quinta-feira, 30 de junho de 2011

Esse Homem Não Presta, Mas Tem Algo de Encantador


Abriu os olhos com a preguiça dos seis graus célsius lá de fora. A tempo de ver (mas sem entender) a mão que se aproximava rápida e violentamente do seu rosto. Primeiro, o susto foi maior que a dor. Levou alguns segundos para cair na real e só então sentiu a pele queimar.

Era Jurandir, transtornado porque encontrara uma mancha de gordura na parte debaixo da camisa do seu uniforme. E estava atrasado. A chamou de vadia imunda e a derrubou da cama com outro tapa, pouco antes de bater a porta, o portão e disparar com o carro feito um louco.

Ela então se levantou, esticou os músculos e espreguiçou-se. O dia começara. Acariciou suavemente a face, com as duas mãos, e cantarolou qualquer melodia animada. Arrumou a cama, a bagunça da cozinha e avançou pelo restante da casa. Tinha prazer e paz no que fazia.

Ligou a tv num desses programas matinais de culinária e encantou-se com uma receita rápida e aparentemente saborosa. Colocou seus afazeres de lado e investiu na sobremesa, com a certeza do agrado e a redenção para seu homem. Teria apenas que requentar o almoço.

Quando Jurandir chegou e meteu o garfo na boca, sentiu o estranho gosto do feijão gelado. Invadiu a cozinha com os olhos em brasa e viu o suflê de bananas sendo polvilhado com canela. Arremessou-o contra a parede, a chamou de vagabunda imprestável e desapareceu.

Ela tremia e estava com os olhos fixos na parede. Voltou a si apenas quando ouviu a porta bater. Torceu o pano de chão na pia e limpou a meleca espalhada pela parede e pelo piso. Guardou a comida intocada e correu para atender ao telefone. Era Luana, sua irmã mais nova.

Luana adorava contar suas aventuras de solteira para a irmã porque sabia que a encantava ouvir. Dizia sobre as viagens que fazia, os homens que conhecia e riam muito juntas. Não se julgavam e aceitavam-se mutuamente como eram. Cada uma em sua distinta realidade.

Despediram-se e então voltou aos deveres do lar. Checou com cautela se deixara algo para trás e redobrou a atenção nas roupas de Jurandir. Não podia falhar. Chegou até a desligar a tv com o programa de fofocas, para não se distrair. Cantarolava animada, preparando o jantar.

Seis em ponto e tudo pronto sobre a mesa. Seis e meia e preferiu esquentar a comida novamente. Sete e meia tornou a esquentar. Oito e meia esquentou mais uma vez e então ele chegou. Deixou-o na cozinha e foi para o banho. Ele fedia a álcool e perfume barato, de puta barata.

Logo que se despiu, ele escancarou a porta do banheiro e fingiu cheirá-la de longe. Cambaleante, gesticulou e gritou algo como cadela suja. Depois invadiu-a sem piedade, ferindo-a no começo. Por sorte, terminou logo e foi para a cozinha comer. Banhou-se atônita.

Quando percebeu que já tinha saciado sua fome, ela foi até a cozinha e recolheu toda comida, lavou e guardou a louça, limpou a sujeira deixada no chão e foi se deitar. Ardida e exausta. Ele ainda estava agitado e tentou vir para cima dela que resistiu, empurrando-o pela barriga.

Alguns poucos segundos de silêncio foram cortados pelo soco pesado arremessado na parte anterior do seu crânio. Ela ficou um tanto atordoada, mas não desmaiou. Cedeu. Dessa vez ele demorou mais tempo e a esfolou ainda mais enquanto a devorava e xingava, semi-possuído.

Quando ele finalmente não tinha mais interesses, desfaleceu na cama esparramando o corpo para todos os lados e ocupando todos os espaços. Ela então se levantou e foi até a cozinha procurar qualquer coisa que diminuísse o ardor entre as pernas. Ou não conseguiria dormir.

Armou uma compressa com pedras de gelo e foi até a sala tentar recuperar sua paz. Deitou no sofá, repousou a compressa sobre suas partes e ligou a tv. Passava o filme Eternamente Jovem e, ao ver Mel Gibson na tela, suspirou: Esse homem não presta, mas tem algo de encantador.

domingo, 26 de junho de 2011

O Tinto


Tomou-a pelo pescoço e dominou. Percorreu com os olhos toda a geografia, depois usou as mãos. Analisou sua cor, seu peso, sua forma e o que vestia. A cara daquilo que as coisas vestem, dizem quase tudo sobre aquilo que as coisas são. Era ela, a escolhida!

Apontou a espada para o crânio macio e torceu em espiral a lâmina, miolo adentro. Golpe frio e desapressado. Preciso como o mais nobre dos cavaleiros reais, sacou a tampa, o lacre e todo o invólucro que protegia o santo néctar. Assistiu emergir o sangue.

Espesso, vermelho, quente, vivo. Tinha um cheiro, não, um perfume. Um aroma, por si só inebriante. Espalhou-se pela sala e invadiu as narinas, temperando o ar. A saliva, brotada em excesso, fazia brilhar os lábios vampirescos e hipnotizados. A sede torpe!

Do pescoço desnudo surgiu uma gota furtiva que, assustada, do parapeito da parte superior da estrutura, escorreu-se, tatuando no corpo a rota suicida. A inútil tentativa de fugir à sede sanguinária daqueles que a aterrorizavam. Pelo caminho, fundiu-se à saliva.

A gota na boca despertou ainda mais a sede. Produziu ainda mais saliva. Provocou ainda mais aqueles dois. Com classe, como sugeria o momento, tomaram nas mãos o corpo rígido e derramaram o néctar em cálices cristalinos, meticulosamente escolhidos.

Brindaram glórias pessoais. Recentes, antigas, revisitadas. Estavam orgulhosos. Satisfeitos (não saciados). Tornaram a brindar mais uma taça do sangue auto-ofertado, e se riram do corpo ceifado que perdia a beleza à medida que tornava-se mais e mais oco.

Abandonaram o recipiente às moscas, porque ele já não importava mais. Correram em direção aos lábios salpicados do sangue. Beijaram-se efusivamente e se estimularam pelo gosto tinto que tinham. Entregaram-se ao amor forjado, repentinamente despertado.

Suspiraram e podiam ainda sentir cada toque daquela história portenha, drenada aos goles para dentro dos seus corpos turvos de prazer. O carvalho, o mel, as frutas, as favas, as geadas e as chuvas e o sol. Cada fragmento era deles agora, hemofágicamente.

O sangue da goela fundia-se cada vez mais ao sangue das veias. E continuavam se beijando. E misturando, ao mesmo tempo, as salivas. Sangue e saliva. Fundiam-se em tudo porque o sangue provocava essa necessidade. Desejavam ser um só. E se beijavam.

Espremeram-se tanto que os braços colaram e em seguida as pernas. Logo a boca e o tronco. Eram definitivamente um só. Híbridos. Fermentados. Tintos. Cabernet Franc e Sauvignon Blanc. Riram mais uma vez de si e, extasiados, dirigiram-se à adega.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Equinócio



A colisão inevitável entre os universos. Duas estrelas rompendo barreiras galaxiais. A atração astrofísica que aproxima corpos de densidades absolutamente distintas. A inércia. A órbita. O vácuo. Todas as adversidades, tão débeis ante o controverso desejo do encontro. Norte e sul.

Um par de pessoas, randômicas. Mundos diferentes, o mesmo planeta. O espírito dominador. A necessidade da conquista. A soberania.  O desequilíbrio. Hormonal, visceral, físico e psíquico. A lei da selva, o mais forte. A pujança. A mutualidade subtraída à individualidade. Um só.

São duas pessoas! As mesmas duas. Outras duas. Faz diferença? São todos iguais, afinal. Mundos diferentes: É disso que se trata. Dois que se cruzam e dissimulam a fusão integral, acreditando no intangível elemento à mistura fina, que preencherá o buraco negro existencial.

E já sabem, imediatamente, que num relacionamento de dois, um só. Um dominante, um recessivo. Essa é a física e a biologia de dois corpos (celestiais?) que optam pela torpe aglutinação das massas. O duelo começa, a conquista. O tempo dirá quem domina ou recebe.

Tão logo se cruzam, dois astros perdidos, faíscas no céu. Fogos de artifício. Sem artifícios. É o momento. É honesto. Brilham as estrelas. Incandescente horizonte. A mais intensa luz, nunca antes emitida nem nunca, jamais, repetida. Parece eterno, tão interno. Explode a supernova.

Sacodem os corpos, se envolvem, se enlaçam, se trançam, se transam. Parecem um só, um pouco só. Um pouco de cada. Mas já. O sacrifício negado, o sutil relevar. O sacrifício renegado, a cegueira. Nunca mais um pouco dos dois. A supremacia, a alienação. O planeta e o satélite.

O brilho estelar, hipoteticamente roxo, assume o azul, ou o vermelho. Assume uma cor. Não sólida. Conserva em si elementos do outro. Azul avermelhado, vermelho azulado. Houve a fusão, alguém duvida? Não plena, pois, nunca plena. Domínio estabelecido. Era o mais forte...

Finda-se a guerra? Não tão cedo. Até a morte. Independe a derrota e o derrotado. Até a morte! Só o derrotado morre. Feliz. Morre de amores. Para que num dia de outono, noutro de primavera, se encontre em equilíbrio. Dois dias. É que nem o equinócio, justo que só, é um só.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Conduzido


Meu humor mudou. Mais que isso, meu comportamento. Venho, de dez ou doze anos para cá, assumindo uma visão mais cáustica sobre a vida, menos maniqueísta e crente. Na mesma medida, acreditem, sendo uma pessoa mais arrojada e divertida, dinamicamente. O moderno.

O sarcasmo tem assumido boa parte das minhas expressões e, curiosamente, me tornado mais bem-vindo. Ando completando frases alheias com comentários irônicos e frios, como se soberano àquela pessoa, melhor que ela. Sou eu ou a vida cotidiana está virando um sitcom?

Ainda me lembro da decisão consciente de sair por aí parafraseando Chandler. Descolado e bobo, mas, acidamente engraçado. Nunca pretendi Joey, porém, incuti o cargo ao amigo mais bem apessoado. Foi assim o início, durante a descoberta dessa nova filosofia comportamental.

No embalo dessa transmutação pop, me tranquei para uns poucos amigos. Claro, fazia parte do personagem. O resto do mundo tornou-se uma bolha amorfa. Coadjuvantes. Não que fosse um problema, sempre fui dos que se relacionam com poucos. Avancei firme à reinvenção.

Pelo caminho, fui me descobrindo J.D Dorian, melhor, incorporando suas características falsas. Cênicas, por assim dizer. Me tornei um híbrido. Nem mais a educação dos meus pais, nem tampouco, o que aprendi a ser na escola. Os valores haviam sido sumariamente subvertidos.

Me tornei menos eu mesmo e um pouco mais o produto americano da comédia. Rápido, inteligente, heróico e inspirador! Deixei de acreditar nas coisas que me faziam um ser melhor. Eu acreditava no que eles acreditavam. Personagens, ficção. Chandler, J.D e suas histórias.

Então, quando me descobri querendo entender as mulheres, já não necessitava mais dos conselhos sábios do meu pai ou dos amigos, um tal Charlie Harper me conduzia. Quando me tornei sádico demais para o amor, Hank Moody deu o tom e dissimulei algum princípio moral.

Hoje o que sei é que sou um pouco disso tudo, mais que os personagens, um apanhado geral do conceito sitcom. Minha essência se perdeu em algum lugar em meio ao zap dos canais. Para eles, missão cumprida. Para mim, risos ao fundo à espera de aplausos furtivos de admiração.

domingo, 12 de junho de 2011

Jantar de Negócios


Então eu estava nesse restaurante de primeira linha. Simplesmente estava lá. E nunca tinha estado antes. E nem sabia como tinha chegado. Mas estava, e bem acomodado numa mesa central, na companhia desse homem, estranhamente familiar. Mas eu nunca tinha o visto.

Bebíamos uma bebida preta e espessa, bastante licorosa. Eram perfeitamente iguais, mas eu tinha a impressão que não. Comíamos uma papa, uma espécie de angu avermelhado que, embora também parecessem idênticos e deliciosos, certamente não tinham o mesmo sabor.

Conversávamos avidamente, o senhor e eu, como se fôssemos, afinal, íntimos. Mas eu não ouvia o que ele dizia. Seus lábios se movimentavam e eu compreendia cada palavra, embora não as ouvisse. Também não conseguia me ouvir, aliás, nada à minha volta tinha som próprio.

Apenas uma música, orquestrada e indefinida coordenava minha surdez seletiva. Num gesto descuidado derrubei a colher e, ao tentar recuperá-la, percorri o chão sem sucesso. Retomei minha posição discretamente e lá estava ela, estacionada na mesa, bem ao lado do angu.

O jantar todo se desenrolava em um ritual absolutamente incomum. As coisas aconteciam em câmera lenta, mas, por acaso, eu não me comportava com desconfiança, apenas agia como se compreendesse tudo aquilo. E não havia garçons, apenas clientes espalhados pelas mesas.

Notei então, na mesa ao lado, minha primeira namorada, meu primeiro amor, uma pessoa conhecida em um lugar desconhecido. Perfeitamente normal. A acompanhava o mais antigo dos meus amigos. Eles nunca se conheceram, que eu saiba, mas pareciam íntimos ali. Normal.

Noutra mesa estavam os meus familiares. Pai, mãe, tios, avós. Celebravam alguma coisa, estavam felizes e agitados, em câmera lenta. Noutra mesa meu professor preferido, noutra os amigos do futebol, noutras meus desafetos e, todo o restaurante se ocupava de conhecidos.

Ao mesmo tempo em que mantinha o diálogo com o velho à minha frente, meus olhos percorriam o recinto e, na parede destacavam-se quadros surrealistas de episódios muito particulares da minha vida. Era só uma percepção, nada irrompia a serenidade daquele jantar.

E aquelas cenas quadrificadas provocavam sensações em mim, boas e más. Nostálgicas. Mas não conseguia exterioriza-las. Nem tentava, na verdade. A sensação, por si só, bastava naquele momento. Comemos nosso angu, finalizamos nosso licor e pousamos as colheres, satisfeitos.

Nas outras mesas, os outros clientes interagiam entre si. Também tinham terminado seus angus. Também tinham esvaziado suas taças de licor. E conversavam e gesticulavam como se empolgados por algum assunto que dominassem. As sobremesas brotaram nos nossos pratos.

Degustávamos um creme branco e denso, polvilhado com confeitos coloridos. Não era quente ou frio, mas exalava muita fumaça. Cada um de nós metia a colher na boca com prazer, embora o creme não tivesse gosto algum. Olhei mais uma vez para o que estava à minha volta.

Tudo ali parecia muito pessoal, meu em cada detalhe. Agradeci ao velho como se fosse ele o responsável. Gesticulei ao além o pedido da conta e antes que baixasse a mão, estava ela trançada entre meus dedos. Conferi os itens e me confundiu a descrição de cada um deles.

Constavam ali memórias, lembranças, homenagens e atitudes involuntárias. Coisas das quais eu não me recordava, embora as admitisse servidas ali, naquele jantar. Fitei o velho e, com certa inocência, perguntei: “É isso o juízo final? É disso que se trata estar aqui? Eu morri?”.

Sua aparência mudou. Tornou-se sério e nada simpático. Atirou o guardanapo na mesa, com deselegância, e se levantou indignado, como se ofendido com minha indagação. Todos os outros convidados, meus conhecidos, encaravam-me com incredulidade e desaprovação.

Constrangido e, abandonado na mesa, levantei-me e passei a recolher cada prato de cada mesa. Empilhei-os todos nos braços e caminhei até a cozinha, desolado. Abandonei-os e me virei para o salão esvaziado. Sem convidados, sem quadros. Apenas a conta sobre a mesa.

Recuperei-a de saída e reavaliei o resultado da soma dos itens. Olhei para o salão oco, apático e assumi a beleza do momento anterior. Assinei confiante a conta, e parti para fora. Senti um calafrio intenso, como se tivesse algo sendo sugado de dentro de mim para sempre.

Porta a fora estavam todos, os convidados e o velho, lindas mulheres desconhecidas. Me aplaudiam e abraçavam. Eu era especial, estava claro. Querido, finalmente. Voltamos ao restaurante decorado e aquilo que eu entreguei, durante o calafrio, talvez não me fizesse falta.