segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Preço

                                                                               Arte: Marlene Dumas


- Ei, mocinha! Isso, você. Venha cá... Quanto é? – Ela analisou meu carro antes de dar o preço. Viu que era um simples automóvel de companhia e achei que, por isso, seria menos empreendedora. Odeio as empreendedoras, tão materialistas...

- Oitenta contos, gato. Completo! Só para você – apoiou-se no generoso decote – porque acho que acabei de me apaixonar... – Era tudo mentira e eu sabia disso. Não passava das três da tarde e esse era o preço noturno, quando o valor agregado aumenta na medida da libido masculina.

- Gata, vou te dizer, ofereço trinta por uma boa cantada de microfone – ela sorriu desinteressada – e seja razoável que preciso celebrar!
- Olhe bem para isso tudo, cara. Acha que valho só esses seus trintinha?
- Acho que vale um milhão, mas trinta é só o que posso oferecer. Além do mais, escolhi você pra compartilhar esse momento de alegria. Topa? – Ela pensou durante uns segundos.
- Só oral? Você é rápido? – Demonstrando menor resistência.
- Isso depende de você... – Procurei manter o controle. E o foco.

Esticou-se afastando o corpo da janela e ajeitou o decote. Não era exuberante, mas, o reflexo do sol deu certa graça à sua silhueta. Eu sabia que ela aceitaria minha oferta. Essas profissionais de rua estão nessa por necessidade, mais que pelo prazer. Deu a volta e entrou.

Ajeitou-se confiante no banco de passageiro e exigiu adiantado, antes de qualquer coisa. Entreguei-lhe as notas, que se perderam no fundo da bolsa, e perguntei seu nome:
- Me chama de Jennifer... – Nome de guerra, como eu prefiro. “Jurema” não teria a menor graça!
- E então, o que estamos celebrando?
- Acabei de fechar uma venda magnífica! Sou promotor de vendas – fez uma cara de “pouco me importa” que foi impagável – É patético, eu sei, mas esse contrato com o hospital pode ser o passaporte para eu sair finalmente dessa área!
- E o que você vende?
- Remédios! – Voltou a demonstrar interesse.
- Então vou lhe dar uma comemoração inesquecível! – Desabotoou minha calça de sarja e, sem nenhum pudor, começou a trabalhar ali mesmo, em pleno centro da cidade. Mesmo tenso, não interferi. Que tipo de homem seria eu se interrompesse aquele momento?

No carro, protegido apenas pelo filme escuro dos vidros, tocava uma música randômica. O silêncio de ambos acabou potencializando a melodia e reconheci In My Life, Beatles. Inapropriada, mas bem-vinda. Acabei percebendo também que ela agora disfarçava um choro.

Não interrompera o serviço, mas o som abafado dos seus soluços me desconcentrava. E as lágrimas faziam cócegas nas minhas coxas.
- Escute, pare um instante. O que está acontecendo? – Ela então desabou indefesa.
- Desculpe pode ficar com seu dinheiro, eu estraguei tudo, vou embora! – Não era do meu feitio se importar, mas fui tomado por um sentimento estranho. Compaixão.
- Calma. Me conta... – Ela então vomitou sua vida inteira em cima de mim e eu (ainda incrédulo comigo) prestei atenção em cada uma das suas palavras.

Me contou que era moçambicana e tinha chegado aqui há alguns meses. Veio para concluir o doutorado, mas acabou nas mãos dos piores sujeitos. Não tinha mais os documentos e nenhum dinheiro extra. Não sabia chegar à universidade e vivia sob o efeito de drogas que nem sabia o nome..

Aquilo realmente me comoveu. Uma história digna dos melhores prêmios do cinema acontecendo bem na minha cara. Perguntei por que a música tinha despertado tal sentimento e rebateu que era o que ouvia quando chegou por aqui, quando ainda tinha sonhos.

Pela primeira vez, senti vontade de ajudar o próximo. Minha avó teria ficado orgulhosa de mim. Depois de enxugar as lágrimas ela finalmente se recompôs e perguntou se devia continuar. Me dei conta que ainda estava exposto e neguei a oferta abotoando minha calça.

Impulsivamente acelerei o carro e, algumas quadras à frente, perguntei se ela sabia ao menos a cidade onde ficava a universidade. Ela disse “na capital”. Peguei a saída para a rodovia. Ela sorriu feito donzela resgatada e não se importou de passarmos a madrugada viajando.

Me contou sobre sua paixão pela biologia e o quanto se interessava por botânica. Era esse, aliás, o motivo de estar no Brasil e, embora fosse de família humilde, no interior de Moçambique, sempre pesquisou as ervas e plantas tupiniquins. Agora sentia falta de casa.

Não tinha contato com os familiares e não havia telefone ou qualquer outro meio de comunicação na sua residência africana. Não teve tempo de apontar seu endereço aqui, pois, também, não tinha endereço. Era jovem e cheia de planos, não fosse por mim, estaria perdida.

No meio da noite, duzentos quilômetros depois de abastecer o tanque, a fome tomou conta de nós e eu precisava esticar minhas pernas. Estacionamos em uma parada de caminhoneiros bem escura, onde havia um restaurante vazio. Ela preferiu ficar no carro, fui atrás de comida.

No percurso não encontrei viva alma, apenas algumas discretas luzes perdidas. Voltei frustrado e com a mesma fome, para dar as más notícias só que, quando cheguei, o carro não estava mais lá. Pensei no pior! Tinham nos seguido e agora a sequestraram. Provavelmente a matariam!

Antes de entrar em pânico, perdi o ar e, por total consideração de hipóteses, tirei a carteira do bolso para conferir o dinheiro, os documentos e os cartões. Não havia mais nada lá. Tateei os outros bolsos e o celular também não estava lá. Ordinária! Tão sorrateira que nem percebi!

Agora eu estava no meio de lugar nenhum, no alto da madrugada e sem nenhum suporte. Vaguei por toda a madrugada tentando chegar a algum lugar. Nenhuma cidade! Caminhei incessante sob o sol do meio dia e não houve um carro que passasse por aquela estrada dos infernos!

Lá por volta do fim do dia, quando eu já delirava, passou por mim um caminhão grande e em seguida encostou. Quando o alcancei, percebi a preocupação estampada no rosto dele:
- Está perdido, colega? Logo anoitece e aqui não é lugar seguro para andarilhos! Precisa chegar a algum lugar?
- Me leve para onde você for, amigo. Preciso de água, comida e um telefone. Fui roubado... (hesitei) por uma puta!

Ele prontamente ofereceu o banco de passageiro, como se entendesse meu suplício e divagou:
- Não dá para confiar em puta, colega! Tem que ficar com os olhos bem abertos! – Apenas concordei, enquanto ele concluía – Mas eu sei como é, já entrei em cada uma! E a estrada é um lugar muito solitário... Agora, por exemplo, estou a dois meses dirigindo sozinho. Nem puta cruza meu caminho...
- Amigo, estou delirando de sede e fome, pode me ajudar com qualquer coisa?
- Claro, parceiro, é aí que eu quero chegar! Eu ando muito sozinho. Carente, entende? Você tem sede e fome. Estava pensando se não podíamos nos ajudar.
- Você tá falando sério, cara? Tá me oferecendo comida em troca de sexo?
- Pô, mas não precisa ser assim, tão formal, né? Não se trata de uma transação comercial, entende? É mais uma troca de favores entre chapas!– Sorriu os poucos dentes que tinha, sujos e encavalados. Como é teu nome, parceiro?

Primeiro pensei em como mataria o desgraçado, nunca me senti tão subjugado em toda minha vida. Mas respirei bem profundamente, pensando na água e em qualquer coisa para mastigar e então respondi à pergunta:
- Me chama de Jennifer...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Coronel Nascimento: O Cavaleiro das Trevas


Saí agora de Tropa de Elite 2. Tão agora que talvez até esteja na sala ainda, juntando grãos de M&M´s que rolaram pelo chão. Estou extasiado (e vencido pela porção de confeitos de chocolate maior que minha gula). Extasiado porque o filme é uma obra densa e complexa.

O filme e o próprio Roberto Nascimento, agora promovido a Coronel. Outra roupagem para quase outro personagem. Ainda melhor. O Cel. Nascimento deste filme, já consagrado como o grande super-herói da ficção nacional, tornou-se completo com o segundo volume do filme.

Se antes, um bloco maciço e indestrutível de titânio, agora reflexivo e frágil ao reconhecer os limites da sua força. E fica fácil entender a trajetória do personagem (enquanto consolidação heróica) se considerar a construção de um super-herói tradicional. De Superman a Batman.

Quando surgiram, não tinham maior atributo que a invencibilidade. Tomavam seus sopapos e pontapés, mas, acabavam vencendo seus duelos, invariavelmente. Com o questionamento dos fãs, esses personagens foram se humanizando e adotando conflitos existenciais. Fraquezas.

Para o Cel. Nascimento não foi diferente. Em Tropa de Elite 2 o policial militar é, também, humano. Claro, sua carcaça titânica ainda permanece tão espessa quanto no primeiro filme. Mas aqui o soldado chora. E carrega toda a nação com suas aflições, difícil não compadecer.

O roteiro do filme é complexo (mas não confuso) e muito bem engendrado. Salvo a artificial narração da abertura e os momentos onde se confunde o que acontece com o que o Coronel esperava que acontecesse, o diálogo é impecável e vibrante. Flui bem do pesado ao divertido.

Não sei se melhor que a grande obra (na minha humilde opinião) que é Cidade de Deus, mas, indiscutivelmente melhor que o primeiro capítulo dessa história particular de guerra. Tropa de Elite 2 é um dos raros exemplos de superação na continuação. Me surpreendeu e convenceu.

De dispensável fica apenas o merchandising, cada vez mais embutido descaradamente nas obras nacionais. Fonte necessária de patrocínio, talvez. Mas precisam descobrir um meio de diluir a poluição publicitária entre os takes. Tropa dispensava, se pagará em bilheteria.

E o infalível Nascimento, mesmo com toda sua falta de moralismo e seus preconceitos pós-conceituados (é a história sob a ótica dele, afinal) também conquista com seu carisma de anti-herói turrão. Padilha acertou, Moura idem. Item de coleção. Próxima parada, DC Comics!

domingo, 17 de outubro de 2010

Buk Meu Caro, e o Futuro?


Ando brando demais. Polido demais. Debruço-me sobre o caráter tórrido e lascivo do velho Buk e penso: Não sei ser homem. Mas esse velho soube! Não pela sujeira ou pela perversão. Mas por, apesar delas, fazer-se notar nos cantos escuros dos botecos fedorentos. Cru e bruto.

Já eu não. Sou dos limpinhos... Cheirosinho demais até. Falta-me o pigarro e a voz rouca da ressaca monumental em plena madrugada de segunda. Displicência. Quero a imaturidade de afligir os editores pelos prazos estourados, não a mim. Quero arte sobre o profissionalismo!

Dedicar-me ao prazer, ainda que sado (ou maso), vez ou outra. Quero a luxúria artística de gozar meu humilde talento quarta-feira ao meio dia, depois de acordar com a boca seca. E só! Nobel é consolação, Pulitzer é estupidez. Não peço aplausos, só um brinde e taças tilintando.

E uns doze pares de olhos devotos, para me manter inspirado e sustentado. Alguns usuários dessa literatura desprendida das agruras da gramática. Aliás, cago e ando para a gramática. O dilema? Me cago todo dos que se importam com ela e, na mesma medida, dos que me cagam.

E me importo, também, com palavras cadenciadas. Minha estrutura pende mais para o fluente que para o correto. Adotei: “O português correto é o português claro, não necessariamente correto.” – A frase da minha vida. Dela em diante, decidi que podia escrever sem culpa.

Mentira! Vivo a mea culpa de não ter base. Sou uma fantasia. Leio tanto quanto... toco banjo! Almejo a indiferença crítica e a defendo aqui, mas cá estou, imediatamente medindo minhas atitudes literárias e nadando em subterfúgios. Sou um fracasso... embora em transformação!

Mas estarei satisfeito quando o gosto ácido da bílis subir pela garganta dos leitores através das minhas palavras. Na verdade quando a bílis finalmente despejar-se nas linhas dos meus textos. Ah o velho Buk... Meu fígado jamais produzirá uma bílis espessa e mal cheirosa como aquela!

Tão evidente no altruísmo dissimulado e podre do ego. Tão belo, complexo e egoísta. Eis o homem: A mais pura e definitiva rosa de Hiroshima. E como soube entender a espécie o velho. Como eu queria entender. Mal sei de mim. Graças a Eve tenho a ele, um pouco de iluminação.

Graças a quem lê, tenho esse pequeno esqueleto literário que chamo de minha obra. Tão esguia e raquítica, porém viva e hormonal. Crescente. Ofegante e imatura algumas vezes. Sincera. Não sou escritor, por ora. Mas escrevo. Buk e eu. O tempo passa. Hobby ou profissão?

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

SWÚltimo


Dá uma sensação boa de não domingo, escrever em pleno domingo, com um feriado logo ali na terça próxima. E vem a calhar, depois de um sábado “peculiar” em Itu. E paro em peculiar, por ora, deixando os adjetivos mais específicos para as próximas linhas. Melhor respirar!

Estou ainda reunindo forças para expor com precisão o sábado. De rock, mas não só isso, nem perto disso. Será tarefa complicada transpor todas as sensações (absolutamente novas) de estar na abertura do SWU, evento monstro realizado na mini estância megalomaníaca de Itu.

Tinha até ontem, à flor da pele, a experiência do meu último grande festival, um ano atrás. O Maquinária. Ah o Maquinária, aquele do Faith no More e Jane’s Addiction; de introspecção, organização e paz. Que saudade dos bons fluidos dos festivais de outrora. Pois é, tão recente.

Mas vamos aos detalhes: O SWU prometia, na primeira noite, um evento inesquecível com apresentações de Los Hermanos (voltando aos palcos depois de alguns anos) e Rage Against the Machine (reunidos há pouco, pela primeira vez no Brasil). E outras boas surpresas.

Com toda minha displicência, decidi na semana do show ouvir o restante das bandas que iriam se apresentar nos quatro palcos do festival e acabei encontrando Apples in Stereo, uma oferta recente do meu irmão, que dei pouca bola na ocasião. Realmente muito divertidos, quis ver.

Daí vinha Infectious Groove, The Crystal Method e Mallu Magalhães como atrações que valiam por estarem ali, inclusas no preço. Com a desbravante campanha sonora de descobrir o que rolaria, conheci The Mars Volta, The Twelves e Letuce + qinhO. Pronto a lista estava completa!

Aí começou a bagunça (por enquanto culpa minha). Os horários se misturavam e algumas bandas seriam sacrificadas. Los Hermanos e Rage Against estavam a salvo. Do resto, o que tivesse sido escalado em qualquer horário oportuno seria contemplado com prazer.

No que me cabia, o plano era reproduzir as sensações do Maquinária e talvez turbiná-las, conhecendo agora o potencial emocional destes eventos. Estaria sozinho no meio de muita gente, com tempo para mim e ouvindo bandas que me remetiam à nostalgia.

Outra ruptura com o sólido esquema da minha programação foi o oportuno convite de uma parceria inesperada. No primeiro impacto, confesso, de negação, ressenti calado! Em seguida a aceitação e, depois de tudo, o alívio da companhia certa e fundamental para a ocasião.

Ainda era terça e tudo isso já tinha balançado minha modesta organização. No decorrer da semana descobri os cem reais que me custariam estacionar o carro e, mais tarde, descobri que cem reais e um quilômetro e meio de distância para o local do show. Bolei um plano, estúpido!

As alternativas de garagem eram: A do quilômetro e meio por cem reais, quinze quilômetros e cinquenta reais, no kartódromo de Itu ou à sorte de Deus na rodoviária municipal, vinte quilômetros de distância. Todas ofereciam ônibus até o local do show e aportei na rodoviária.

Tinha ido sozinho até a cidade e os descontos por estar com o carro cheio não me fariam efeito. Além do mais, me pareceu sensata a decisão de poupar algum trocado por quinze minutos a mais em um ônibus lotado. Minha parceria então chegou, vindo do céu, e partimos.

Tudo andava perfeitamente dentro dos conformes embora alguma coisa soasse estranha. Não sei bem o que era ainda, mas eu não me senti acolhido naquele campo. Fiquei contente de não estar sozinho e, melhor que isso, bem acompanhado. Ali sim me sentia acolhido.

Pingamos de tenda em tenda ouvindo os shows menos importantes. Perdemos algumas aberturas, dispensamos alguns encerramentos e perambulamos até que chegasse o momento alto dos Hermanos ou do Rage Against. Acabei perdendo Apples, o único triste sacrifício.

A distância para o palco dos Hermanos era considerável mas era possível vê-los, minúsculos, lá no palco. Foi bonito o sentimento rememoriado e a possibilidade de cantarolar quase todas as canções. Raro. A apresentação impecável não surpreendeu, apenas atendeu perfeitamente.

Mais tarde, sem grandes expectativas, Rage entrou e, mesmo carregando o fardo de ser a possível última banda idolatrada da minha adolescência rebelde, não despertou qualquer euforia. Talvez porque o show, certamente vibrante, rompesse o clima a cada interrupção.

Foram três ao todo: A barricada que cedeu e o som que foi cortado, duas vezes. A cada interrupção a sensação, em processo, evaporava. Ao menos, todas as músicas esperadas foram vociferadas por Zach de La Rocha e, mesmo muito longe do palco, o bate cabeça nos alcançou.

O mais exaltado batedor, dessa vez, notou logo meu ímpeto pacífico e protetor e, em um gesto solidário, abraçou sua acompanhante construindo uma pequena fortaleza ao nosso redor. Assim, os que estavam dispostos a se ferir, afastaram-se respeitosamente alguns passos.

Quando acabou senti alguma coisa estranha, um pavio que não incendiou. O SWU não tinha despertado nenhum sentimento em mim. Parecia nascido com o destino apócrifo de não constar nos meus autos. Mas isso ainda iria mudar. O inesquecível veio a seguir.

Eu poderia ter notado pelo homem nu que cruzamos na via sacra rumo à saída. Foi esse tipo de pitoresquice que ficou faltando. O rapaz andava pacificamente sem qualquer ornamento que protegesse as partes e, pelo inusitado, mereceu meu respeito. Mas a noite não se salvou.

Na fila do ônibus, puro caos. Como conter cinquenta mil jovens impacientes? Todos tinham seus motivos para ir para casa. Alguns pegariam mais ônibus, para outras cidades. Uns para outro estado. O fato é que estar pacificamente na fila certa não me colocou dentro do ônibus.

Depois da fila inútil, o pessoal da companhia rodoviária abdicou da responsabilidade, confiando apenas no bom senso juvenil. Ninguém mais sabia onde as filas estavam, que ônibus ia para onde e qual era o ponto de partida. Os ônibus, aliás, já chegavam lotados. Explica?

Fácil! Os menos civilizados forçavam a porta e invadiam os assentos, muito antes do ponto. Logo os mais civilizados fariam o mesmo. Em seguida, até eu! Era uma selva e podia ter sua diversão não terminasse como terminou. Levamos uma vida naqueles vinte quilômetros.

Invadimos a condução à meia noite e vinte, aproximadamente. Despencamos na rodoviária às quatro e meia da manhã. Tente imaginar quatro horas de pé, em um ônibus circular, com o dobro da capacidade! Ainda estou sem analogias para uma das sensações mais boçais que vivi.

O confinamento e a impotência pela necessidade. Sem o ônibus, jamais chegaria ao destino. Com ele, chegaria ao inferno, antes da rodoviária. E provavelmente ficaria por lá, se desse para dormir, por algumas horas. Eu só pensava que, uma vez no carro, mais um trecho, dirigindo.

O mais irritante é saber que teria aguentado se mais moleque, seria fácil se o dia tivesse sido excepcional. O mais irritante é carregar essa memória do SWU. Um dia, quando não me lembrar mais quem tocou, ainda me lembrarei desse maldito ônibus. Pouco valeu a pena.

Por sorte, não estar sozinho me fez manter a compostura. Modéstia à parte, agregar boas companhias é um talento que tenho e, por esse preciso anjo (que voa, ouvi dizer), preservei minha integridade não tirando a roupa aos berros, às três da manhã. Mas beirei a loucura ali.

Hoje de manhã, domingo, acordei com a pressa de um domingo qualquer e a primeira notícia que tive foi de uma conhecida que conseguiu entrar no ônibus às seis da manhã! As SEIS! Pelo menos a essa hora eu já dormia em casa. Mas penso se ela manteve suas roupas, e a sanidade.

O cruel de todas essas mil linhas é que passei o dia estragado – não fosse por um cinema de última hora (assunto para outro texto) – e agora estou sem sono. Não me sinto aliviado com o desabafo (aliás, mais confuso) e, pode ser uma decisão precoce, mas, acho que aposentei...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

                                                                                              Arte: Deni


Quando entrou na minha vida, mansa e sazonal, não causou alvoroço e não fez questão de se fazer notar. Não pretendeu minha família e nem se apresentou aos meus amigos. Éramos só os dois, ainda que cercado de conhecidos. Só tinha olhos para mim e fui entrando no seu jogo.

Nos descobrimos juntos, em uma dessas noites despretensiosas da juventude. Quase passamos despercebidos ao flerte torpe do outro, mas, soubemos bem ali que estaríamos predestinados, cedo ou tarde. O tempo passou e, vida feita, caímos no colo do destino.

Me preservei, no início, e dissimulei um desinteresse. Ninguém se entrega assim tão sumariamente. Era o meu jogo até então, ter o capricho de desdenhar a devoção alheia. Eu estava vislumbrado, embora contido. Moderado, mesmo que, entre meus botões, fascinado.

Aquela presença ali, perto de mim, dentro de mim, minha, cativava meus desejos adormecidos, tão sórdidos. Era pura, autora. Toda essência e toda origem. Aquilo que o ser humano não é capaz de ser. A musa inerente e eterna da arte.

Voltei a pintar. Por ela. Com ela. Para ela. Mas já não reproduzia mais os traços lineares nem sobrepunha os tons coerentes de antigamente. Incorporei o asco ao realismo e não tinha mais mão para o impressionismo. Minha arte, tão particular, era totalmente minha agora. E dela.

Naquele momento eu já estava fundido àquela fonte inesgotável de inspiração. Sem nenhum pudor. Se com ela sempre um mar (revolto) de novidades mágicas, então, sempre com ela. E como criei naquele período! Não sabia mais da vida que acontecia do lado de fora do ateliê.

Vivíamos a arte. O tempo todo entorpecidos, comendo comida enlatada. Pintava com o óleo do atum. Sangue, esperma, urina. Gema de ovo. Qualquer liquido, toda secreção era inspiração e obra. Apesar do odor, a casa não fedia, exalava arte em todos os cômodos.

Deram minha falta. Me deram por morto, inclusive. O pessoal do escritório, como eu não voltava, mandou uma coroa de flores para a casa de minha mãe. Quase serviu para o velório dela, tamanho o choque que a velha levou! Foi nosso primeiro conflito, a família no meio.

Veio a pressão. Tomaram as chaves da minha masmorra, sim, do templo meu e dela. Já não tinha mais a liberdade de viver pela arte. Toda a explosão criativa que me proporcionava, definhava em mim sem destino, sem tela. Pintava os versos dos documentos na repartição.

Nunca mais deixei de criar, nunca mais deixei a arte e nem a deixei. A razão da existência era finalmente clara para mim. Entretanto, pelo menos, não tentaram nos separar, teriam de ser loucos! A função administrativa logo voltou a cercear minha vida. Desculpe, a nossa.

Fugimos. Em nome daquilo que nos definia: O incrível talento mútuo para a arte. Eu sem ela era ordinário. Ela sem mim, estado emocional. Pintamos o mundo, felizes e completos. Dois completos autistas, aliás. Não esperávamos nada em troca, dinheiro ou reconhecimento.

Depois de muito tempo nos acharam. Ali eu já estava velho demais para continuar fugindo. Mesmo assim intervenção. Hoje ainda pinto, quando afrouxam a camisa. Continuo com ela, como pode imaginar. E não me arrependo de um só dia em que estivemos juntos nessa vida.