quarta-feira, 28 de março de 2012

O Rei


Apodera-se do trono que, de fato lhe pertence e, sem cerimonias, reina sob o assento feito rei. Com classe e estilo espalha-se pelos domínios reais e põem-se a imbuir seus anseios humanos dissimulando, discretamente, os anseios reais que o implicam monarca, no trono da realeza.

Reflete mudo sobre a força da própria voz. E a potência do dedo, sob o horizonte. Pensa no medo que sobrancelha franzida causa aos que as contemplam onduladas, acima dos olhos. O homem mais poderoso do mundo, fortalecido pelo trono uno que lhe define mais que a vida.

E nada o deixa mais onipotente que esse momento de liderança. O trono. É quando tem o mundo aos pés. Muito além das decisões arbitrárias dos que decidem rudemente, acima das vontades do verdadeiro governante. No trono, o mundo dança sua música cafona e precisa.

E como tem carisma o rei. Perspicaz nas sutilezas das necessidades plebeias e meticuloso nas reuniões que pautam a expansão do reinado. O rei não erra, e suas decisões definem com justiça o progresso do mundo que, no mundo dele, se não o reconhece soberano, desaba.

O tempo passa e, enquanto sentado, o valor do trono corrompe seu orifício como se toda a autoridade pretendida o deixasse, fugaz, rumo ao desconhecido. Liberta-se, então, do corpo num grosseiro fragmento de segundo e vai, por água abaixo, extinguindo o seu poder real.

Aí, toda a dedicação ao mundo dos outros se vai. Despejada na saliência viscosa que, prestes a se despedir, boia inerte, distanciando-o de seus devaneios reais. Todo aquele mundo fantástico, idolátrico, vai embora flutuante e compacto, na massa fadada ao esgoto.

Então, finalmente desconectado da sua catarse, despede-se do mundo onde é rei e volta à simples realidade plebeia. Onde depende dos iguais e responde, subordinado, às autoridades. Aciona o botão aflitivamente ruidoso que transporta seu mundo mágico pelo ralo e chora...

segunda-feira, 19 de março de 2012

A Vida dos Outros e Seus Problemas



Não existem vidas melhores ou piores, exceto, é claro, as que ESTÃO melhores ou piores que as demais. De modo geral, as vidas são apenas diferentes. E, vez por outra, pelos mesmos motivos. Aqui, ali e em qualquer lugar do mundo. Mais de sete bilhões de histórias diferentes.

Mas para cá, algumas poucas delas, que apenas justifiquem minhas afirmações óbvias. Afinal, não tenho vocabulário para tanto, e nem disposição. Vejo tudo muito de longe e, mesmo as conclusões que tiro dessas vidas são hipotéticas, como tudo na própria vida que não a morte.

Penso nos homens da cidade (homens e mulheres), ocupados das coisas pequenas, com tudo ao alcance, na conveniência vinte e quatro horas. E nos homens do campo, ocupados de si, vivendo a própria subsistência todos os dias da vida, como se uma grande perda de tempo.

Depois penso nos homens de outra cidade, vivendo da mesma forma globalizada e cosmopolita, mas, de um jeito completamente diferente em hábitos, esquinas e interação. São outras pessoas, noutro círculo de pessoas, e cada uma torna tudo absolutamente diferente.

Aí os homens do campo do além-cercado. De depois da fronteira e do lado de lá do oceano. Presos às mesmas regras milenares de arado, plantio, colheita e consumo. Mas cada um, à sua maneira de semear o solo faz da vida algo belo e lírico, um algo que é pessoal e intransferível.

Mesmo que igual a todos os outros lavradores, de todo o campo, em todo o mundo. Mesmo que os mesmos executivos, das mesmas companhias e com as mesmas gravatas. A vida dos outros é única como são os flocos de neve, as impressões digitais e as primaveras.

Com a diferença de, nas primaveras, as possibilidades se renovar a cada ciclo translacional. Enquanto que na vida, cruel, elas geralmente não se renovam, em percalços ou oportunidades. Assim, são como o voo dos flocos de neve, que se amontoam desfalecidos e derretem no solo.

Por isso as vidas apenas diferentes, nem melhores ou piores. Cada um com os seus problemas, do tamanho que o corpo aguenta. E nenhum que se institua universal nem ninguém no universo que não tenha problemas. Isso é da nossa rotina, como são as sementes e a gravata.

A particularidade do ser está em assumir seus problemas, mesmo antes de enfrenta-los e mesmo sem solucioná-los. Problemas? Problema seu... Não por displicência ou negação, mas, pela incompetência minha em acata-los, admitindo no coração a dor de outra vida que não a minha. 

terça-feira, 13 de março de 2012

Eterna Retratação


Eu não tinha nem cinco anos quando disse o que disse. A mais abominável frase que já saiu (e que jamais tornará a sair) da minha boca nessa vida. Apenas uma inocente tentativa de fuga infantil (em todos os aspectos), que resultou nessa inalcançável súplica por redenção.

É que não há perdão, e digam o que disserem. Nem se oficialmente perdoado pelo próprio, talvez até jazido, hoje em dia. É essa herança estúpida e invencível que carregamos desde o instante do nascimento, mais preso no corpo que a própria maçã do Éden. Como um câncer.

Na ocasião do fatídico dia, eu dissimulava o tédio de acompanhar meu pai em seus eventos sociais de adulto e, enquanto toda aquela gente grande se ria e se exaltava na roda de cerveja, eu corria entre caixas e me escondia de mim mesmo, feliz, sem nenhuma outra preocupação.

A sintonia entre os compromissos (dele, de velhos amigos e meu, de auto-entretenimento), funcionou bem até que me esgotasse a criatividade (ou o fôlego, pouco importa). Decidi então, descansar o corpo, recostando carinhosamente a cabeça no colo acolhedor do meu pai.

Nesse momento, a roda havia se dispersado e apenas um homem dialogava com ele. Um homem mais velho. Pareciam conversar sobre algo sério e franco. O tom era baixo e respeitoso. Mas eu não entendia muito da coisa e apenas encostei a cabeça em silêncio.

Percebendo minha presença e, provavelmente querendo gabar-se (coruja) de uma parcela de sua prole, meu pai ergueu-me com zelo pelo ombro e sugeriu que eu cumprimentasse seu amigo. Não era tarefa difícil dizer “oi”, mas, naquele momento, eu preferia o silêncio.

E poderia ter dito simplesmente “oi”, voltando a curtir minha preguiça logo. Mas optei pelo frio e categórico “Não!”. E até aí tudo bem, direito meu. Quando indagado, bastaria dizer: “Não quero”; “Tenho sono”; “Estou com preguiça” ou, “Sou só um menino. Tenho vergonha”.

Mas uma resposta me veio à cabeça muito antes de qualquer uma dessas. Algo que, naquele infeliz momento, pareceu muito mais óbvio e fácil de se compreender. Porque dizer que tinha preguiça para o “oi” forçaria uma insistência e eu acabaria cedendo, contra a própria vontade.

“Porque ele é preto!”, foi exatamente o que eu disse. É claro que eu não sabia o que isso significava, mas já entendia que essa distância racial estava acima de qualquer discussão e, dizer essa atrocidade encerraria a conversa ali mesmo. Como, praticamente, aconteceu.

Meu pai, desconcertado, tentava desculpar-se enquanto me perguntava de onde eu tinha tirado uma besteira como aquela. Respondi com os ombros, sinceramente. O velho senhor procurou ignorar minha idiotice, reconhecendo o costume com que lidava com essas atitudes.

Em poucos instantes, se recompunham num outro assunto e nalgum instante mais, estávamos no carro, meu pai e eu, voltando para casa. Nunca vou esquecer a expressão decepcionada dele. Comigo mas, principalmente com ele, tentando encontrar uma culpa que não lhe cabia.

Porque quem havia me ensinado a ser um pequeno imbecil tinha sido a própria sociedade. A dele, a minha e a de todos nós. E talvez venham me dizer, superficialmente, que foi necessário enfrentar minha educação global dessa forma, para contrair o asco ao racismo e aos racistas.

Pois eu digo que agir como eu agi, apenas uma vez, fez de mim um deles, irreversivelmente. Ainda que uma só vez e mesmo que criança. Mas até o fim da minha vida, carregarei a culpa de ter sido um cretino racista. Vazio e podre. Maculado.

E minhas desculpas (que me desculpe aquele senhor negro do passado), ofereço à sociedade, vítima e ré até as entranhas, de todas as mazelas do mundo. Pelas coisas todas que nos empequenecem, mas, mais que todas as outras, pela inexplicabilidade ridícula do racismo.



domingo, 11 de março de 2012

Perdi a Mão



Perdi a mão. Esgotei de vez aquelas boas ideias rasas e agora nem mais o velho Buk parece capaz de me chacoalhar da pasmaceira. É esse maldito equilíbrio!  Não me lembro de ter requerido estabilidade emocional! Tentei resistir à inércia, mas, preguiça e bocejo, cá estou eu.

Sofá amassado, chá quente e controle remoto. Barriga mental esticando o elástico do crânio. Amoleço entre ressacas e flatulências. Me falta o estímulo, isso sim! E não conheço melhor incentivo que a desordem. Não sou de caçar queixas, mas, onde diabos elas foram parar?

Será que era isso? Só isso? Estar em paz e missão cumprida? É que me confunde essa paz que aquieta o pensar. Efeito avesso! Imaginava um sono profundo quando a paz me encontrasse, mas vem logo a insônia e mostra que paz é para os fracos e sono tranquilo é coisa de criança.

E quero dormir tranquilo sim, mas carregando todos os problemas que me comicham a alma pela impotência, pela incompetência e pela preguiça. Meu alimento! Mas despertar no alto da madrugada, sem sono e oco, é a tormenta que não quero. Como beber para dormir, tão fraco.

Aí eu tento me importar com mazelas que nunca me despertaram a atenção. Mas soa tão falso que logo desanimo. Tento restabelecer princípios antigos e é mais falso e estúpido, ao mesmo tempo. Já tinha desistido deles, não? Me arrisco à fé de hoje e acabo na TV, zumbi cibernético.

Isso porque perdi a mão. E o rumo, que ficou pelo caminho. Não para sempre, mas, tempo indeterminado. Não tenho manilhas ou cartas na manga. Se estou no jogo, é pela possibilidade do blefe. Inseguro de mim, confiante no maço e esperançoso do Straight, na próxima rodada.

domingo, 4 de março de 2012

Deus?


Quanto mais me aproximo da religião, mais me afasto de Deus. E cada vez mais, de uma forma menos reversível. É que quando os homens falam (e não me importa se latim, hebraico, árabe ou sânscrito), o fazem por conta, na interpretação autoritária e na manipulação das palavras.

Subvertendo maquiavelicamente a simplicidade poética das sugestões de conduta moral, impressas nos seus sagrados manuais sociais. Pois, toda a austeridade versícular ali descrita, não cabe na nossa sociedade, com a contemporânea revolução de equilíbrio dos direitos.

E os homens (coisa que digo com conhecimento de causa), são inexoravelmente corruptos! Na moral, na ética e na podridão do fígado e dos pulmões. Defendem interesses muito mais particulares que a dimensão do Deus regente. O qual, por acaso e supostamente, defendem.

Somos nós, aliás, grandes e particulares demais, hoje em dia. Para os dogmas milenares do Torá, do Alcorão, da Bíblia e do Manifesto Comunista também. Culpa dessa satânica sociedade da informação, que nos convenceu que todos os livros sagrados têm lá suas luzes e trevas.

E simplesmente pela obviedade de nada estar tão certo ou errado que mereça o céu ou o inferno. Mas, pelo orgulho imbecil do estandarte a uma bandeira divina, nos obrigamos a negar tudo o que não for do “Deus meu”. Como se uma escola de samba ou time de futebol.

É o tal do fanatismo... Tão baixo e acéfalo que, deveria soar pejorativo da boca para fora. Como “cretino” ou “estúpido”, seus primos mais próximos, na classe dos adjetivos. Mas há que se galanteie e se melindre com a infeliz atribuição. Pobre tapado...

Pois, o que tento dizer, entre todos os meus rodeios, é que fanatismo (segredo nenhum) é estupidez em qualquer lugar: No céu, nos estádios, nos escritórios e no showbizz. É a mais impermeável intransigência na qual o homem, pequeno na alma, pode se submeter.

E Deus, me convenceram (com seus méritos, mas), ainda antes de eu me auto desconvencer da causa, é estado de espírito, mais que sobreposição à crença alheia. Deus é pacificação no caos, e só! E o que mais? É como paladar ou atração sexual e intelectual. Quem questiona?

Cada um com a sua. Cada um com Deus. Seu Deus! À sua maneira e no seu íntimo. E para o magistrado, a responsabilidade de organizar a sociedade, tão mutante a cada geração. Afinal, Deus não pune, apazigua. Não como um abraço de mãe, mas como fadas, gnomos e álcool.