-se formigas, hienas e araras. Nós não. Nós, simplesmente, não nos reconhecemos. Ah se eu, cego, fosse apenas uma toupeira!

domingo, 29 de setembro de 2013

O Rouxinol da Minha Janela


 Pousava ao pé da minha janela, todo dia (apesar de sempre à noite), um ávido e intrépido rouxinol. Bicava o vidro incansavelmente, tentando me fazer despertar. Depois cantarolava algumas belíssimas notas que me tocavam a alma, penetrando a grossa vidraça. Aí ele partia.

Voltava no dia seguinte, no mesmo horário, e cumpria seu ritual. A verdade é que eu estava acordado e, com os olhos semicerrados, acompanhava a angústia daquela pequena ave tentando chamar a atenção. Já fazia duas semanas e eu tinha certeza que queria me dizer algo.

Por algum motivo que desconheço, resisti. Resisti o quanto pude às investidas do passarinho, mas gostava da sua visita diária. A música emitida por seu minúsculo bico não se repetia e era sempre encantadora, já a vontade de ser notado, estava em seus olhos, essa não mudava!

Levou mais uns dias e eu finalmente decidi que ele podia se manifestar. Esperei-o acordado naquela noite. Arrastei a poltrona para a frente da janela e levei uma meia garrafa de merlot comigo. Sentei e golejei direto do gargalo, sem pressa, até que fosse a hora dele aparecer.

Precisamente às três da madrugada, pousou, pela última vez, diante do parapeito da janela, encontrando-a escancarada. Ergui a garrafa em brinde e convidei-o para dentro. Surpreso por não ter o vidro bloqueando o caminho, aproximou-se em pequenos e excitados saltos.

Era pacificador ver o alívio em seus pequenos olhinhos de caroço de mamão. Ele então voou até meu ombro e me encarou profundamente. Em seguida disse: “Não tenho mais nada para lhe oferecer, e você?” – Eu não tinha nada a oferecer. Ele então voou janela a fora, para sempre.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Lá Fora


- Dá só uma olhada lá fora...

- É, acho que ficaremos o dia todo aqui!

- Vai ser um longo dia...

- Alguma ideia de como passar o tempo?

- Não sei, mas, se tivéssemos uma televisão...

- Besteira! Deve ter algum passatempo por aqui.

- Não. Só esses livros que, francamente, já me cansei de ler!

- Podemos cozinhar!

- Só temos congelados...

- Veja a rua, está deserta!

- E quem se arriscaria nessa tempestade?

- Fica bonita, sem o trafego intenso e as pessoas...

- É, fica.

- E se arrumássemos a casa?

- Não vai levar muito tempo...

- É mesmo um apartamento pequeno. Muito pequeno.

- Quase claustrofóbico.

- Em dias normais, não parece.

- Em dias normais estamos lá fora.

- Precisamos nos preparar para situações como essas.

- Precisamos é de uma televisão!

- Podíamos comprar um desses computadores que vêm com internet.

- Não saberíamos como usar isso!

- É, acho que não...

- Quer saber? Acho que devemos ir lá fora!

- Nessa chuva, você enlouqueceu!

- Sim, nessa chuva, vamos!

Tomou-a pela mão e desceu as escadas do velho prédio no centro da cidade. Incomodaram-se com a água fria no início, mas, logo passaram a se divertir com as poças e com as cascatas dos telhados do comércio ao redor. Eram apenas um par de idosos na chuva.

Aos poucos, toda a lamentação que ecoava de cada um dos apartamentos do velho prédio, embaçando a vidraça das janelas, diminuiu o tom, quase em constrangimento, até que desapareceu. Depois disso, a rua ficou repleta de pessoas ensopadas que sorriam..

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Quando Miranda Amou


Nenhuma protuberância havia jamais surgido involuntariamente daquele corpo jovem e esguio. Até mesmo as espinhas, na época da adolescência, pediam licença antes de brotarem daninhas em seu rosto angelical. Miranda era paz, e felicidade absoluta, apesar de incompleta.

Pois lhe faltava o amor. Não que faltasse de fato, afinal, não o conhecia, mas, já sabia há muito (mesmo sem saber) que o retumbante e imparável eco no peito, era o vazio ruidoso causado unicamente pela falta de um amor. Miranda não fez alarde, ou excitou um músculo sequer.

Pelo total desconhecimento de causa, manteve cada molécula do corpo em estado de dormência, poupava suas energias para aquilo que sabia fazer, já que não gostava do esforço em vão. Diziam que não se encontra o amor, mas, é encontrado por ele. E ela confiava.

Confiava, com o coração e com a segurança da paz que lhe era habitual, que o amor, um dia, beijaria sua testa com suavidade, cessando finalmente o incômodo vazio de si. Enquanto isso tinha a saúde em dia. O buraco do peito não aparecia nos exames e, portanto, tudo bem.

Até que veio. Alto, viril, dominador. Homem. Disritmou seu compasso cardíaco, sufocou-lhe os pulmões e anuviou sua vista. Fez surgir em seus raios-x, uma imensa mancha branca. Clinicamente – diziam os médicos – tinha o tamanho exato do amor! E pediram-lhe repouso.

Mas Miranda estava em estado terminal: Sofria de amor crônico. Acabaria sucumbindo a qualquer momento e, justamente num momento qualquer, quando convidada ao cinema, explodiu, numa viscosa profusão de órgãos e vísceras e sangue, tornando o mundo mais belo.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dalva


Há um azul no céu que, de tão infinito e, tão insólito nos tons, confunde a direção do prisma de nossos olhos deslumbrados, e transforma o azul multitonal em um impenetrável negro. Uma escuridão tão profunda que me coça a curiosidade: Quê há por trás da cortina do céu?

Um espetáculo, certamente reservado apenas aos que ousam atravessar o breu do desconhecido, absoluto em seus mistérios. E nada, arrisco dizer, pode ser mais fascinante que o além-Terra. Neil, Buzz e outros dez. Só. Os heróis do quase. No fim, só discípulos de Laika.

Ninguém, na verdade, foi capaz de dizer dos mundos de lá. Nem Neil e nem Buzz. A pobre Laika ou meu amigo Cauê, com suas divertidas teorias extraterrestres. Verdade mesmo, por ora, é que a tela cupular que me expõe o infinito, exibe nada, senão dúvidas transcendentais.

Dúvidas que me instigariam ao salto do alto do Himalaia, se isso me guiasse em sua direção, mas, minha noção de gravidade e a enorme falta de ousadia conservam essa frágil armadura em terra firme. Pregada e trêmula. Trincada de perguntas e, também, refém de respostas.

Que não virão ou, ainda pior, tardarão ao derradeiro desfile no pacato prado, enquanto visto roupas brancas e leves, dançando entre feras e anjos, completamente dopado! O céu será, eternamente, um monumento ao meu fracasso. Tão interminável quanto indecifrável.

Gasto horas, o observando penetrantemente de soslaio. Lhe confesso meus pecados mais ocultos, na esperança de uma simples confissão: Quê guarda, por trás da cortina? - E é quando beiro a desistência, que me entrega ela, musa, alva, Dalva. Aí me renovo, à sua procura!

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Células Sacanas e Leveduras



Herdo, pelo inevitável aprisionamento da espécie que me define em células e ego, algumas possibilidades nefastas. Sou humano e, por essa e outras razões, pertenço a incontáveis grupos de risco! Eu podia, por exemplo, ter câncer, mas, malandro que sou, prefiro ter sede!

Sou sujeito simples, digo, de gostos simples e, sede, me apetece mais que células mutantes se multiplicando desordenadamente em meu organismo. Simples, não? Ademais, sou avesso a quase todo tipo de tumulto. Porque tumulto, vira e mexe, dá câncer! E câncer, me cansa.

Prefiro mesmo a sede. Gelada e amenamente amarga. Dourada e borbulhante. Alva e cremosa! Colar? Toda a elegância de dois dedos e mais nada! Um só gole, no verão, e até a alma estremece refrescada! Quem, em sã consciência tem câncer se, tanta cerveja por aí!

Tão milenar que, sagrada. Amém! Renegada por romanos e por mim, lá atrás, mas, tempo que passa, sufoco romanices (sem blasfemar o rubro sangue do homem) e ergo a caneca (despudorado triângulo alcoólico-amoroso): “Saúde!” – Meu sincero desejo, a plenos pulmões!

Saúde para quem nunca teve câncer e, saúde, muita saúde, para quem teve. Saúde e sede! De cerveja. Se não, do que for! Beba! Deslize na boca o néctar mais refrescante. Se afogue de vida! E estremeça a alma. Beba o quanto puder, enquanto sedento. Mas nunca, de vida, sacie-se!

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Cheiro de Amor


Gritei de longe, a largos e desesperados passos, que segurassem a porta. Já passava da hora! Apressado, mas, antes de me aproximar, vi dedos delicados esticarem-se e salvar meu atraso. Suspirei aliviado. Penetrei o elevador e sorri, com toda a minha cordialidade e débito eterno.

Estávamos sós. Só nós dois, presos àquele pequeno cubículo. Pressionei o quarenta e três e percebi que ela, deusa da gentileza e, por acaso, da beleza, desceria no quarenta e dois. Esses cinco minutos de atraso destruiriam meu dia, mas, com ela ali, sorrindo para mim, dane-se!

Eu ainda não sabia, mas, o sorriso cordial ainda sobrava em meus lábios, congelado no rosto. Vislumbrado e denunciado pelo grande espelho ao fundo. Tentei dissimulá-lo, mas, a beleza única daquela jovem ninfa ceifava qualquer tentativa de uma expressão menos apaixonada.

Foi amor à primeira vista! Uma vontade alucinada de cortejá-la por todos os cento e vinte segundos que teríamos juntos. Só nossos, naquele pequeno espaço metálico e espelhado. Mas me aquietei, e ela desviou o olhar. Espelho, painel, chão. Perdi-a em menos de um minuto.

Subitamente um cheiro. Indiscreto. Incômodo. Constrangedor. Como se algo em decomposição gritasse de dentro do intestino, querendo sair. Olhamo-nos profundamente nos olhos. Tenso. Só nós dois naquele claustrofóbico espaço e a vermelhidão escorria do rosto à sola de nossos pés.

Eu não podia crer. Decepção! Silêncio rompido: “Fui eu!” – Disse ela, zelosamente. Abracei-a e, conquistado, pedi que me beijasse. Sorriu outra vez e me osculou a testa. Despedimo-nos. Cúmplices, pois, só nós dois, apaixonados, sabíamos que, na verdade, não tinha sido ela!

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Meu Blue Suede Shoes






Tenho uma quantidade assustadora de sapatos no meu armário. Contei hoje, dezessete pares! Fiquei assustado, não sei como isso foi acontecer! Sou um homem simples, de hábitos comuns. É estranho, acho até que alguns nem me calçam mais. Ficam apenas lá, por piedade, talvez.

Dezessete pares! Espalhei-os pelo quarto e, lhes digo, ocupou boa parte do espaço. Uns estão até gastos, com aparência bem cansada. Mas outros, os que me assustam, poderiam bem voltar para a loja antes de calçar outros pés. Ninguém jamais saberia que estiveram aqui.

Não acredito que tenho tanto sapato. A propósito, digo sapato, mas, me refiro genericamente à capota do pé. Tênis, chinelos e todos os demais. Não sou desse fetiche! Tenho minhas fraquezas de consumo e não é segredo para ninguém. Mas me envergonha tanto sapato...

Fico observando-os espalhados e penso que, se os distribuísse aos meus amigos, ainda sobraria muito sapato! Meu Deus, tenho mais sapatos que amigos! Mas minha crise maior é perceber que, apesar disso, sofro por não saber onde foram parar meus blue suede shoes!

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A Metade Exata



Tenho quase certeza de envelhecer na exata metade do tempo do corpo. E dessa vez não divago sobre a velhice, mas, sobre a juventude. Uma juventude pura e tão mais forte que as fibras e os músculos, pois, justamente, transcende o corpo que não hesita em se esvair.

Sim, os cabelos brancos e precoces que despontam daninhos por minhas têmporas não negam que a carcaça débil segue seu fluxo previsto. Só que a cabeça, nossa, essa é menina virgem e boba! Pré-adolescente. Esbaldo-me em erros e anseios juvenis, apesar dos trinta.

Porque quinze, se é que me entendem! Meu mundo de dentro gira a quarenta e oito horas por dia. Isso em dias agitados! Tem dias que a desproporção é maior ainda, pois, o corpo dura nem seis horas. Quando vejo, nem vi passar. O tempo só faz definhar o corpo e morremos...

Morremos de corpo, naturalmente. Com a cabeça assistindo, indefesa, que a vida acabou. Aos cem anos, se sãos, seremos jovens ainda. Porque cinquenta, no máximo. E quando digo que envelheço na metade do tempo, peço suas mãos e companhia, pois, todos nós juntos.

Não conheço um que vinte anos aos vinte, sessenta aos sessenta e, enfim... Somos metade do que vivemos, e sempre seremos. Penso no desespero de ter trinta anos. Corpo e cabeça, simultaneamente. Velho e chato, sem sombra de dúvidas. Quem é que quer uma vida dessas?

Acabo de debutar, jovens! Jovem! Na flor da idade e, apesar das sucessivas sessões de fisioterapia, jovem! Curioso e medroso da vida. Sem rusgas. Pai das minhas estripulias e menino outorgado ao erro. Vivendo a vida que me cabe. Caprichosamente, pela metade.