terça-feira, 30 de março de 2010

Equilibrando a Cuca

                                                                                 
                                                                       Arte: Tullio Garbari

Com a mais diplomática das retóricas, inquiro: Há limite para a erudição? Há! Aquela pompa de palavras sensualíssimas e envolventes despejadas pela voz aveludada de uma boca com vocábulos mil, cansa! Numa segunda-feira de chuva, de noite, de fardos e compromissos, a erudição dói como ferro em brasa em couro de gado. Dói dentro do estômago-cuca, empanturrado com sopa de letrinhas e coca-cola gelada.

Erudição tem dia e hora marcada. Começa na quinta, sessão de cinema Cult, termina sábado. Ou madrugada de domingo, se a ocasião ditar. Meia semana para o útil, meia para o fútil. Equilíbrio espiritual. Talvez eu seja o cínico perfeito, lobinho cordeiro que se apresenta erudita-mirim e dissimula. Sim, sou esse aí.

E, embora não exista no mundo o que excite mais que bons argumentos e articulações primorosas para argumentos – às vezes – nem tão bons, há limite para tanto! Mas mantenha-se calmo, sugiro um limite provisório, temporal. Para simples férias mentais, um descansinho de nada.

É importante absorver a intelectualidade do mundo, toda ela (ou o que couber no chapéu)! Tal qual é, também, entorpercer-se da futilidade humana. Vitalíssimo para meu desenvolvimento saber o próximo eliminado no Big Brother (não à toa nas terças-feiras). Nas telenovelas o mocinho há de pegar a mais bela das belas e o vilão tem que cair do penhasco.

Eu vibro quando Hugh Grant conquista as mais inconquistáveis damas nas telonas, aquele jeitão desajeitado é mesmo de se encarismar! E se Robert Langdon tem um mistério divino a dissolver, estou lá para ajudá-lo.

Levi Strauss há de me compreender, onde estiver. Stephen Hawking cedeu sua voz a Matt Groening em “Os Simpsons”, não posso estar totalmente equivocado. Nem tão lá ou tão cá para viver em paz nesse mundo de informações desgovernadas (duplo sentido?). Radicalismos tendem ao autismo, suicídio ou a bombas químicas.

Para tanto, peço desculpas aos mais catedráticos e rigorosos consumidores da intelectualidade, mas o futebol dos domingos é sagrado e também o que me prepara para a absorção erudita da semana que virá. E se a pompa e o monóculo encaixado forçosamente no olho esquerdo são artifícios indispensáveis, por favor, dê-me as costas até que chegue a quinta-feira.

Hiato com Pipoca


Um breve hiato cinematográfico. Uns pensarão que abandonei o interesse fílmico, outros que acabou a pipoca. A verdade é que cinco filmes passaram por mim nesse período. Quatro respeitáveis e um quinto que, bem, tinha pipoca! Não vou me prender à cronologia, pois, nem todos continuam em cartaz. Que se converta em dica de locadora!


E, além disso, aproveito para justificar (com um filme, é evidente) o motivo da minha suposta indisposição: “Onde vivem os monstros” me abateu catártico e extasiou serenamente. Já explico! Aproveito também e antecipo me dedicar em paralelo à experiência social do cinema, tal qual à beleza visual e sensorial dos frames sobre frames.

O tal “Onde vivem os monstros” era, desde quando pintou nos sites de download no ano passado, minha grande expectativa para 2010. Não baixei! Vi e revi o trailer. Recebi a trilha sonora de presente e cantarolei semanas as cantigas inventadas por “Karen O and the Kids”, uma banda artificial, montada para o filme pela vocalista dos “Yeah Yeah Yeahs” (além de ex do Spike Lee, diretor da obra) e um punhado de jovenzinhos eufóricos, embalados num coro folclórico e infantil. Delicioso.

Um filme para não se ver sozinho, desprezo essa oferta! Fiz questão de arrastar boa parte dos elementos mais essenciais à eternização do momento, fiz bem. Afinal é peça de entrelaçar os dedos às mãos da poltrona ao lado e se encantar com as expressões de monstrinhos mais que expressivos. A trilha complementa. O enredo é simples: Um garoto endiabrado foge de casa após um desentendimento familiar qualquer, e rema até a ilha que, naturalmente, abriga os tais monstros. Lá ele é eleito rei e passa a ditar o novo manual de conduta daquela comunidade. O resto é por conta. Uma obra sutil e indispensável, sublime na combinação áudio/visual.

Outro filme desse período: “A fada dos dentes”, dublado. Boa companhia, boas risadas, pipoca.

Aí surge “Tokio”, uma obra franco-japonesa (sendo isso possível ou não), de três media-metragens sobre a capital da capital do Sushi. O interesse nasceu durante o trailer em outro filme (não me lembro qual), e nasceu porque a direção de um dos medias era assinada por Michel Gondri, um francês que aprendi a gostar por influência declarada de uma amizade influente. Nessa exibição fui solo, coube. Descrever a película é inútil, cult. A agradável surpresa foi descobrir uma Tokio menos sintética e high tech e mais humana, verdadeiramente humana.

Então “Lembranças” veio como duvidoso convite virtual de alguém que não costuma deixar dúvidas. O aceite era inquestionável, valeria a pena ainda que Robert Pattinson não valesse. E vale! Uma experiência memorável para uma sexta-feira delicada, de uma fase turbulenta. O filme caminha tranquilo, sem maiores pretensões, linear. Vai assim até o fim, mas, por um discreto e poético sismo do roteiro (e no momento certo) vale o ingresso. Vale Pattinson. A noite dessa experiência ainda se estendeu, longa. Rendeu discussões calorosas, consolidou sentimentos e amansou feridas passadas, histórias paralelas. O enredo do filme? Drama. Basta.

Por último e, talvez, por coincidência, “A Ilha do Medo” foi minha última experiência, há menos de uma semana, muito bem acompanhado. Cabeças pensantes! Como em “Sangue Negro”, a trilha conduz o enredo com primor. Entra na cabeça como inseto ruidoso e bate nos tímpanos incessantemente. Enlouquece. A obra, a propósito, lida exatamente com a loucura, em um sanatório americano no pós-guerra. A direção é do Scorsese, fruto maduro de uma velha proposta a uma nova Hollywood, autoral. Erra pouco. Mas, se pecou em “A Ilha do Medo”, foi pelo excesso de explicações, evidências. Uma boa dose de dúvidas e auto-conclusões não fariam mal algum.

Daí me desliguei do que está em cartaz ou entrará em cartaz. Espero agora por Alice, Burton, Depp. E quem não? Ao mesmo tempo, pareço restabelecido para as críticas. E, como artifício facilitador, desde sábado (e por mais um ano) readquiri o direito de frequentar duas vezes mais o cinema: Estudante. Portanto, passivo, aceito convites. Em dobro!

domingo, 28 de março de 2010

Domingo

                                      Arte: David Alfaro Siqueiros

Não é das situações mais fáceis, não mesmo. Tampouco das mais difíceis, mas vá lá, é levável. Madrugada de domingo é situação delicada. Melancólica e inspiradora. Tendenciosa. A inspiração que descamba para a melancolia, muitas vezes. Melancolia, aliás, parece coisa ruim embora, não no meu vocabulário.

Sou mesmo sentimentalmente hipocondríaco. Sofro horrores, calado, sozinho. Rolo no chão e coço a barriga de dores existenciais. Especialmente quando os ponteiros do relógio apontam para o domingo, meia noite em diante. Mas é de dor suportável, “fenixianina”, da que dá vontade de sucumbir às cinzas, renascer e superar. Dor poética, Shakespeare.

Mas, dissimulado que sou, embrenho-me numa efusiva alegria forjada que só as despretensiosas noites de sábado são capazes de fornecer. Madrugada de domingo é, para todos, noite de sábado. Efeito placebo. Às vezes emplaco discussões metafísicas madrugada afora e acabo dispensando qualquer possibilidade mais erótica, nem me arrependo.

Depois me arrependo. Quando é que o erotismo está abaixo da metafísica na escala masculina? Frouxo! Mas do diálogo não me arrependo mesmo, me constrói. Aí eu durmo, meus olhos me dormem. Ficaria acordado se conseguisse porque, estar acordado é estar alerta e alerta mantenho o controle, subconsciente é sub. Detesto maturar meu consciente naquilo que não posso controlar. Sisudo demais.

Aí amanhece. Acalma o torpor crísico e crítico da noite anterior. Calmaria. Algumas horas de paz antes do cataclisma tsunamico que virá no anoitecer dominical. Crise insustentável. A vida que passa, as rugas, as rusgas, os fracassos. Sou jovem ainda, por quanto tempo?

É domingo. Domingo é fim do fim. Pedra solta no bico do precipício. O mundo acaba quando acaba o domingo. Não há ópio que contenha a impotente angustia do fim da linha. Aliás há: Melancolia! Se convertida em inspiração, resulta aqui, desabafo frágil e desarrumado, necessário para o suporte mental aos inertes dominicais.

Boa noite e até amanhã!

domingo, 21 de março de 2010

Ambição Detida


Cada ser vivo no planeta cultiva pequenas ou grandes ambições. Ambições que motivam o prazer pela existência individual. E as dimensões atribuídas a elas são pessoais e não se transferem em intensidade. Tida, por exemplo, tinha a intenção exclusiva de provocar medo nos que a cercava. Gostava da ideia de adquirir o respeito coletivo aterrorizando quem cruzasse seu caminho.

Mas todos sabem – Tida também sabia – que os beagles não metem medo. E Tida era uma beagle. Das mais fofas que já nasceram, capaz de aquecer o coração do mais ranzinza dos velhos solitários. E como se não fosse o bastante, vivia com um velho solitário, o mais ranzinza que já se teve notícia. E o velho sim, carrancudo e de voz rouca, afastava qualquer forma de vida apenas raspando a garganta. Menos Tida. Para ele aquela bolinha felpuda de quatro cores era a coisa mais doce do universo.

A pequena canina incomodava-se de ver os olhos cansados daquele velho brilharem quando ela se aproximava. Por isso tentava não se aproximar. Mas a comida era boa. Nada de ração seca e cheia de nutrientes para Tida. Comida de panela, quentinha e feita na hora. Estar acima do peso era uma satisfação naquela relação unilateral, para ambos. O barulho da colher batendo no pratinho, ferro com ferro, era a sinfonia mais apreciada do dia. Se repetia sete ou oito vezes e, em nenhuma outra situação, tolerava os agrados físicos do velho.

É que nos outros momentos praticava gestos que fossem capazes de subverter suas expressões dóceis em demoníacas. Latia para as árvores, pássaros e insetos. Esperava pelo carteiro, vizinhos e outros cachorros que passavam na rua. Infelizmente todos sorriam afetuosamente ao vê-la esgoelando em suas direções. Mesmo os outros cachorros. Era cansativa essa vida, mas nunca considerou desistir. Sabia não ser a única a ambicionar o impossível. Tomava sempre o exemplo do velho e inspirava-se no seu êxito. Correu quando a colher bateu no pratinho mais uma vez.

Admirava aquele velho sozinho no mundo, impressionava-a o empenho e a ortodoxia em ser tão inviolável na personalidade. Só ela sabia quão amável ele podia ser e esse era o segredo que guardava, por gratidão gastronômica. A vizinhança, os parentes, filhos e ex-mulher. Ninguém o atazanava, nunca. Tida, que só tinha o velho, não era capaz do mesmo. Se tivesse nascido Rottweiller... De qualquer forma mantinha-se firme na obsessão de amedrontar o velho e o mundo, mas, delatava-se carinhosa com a cauda que abanava involuntária para todas as direções enquanto comia. Odiava aquela cauda.

E gastava horas do seu dia esperando para abocanhá-la com toda voracidade, especialmente nos momentos em que a encontrava retraída e distraída. Mas, pela falta de condicionamento físico, nessa perseguição, se mantinham sempre a dois focinhos de distância. Era impossível. Jamais cessou a fixação pela cauda. Toda vez que chacoalhava por conta própria, Tida girava e rodopiava atrás daquela infeliz serpente peluda parasitada ao seu corpo.

E embora incapaz de atingir seus objetivos, tinha de ser respeitada pela obstinação. Aquela beagle nasceu com metas absolutas e, enquanto houve a possibilidade de alcançá-las, tentou. E sentiu inveja depois que o velho subitamente morreu e apodreceu em casa sem nenhum auxílio ou atenção. Afinal, tinha conquistado o que sonhou e resistido até o fim.

Os dias correram e a cadelinha, que agora não tinha mais motivação e, a esta altura, morava com a gentil legista do IML que removeu o corpo do velho da casa, não abanava mais a cauda involuntariamente quando comia suas porções balanceadas de ração para cães obesos.

domingo, 14 de março de 2010

Pérolas


Lilli tinha pérolas nos olhos. Destoava das demais garotinhas porque tinha no rosto duas esferas reluzentes que enfeitiçavam como pérolas raras. Eram duas avelãs brancas presas às pálpebras. E estavam o tempo todo esbugalhadas. Não tinha córneas nem pupilas, nas esferas não riscavam veias avermelhadas. Tudo o que havia era apenas aquele par liso e alvo de bolinhas de gude. Era uma visão perturbadora para alguns. Quem a conhecia, mesmo sentindo-se desconfortável, não conseguia tirar os olhos daqueles olhos.

E mesmo com o mundo a encarando dessa forma, Lilli era desprendida como ninguém da necessidade visual. Enxergava a vida com tantos outros sentidos – conhecidos e desconhecidos – embora, talvez, não com a concretude e bruteza do nosso olhar limitado. Diziam que antes, muito antes, carregava duas jabuticabas nas órbitas. Olhos negros e vivos. Mas nessa época, era mulher igual, mulher qualquer. Não no sentido do desprezo social, mas comum, sem atributos. Uma abelha na colméia. Felizmente, do dia em que acordou com os olhos perolados em diante, sua vida ganhou foco.

Passava o dia com a cabeça voltada para o céu, vagando o olhar em lugar nenhum. Era extremamente dedicada ao seu ato autista e intrigava pela parcimônia na feição. Lilli não esboçava sofrer, pensar ou angustiar-se. Tudo o que fazia, onde quer que estivesse, era fitar o céu sem os olhos, mas com todo o corpo. Uma entrega infinitamente maior. Enquanto o tempo passava, Lilli ganhava mil novos perfis nas bocas dos vizinhos menos ocupados, das domésticas mais fofoqueiras e dos meninos mais inventivos. Ou estava possuída; ou sofria a perda de um grande amor; ou havia se convertido em profeta silenciosa do caos; ou andava metida com drogas.

Naquela região da cidade, Lilli era o centro das atenções. Todos os olhos se voltavam para ela involuntariamente, a todo instante. É verdade que apenas alguns comentavam, mas os olhos eram unânimes. Ela estava em um transe desesperador. Havia quem tentasse despertá-la – conhecidos e desconhecidos –, quem arriscasse chacoalhá-la ou até derrubá-la, mas, quando caía, ficava no chão, inerte até que em um descuido dos olhos alheios, desaparecia e tornava a aparecer em outro ponto qualquer, na mesma condição.

O tempo, único ente lúcido de toda essa história, se fez passar com a velocidade exata para que toda a comunidade propusesse, em convenção individual, aceitar Lilli da forma como passara a ser: indecifrável. Agora ela já estava incrustada na personalidade múltipla daquele espaço geográfico e, ainda que complexa, passava despercebida aos olhos e bocas de todos. Muitos calendários foram trocados até que ela voltasse a ser o centro das atenções.

Foi em uma tarde improvável, daquelas em que o mundo ocupa-se em observar cada pessoa ocupando-se com seus problemas pequenos e individuais, cegos às desvirtudes maiores. Nesse dia, Lilli atravessava a rua com a mesma parcimônia de longos anos quando freiou tranquilamente do meio do asfalto, atrapalhando o tráfego.

Seu rosto, em câmera lenta, converteu-se em pânico sufocante. As veias saltaram do pescoço, a boca esticou no limite da elasticidade da pele, os dedos enrijeceram e os olhos esbugalharam ainda mais. Foi a perfeita visão do desespero. Todos ao redor pararam o que faziam, entendendo a chegada de algum momento decisivo.

Então as órbitas de Lilli tremeram violentamente e, de cima para baixo, retomaram o negro jabuticabal. Ao mesmo tempo o mundo todo tremia em um sacolejo incontrolável. Depois disso a boca fechou, as veias recuaram e os dedos relaxaram. Todo o pavor contido naquele micro espaço de tempo se transformou em paz e, com a consciência livre do peso dos males mundanos, voltou a observar as pessoas que, deitadas, apresentavam-se dominadas por uma culpa anterior ao pecado original. E os olhos, cada par de olhos, eram agora pérolas.