sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Oportunista


Certa vez tomei quinhentos contos emprestados de um grande amigo. Moleque justo, poupara toda a grana que ganhara desde os quinze anos para financiar seu próprio carro aos dezoito. Era o sonho dele, meu e de qualquer outro jovem naquela época. Mas para poucos.

No fim das contas tomei nem a metade do que tinha arrecadado, apenas quinhentos contos. Mesmo assim, tempos difíceis aqueles. Não dava para sair brincando com grana por aí. Pela amizade que tínhamos, ele topou segurar uns meses o carro, para quando eu quitasse a dívida.

O fato é que, dois meses depois, quando o prazo acabou, eu não tinha um centavo no bolso. Devo confessar que até já entendia o valor que tem o dinheiro na vida de um homem, mas meu talento para desperdiçá-lo, suprimia categoricamente minha necessidade de acumulá-lo.

Acabei inventando uma boa história sobre o motivo do empréstimo e a razão de não conseguir levantar o valor ainda. Ele confiava em mim. Amigos de infância. Consegui mais uns meses e ele jamais desconfiou a farra que fiz e as mulheres que comi com aqueles quinhentos contos!

Quando o novo prazo acabou, eu continuava desempregado e sem a menor pretensão de tal sacrifício. Nem pelo amigo. Mas precisaria convencê-lo novamente da minha falsa integridade. Afinal, eu andava tão duro que não podia arriscar uma amizade rentável como aquela.

Foi aí que tive a brilhante ideia que resolveria todos os problemas de uma só vez. Dizem que temos apenas uma grande chance na vida e, posso assegurar confiante, que aproveitei a minha. Não me arrependo do rumo que dei à minha vida depois desse fatídico episódio:

- Túlio, precisamos acertar as contas meu chapa, tá com um tempinho? – Me antecipei.

- Claro Guto, mas tá tudo certo? Resolveu aquele enrosco? – O cara se importava comigo.

- Não cara, mas também não é justo foder um amigo, não acha? Ta por aí andando a pé por minha causa!

- Que isso bicho, tenho a vida toda para colar a bunda no banco de um carro. Família vem primeiro!

- Pois é, mas você merece! Por isso achei justo considerar uns vinte por cento de juros. Seiscentos contos, beleza?

- Pô Gutão, nem precisa, mas se você diz...

- É isso mesmo, vamos só fazer umas continhas e depois disso, tocar a vida!

Ele concordou sem nem franzir a testa. A doce ingenuidade de uma amizade. Acenou positivamente com a cabeça enquanto eu inventava a situação lá em casa: O tio viciado em jogos, devendo até os punhos; minha mãe depressiva; a contenção de despesas. Até aí, fácil.

- Então cara, vou ter que considerar aquela viagem que te levamos para praia, lembra? Tiro os cem contos dos juros e tá tudo certo.

- Claro bicho, é justo. Já falei que nem precisava...

- E teve o telhado da Dona Judite que a gente quebrou indo atrás das pipas. Fiquei um ano sem mesada! Pô, tremenda sacanagem ! – Eu ri, tentando forçar segurança nos argumentos.

- É, mas eu também fiquei sem mesada o mesmo tempo, não te parece o mesmo prejuízo?

- Pô Tulião, você que tava em cima do telhado, bicho! Até hoje não sei por que paguei aquilo!

- É, acho que tem razão... Dá para eu assumir essa! – Respondeu ao meu riso, aliviei.

- Vou tirar cento e cinquenta nessa, fiz as contas!

- De acordo!

Até aí eu tava indo muito bem, meu plano diabólico começava a entrar sutil e rastejante pelas suas veias. O inocente garoto confiava de olhos fechados em mim. E nas baboseiras que eu vomitava em cima da dívida que assumi com ele. Estava na hora de pegar pesado, pensei:

- Aí tem os presentes de aniversário. Pô, nunca deixei minha mãe te comprar cuecas nem meia. Meu melhor amigo sempre mereceu o melhor presente! Só que isso custou os olhos da cara, você sabe!

- É, sei sim... – Nesse momento ele pareceu desconfiar.

- Então, se eu contar só os últimos dez anos, tiro mais duzentos. Parece certo? – Mantive a confiança.

- Hmm, acho que sim, pode ser. E o que mais?

- Nossa coleção de bonecos militares, tá contigo, né? Pensei em deixar contigo de vez por cinquenta. Já faz anos mesmo...

- Beleza Guto, compro sua parte então.

Cheguei a pensar que ele tinha sacado onde eu queria chegar. Na verdade, qualquer idiota teria sacado, e ele nunca foi um idiota! Mas acho que, no fim, ele tava meio perplexo comigo e quis ver até onde eu chegava. Respirei para manter a frieza. Já tinha pisado na merda mesmo...

- Lembra da Mari e da Carol, que a gente levou para a chácara do meu tio? Pô, ele acabou descobrindo e tu sabe que ele aluga lá. Veio me cobrar...

- É? Quanto?

- Cem contos por dia, ficamos três...

- Tá, mais trezentos contos, então?

- Não. Cento e cinquenta. Meio a meio ou eu estaria te passando para trás.

- É, SÓ por ISSO, você estaria me passando para trás...

- Bom, sendo assim, tu precisa me dar cinquentinha quando puder, beleza?

- E com isso nossa amizade tá quitada, digo, não nos devemos mais nada? – Sacou as notas da carteira enquanto eu concordava

Algum tempo depois, apareceu de carro no bairro. Fiquei feliz por ele, esforçado, trabalhador. Merecia o que plantara. Túlio sempre teve esse incrível talento para o sacrifício e nunca abriu mão da minha amizade. E gosto mesmo do Túlio, amigo para toda a vida.

Por conta dele nunca precisei trabalhar. Sujeitinho bom! Depois que casou me arranjou um quarto no porão da sua casa. Tenho minha própria mesada e recuperei a coleção de bonecos militares. Agora to de cama, porque caí do telhado esses dias tentando resgatar minha pipa!

domingo, 26 de dezembro de 2010

O Bom Velhinho Nicolau


Nicolau. Eis o velho avarento. Não “um”, porque não era qualquer, mas “o” avarento.O único ser humano capaz de estocar mais de oitenta por cento do holerite mensal e, no fim dos trinta dias entregar vitorioso, mais de quinhentos contos limpinhos ao banco.

O velho Nicolau nem sempre foi velho, mas, avarento? Ah isso ele sempre foi! Guardava cada centavo do seu suado salário e só gastava no que julgava necessário. Apenas e, exclusivamente, no necessário. Tinha uma relação muito dura com as cifras.

Começou cedo na vida. Aos quinze anos entregava peixes de casa em casa, graças à oportunidade que seu tio (peixeiro) ofereceu. Aos dezessete, realizava pequenas tarefas domésticas e aos dezoito, garantiu um emprego público no gabinete de um vereador.

Conquistara, assim, seus objetivos na vida. Um emprego estável, que lhe proporcionasse bom rendimento mensal e, paz interior para colocar seu único plano em prática. Quando concursou-se assistente do vereador, tinha menos de vinte anos e a vida pela frente.

Aos trinta destacava-se pelo empenho profissional. Nicolau optara por não envolver-se emocionalmente, nem sequer casar-se, pois, custaria um dinheiro dos infernos! Vivia sozinho em um quartinho de pensão, no centro da cidade, bem ao lado do escritório.

Levou mais de trinta anos de existência nessa indiferença social. Sem amigos, sem esposa e, principalmente, sem filhos (a maior fonte de despesa de um homem). Não chamava a atenção de ninguém e, poucos o reconheciam como colega de trabalho.

Sempre que precisava aliviar-se dos desejos mais carnais, dava um jeito de resolver-se sozinho, mas, quando era inevitável, sacava uma quantia mínima e perambulava pelas ruas sujas do centro, atrás das putas mais baratas. E negociava cada centavo seu.

Muitas vezes voltava para casa e dormia cedo, de consciência limpa, sem perder um tostão para as vadias salafrárias do centro. Outras vezes, no alto da madrugada, uma ou outra alma caridosa aceitava seus vinte contos por quinze minutos de prazer comprado.

Levou outros dez anos nesse ritmo morno. Era sopa do osso todos os dias. Muito medo de provar arroz e viciar-se na guarnição desnecessária. Fubá era sua grande regalia. Apenas em datas especiais. Acabou, por total acaso, com um problema na tireóide.

Virou um velho inchado, depois que aposentou-se. Não cativava nem mais as salafrárias do centro, perdeu o interesse estético de se manter apresentável socialmente. Cortar o cabelo ou fazer a barba tornou-se um capricho caro e, sem ele, poupava uns trocados.

Nunca tratou suas enfermidades, a não ser quando gratuitamente, pois, acreditava que o governo tomava muito do seu dinheiro em impostos. Deixou a inflamação na tireóide de lado e muitas outras moléstias. Por inspiração divina, nunca sucumbiu a elas.

Agora, já não tinha mais a pigmentação escura dos pêlos que tivera na juventude. Aceitava sua velhice como libertação para seu plano maior. Maior inclusive que seu credo ou qualquer filosofia pagã. Nicolau era pioneiro no que aspirava. E estava pronto!

Foi até o banco e sacou a enorme quantia que poupou por toda a vida. Olhou para as notas e não tinha nada que se orgulhar. Sem família, sem amigos e doente, fadara sua fortuna ao lixo. Isso se já não conservasse em si um plano mirabolante e mágico.

Todos os dias, depois das oito da manhã, tomava o ônibus da linha dois e descia na praça da catedral, a procura de alguém que ninguém sabia quem. Empunhava um grande saco vermelho. Às seis horas da noite, com olhar frustrado, tomava a linha dois de volta.

Repetiu por anos essa rotina. Uns três. Foi assim que o conheci, no meio do seu primeiro ano, lá na praça. Eventualmente o encontrava fitando os transeuntes, com olhar fixo. Esperando, enigmático, por alguma coisa inexplicável aos meus olhos inocentes.

Até que um dia, miraculosamente, seguiu um jovem executivo de gravata frouxa e ofereceu a ele sua pesada sacola. O garoto, desconfiado, levou uma das mãos à boca quando viu o conteúdo e, deu um passo atrás, enquanto escutava o discurso do velho.

O velho, da camisa vermelha, barba e cabelos brancos, feito algodão doce, cansado pela longa empreitada, esticou a sacola ao alcance das mãos do jovem e soltou confiante. Assistiu estático a caminhada apressada do garoto ao horizonte, com a sacola nas costas.

Perdendo-o de vista, suspirou profundamente, soltando os ombros sobre o peito e embarcou no inusitado ônibus da linha sete. Nunca mais foi visto. Nem procurado. Não tinha quem se importasse com ele e, seu papel, já havia sido cumprido na Terra.

O garoto, ouso dizer, vi num anúncio de revista esses dias. Acho que era numa dessas que mede a fortuna de um homem. Ele estava na capa e, uma frase de efeito incentiva-nos (seres humanos comuns) a acreditar no ser humano e em toda sua bondade.

Finalmente ele havia feito fortuna, graças ao velho. Vejo por aí, anúncios sobre um tal velhote, barba e cabelos brancos, que aquece a vida dos bons seres humanos. Basta um pouco de fé e num determinado dia ele te recompensa. Hoje sou eu que estou velho, não com essa bondade...

E é aí que eu jogo minha sagrada bíblia no canto menos iluminado da cômoda e, sarcástico, aviso ao vento e de bom grado, meu antigo senhor Jesus: “Te cuida Cristo, que, de presente em presente, um dia esse velhote toma teu reinado...”.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Vampira da Praça do Fubá


Quando eu era pequeno, havia esse mito da vampira da praça do fubá. Nunca morei noutro lugar que não num dos muitos prédios que cercam a praça. Centro da cidade, cidade grande. E desde bastante menino corro e brinco entre suas árvores. Mas isso apenas durante o dia.

De noite, a praça torna-se um lugar mal frequentado, segundo minha avó. Lotado de marginais. E a vampira. Quando menino, antes de dormir, eu caçava com os olhos a rainha dos condenados. Custou até que eu descobrisse não se tratar de nenhuma delas, especificamente.

Eram muitas vagando por lá. Por isso tratei de eleger minha própria vampira. Algumas semanas as observando e acabei encontrando uma linda pretendente: Branca feito algodão, cabelos negros e maquiagem pesada. O perfeito estereótipo de um ser notívago e soturno.

Nunca consegui, durante minha infância, descobrir como desaparecia e para onde ia minha musa ocultista. Eu dormia antes... Essa obsessão cresceu em mim como um desejo sôfrego e puro de estar com ela e ser dela. Compreende-la. Na puberdade esse ímpeto aumentou.

Ainda não entendia como funcionava seu mecanismo. Andava pelos becos mais escuros durante o dia, em busca da escuridão onde repousava aquela beleza sufocante. Estava enfeitiçado pela deusa das trevas, disposto a oferecer minha própria carne por sua eternidade.

Como nessa época eu já tinha conquistado certa liberdade, só voltava para casa depois que elas começavam a surgir na praça. Rigorosamente às sete da noite, pousava delicadamente minha musa. Imponente, jovial, aromática e perfeita. Não a encarava mais que três segundos.

Mas já tinha entendido como se configurava cada etapa daquele ritual misterioso e sensual: Um homem discreto e randômico se aproximava com algumas notas, ela conferia uma a uma e, então, desapareciam juntos pela noite. Pouco tempo depois ela voltava, sozinha e intacta.

Depois que descobri o que faziam, achei curiosa essa transação. Logo na praça do fubá que herdou esse nome depois da lei áurea, quando os escravos, jogados às ruas, vendiam ilicitamente a farinha que produziam, para sobreviver. Anos depois, era a mesma motivação.

Agora estava claro que eu precisava dela mais do que nunca. Meus hormônios adolescentes não cabiam no meu corpo ou nas minhas fantasias. Juntei o dinheiro de um mês todo e fui até ela. Sem saber como a abordaria, o que faria e como seria minha vida depois dessa noite.

Parei em sua frente e percebi uma hesitação. Mostrei-lhes as notas e ela olhou para os lados. Tomou-as das minhas mãos e perguntou o que eu queria. Dei os ombros e olhei para o chão. Ela pegou na minha mão e caminhou comigo até um velho hotel, dobrando uma esquina.

Lá, ela tirou cada peça de roupa minha e despiu-se bem devagar. Pôs os seios à mostra e era toda impecável. Lisa, alva, reluzente. Deu-me as costas e encantou-me com movimentos sutis enquanto descia a última e minúscula peça de roupa. Sorriu libidinosa por cima dos ombros.

Eu estava ofegante e inebriado. Nunca estive tão excitado antes. Tremia. Ela virou-se em minha direção protegendo o sexo, como se me guardasse uma surpresa. Bem diante de mim, soltou as mãos e agarrou-se à minha cintura. Tive uma sensação estranha nas minhas pernas.

Não entendia nada de anatomia feminina naquela época, mas o calor que senti com a aproximação dela, era muito parecido com o calor que eu oferecia. Mas devia ser assim, eu jamais saberia que não. Sei que aquela experiência mudou toda a minha vida. Numa única vez!

Acabei tendo outras experiências, menos promíscuas e certamente mais autênticas. Descobri belas coisas sobre a delicada e sensualíssima anatomia feminina. Terminei me casando com uma mulher exuberante. Construí família. Mudei-me para o outro lado da praça, logo ali.

Ainda hoje observo a vampira. Linda como há trinta anos. Intacta e eterna. Conservada pela obstinação falida de uma feminilidade deturpada. Muito mais feminina que muitas mulheres, porque precisa provar para todos o que deseja ser. E precisa provar para si. E é, para mim, tudo o que quiser ser, a vampira da praça do fubá.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Pecado e Redenção


Mordeu profundamente o fruto lustroso e tenro da árvore proibida. Cravou os dentes como se fosse a própria carne daquele velho tirano. Mastigou junto meia semente (pretendeu o osso do velho). Em seguida cuspiu a papa adocicada que formou na boca. Só queria provar seu ódio.

O velho observou incrédulo o gesto cruel e decidiu, definitivamente, expulsar aquela megera ingrata do seu pequeno paraíso, projetado com tanto amor para os dois seres mais medíocres que o universo tinha tido notícia: Ana e seu tapado irmão, que nunca teve nome.

A menina, ao menos justificava-se pela personalidade impossível. Absolutamente intolerável, mas respeitável. Já o irmão não passava de um robozinho estúpido, programado para repetir cada um dos desafetos da irmã com a mesma intensidade, ainda que sem saber o porquê!

Abriu-se o portão principal e, pela primeira vez desde que tinham lembrança, alcançaram o lado de fora do mundo. Ana suspirou a liberdade enfim conquistada, o moleque olhou para todos os lados e suspirou junto, fingindo entender do que se tratava aquela densa respiração.

Lá dentro da fortaleza, suspirou profundo o velho também. Fraco e derrotado. Teve um sonho muito tempo atrás e construiu aquele magnífico calabouço ao ar livre. Confeccionou dois serezinhos desde o nada, como se seus próprios filhos. Deu-lhes conforto, instrução e amor.

Não tinha grandes expectativas, só achou por bem oferecer amor a um mundo corrompido por tantos sentimentos vis. Recrutou dois jovenzinhos puros e os apadrinhou. No começo Ana era uma explosão de curiosidade, interessava-se por tudo e respeitava o velho. Para ela: Papai.

Tinham muito tempo livre e muito espaço. Também tinham lições de botânica, geografia e história. Aprenderam que só duas coisas eram proibidas: Desejar o mundo de fora e alimentar-se da árvore proibida. Nunca quiseram os motivos. “Só uma questão genesial”, dizia o velho.

O tempo passou e Ana foi tornando-se mais inquieta, já não aceitava as imposições à sua condição naquele território. “Ou a plena liberdade ou a tirania declarada”, inquiria ela. Estava cansada da pasmaceira e daqueles muros, precisava expandir-se...

O tapadinho, no começo, afastou-se da rebelde com medo de perder as regalias. Algum tempo depois foi trazido de volta ao bando dos revoltados, sob algumas sinceras ameaças à sua integridade física. Ficou instituído desde esse dia, que repetiria cada um dos gestos da irmã.

Culminou na mordida do fruto. Outro fruto, mesma árvore. No momento seguinte ao desaforo da Ana. No momento anterior à abertura dos portões. Tinham agora a liberdade almejada e, também, a não necessidade de retribuir amor ao repugnante velho. Não mais a mesma cama.

Porque era esse o amor do velho. Físico, tátil, rude, sujo. Um amor obscuro e velado, que imaginou incorruptível, se a educação não transpassasse seus domínios. Que moral teriam as crianças se educadas por ele? Como discerniriam o certo do errado? Não poderiam...

Mas de alguma forma aquela pequena insolente pesquisou o mundo de fora. Assassinou o sonho hedonista do homem que conquistara quase tudo o que cobiçou. Agora viviam livres, os dois. Livre de correntes, de violência consentida e falso amor. Livres do amor, essencialmente.

Tinham liberdade e fome. Liberdade e desamparo. Frio, medo, impotência. Tinham certeza que estavam melhor dentro do portão. Até o irmão, em um surto de vontade própria reconheceu os benefícios do mundo de dentro. A comida, o conforto, a outra liberdade.

Ana finalmente assumiu seu pecado: Vaidade. Quis ser maior que o velho e agora aceitava que jamais seria. Deitou-se com o homem da quitanda por uma maçã, tenra e vermelha. Era o símbolo da sua redenção. Ajoelhou-se ao velho e, no dia seguinte, o universo harmonizou-se.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Jonas, o Que Faz Seu Pai?


Havia só mais uma fileira de carteiras e pronto, Jonas contaria para toda a classe, inclusive para a professora, o que faz seu pai. Não tinha escapatória. O colégio era o único lugar no mundo (de Jonas) onde ele tinha a paz de não pensar na carreira constrangedora do pai.

“Meu pai é bombeiro, professora!”; “meu pai é vigilante!”; “meu pai é açougueiro!”; “mecânico!”; “carteiro!”; “coveiro!” – Todos tinham orgulho das profissões dos seus pais. Menos Jonas que, aos oito anos de idade, frustrara-se em duas fugas para fora da própria casa.

Os coleguinhas à frente iam logo dizendo o que faziam seus pais, esperavam a admiração geral, e imediatamente olhavam para trás, esperando que o próximo pai fosse menos poderoso que o dele. Jonas suava. Era sua vez! Sem pensar muito despejou uma ideia súbita:

“Meu pai, professora? Ele é um super-herói...” - Tinha um tom discreto e nada confiante na voz. A classe foi abaixo, às gargalhadas. Mas a professora pareceu interessada no que o menino tinha a dizer. Mesmo se o menino não soubesse o que dizer. As idéias foram surgindo.

“Ele guarda a roupa especial no porão de casa e ninguém entra lá, só eu! Aí eu ajudo a encontrar todos os bandidos do mundo. Ele disse que quando eu crescer vou ser super-herói também!” – Os meninos ainda riam, mas crescia neles a curiosidade pelo causo inesperado.

“Quando ele vai para a rua ele captura um monte de gente má, que faz maldade com criancinhas e diz que faz isso para me proteger, principalmente!” – Crescia agora, em Jonas, a confiança nas palavras e as ideias brotavam em sua cabeça como formigas em formigueiro.

“Ele cuida de todas as criancinhas, desde pequenininhas até as grandes. Porque ele adora criança! Lá em casa tá sempre cheio de criança porque lá é muito seguro para brincar!” – Jonas andava pela classe e contava cada detalhe da falsa profissão do pai. Agora todos o invejavam.

“A roupa dele é muito legal porque deixa ele invisível e por isso ninguém nunca vê ele, mas é ele que não deixa nada de mal acontecer!” – Os meninos olhavam para os lados procurando o pai invisível e destemido de Jonas, alguns reproduziam gestos marciais em sua homenagem.

“E depois de tudo isso ele ainda tem tempo para brincar comigo e jogar bola no parque. Eu amo muito meu pai porque ele cuida de mim e de todo mundo.” – Os olhos da professora brilhavam. Jonas não sabia onde aquilo ia dar, mas percebeu um vislumbre incomum nela.

Toda aquela fantasia durou até o fim da aula e o restante da turma acabou não dizendo o que seus pais faziam. Nem queriam mais. Todo mundo queria era saber sobre o “Raio Invisível” (já tinham o apelidado). Jonas não tinha remorso da historinha, gostara do resultado até ali.

Pela primeira vez entendeu o que querem os outros. Não a verdade, mas uma mentira bem contada. Por mais absurda que seja, se contada com esmero, é a verdade mais pura e sincera que qualquer ser humano espera ouvir. Tanto tempo perdido em aflição. Se soubesse antes...

De qualquer forma, esperou mais um tempo na sala porque a professora pediu. Satisfeito com sua nova popularidade e também a repentina vitória sobre a vergonha que tinha do pai. Depois que todos saíram, ela veio em sua direção com um grande sorriso e disse:

“Olha Jonas, metade da turma mentiu a profissão dos pais aqui, mas só você foi belo para brincar com a imaginação, parabéns” – Sentiu-se aliviado, mas desconfiado. “Quero dizer que vou pessoalmente levar você para casa. Preciso falar com seus pais. Que menino brilhante!”

O menino não esboçou nenhuma reação. Parecia desligado do próprio corpo. Criara um problemão ali. Foi em silêncio fúnebre, sacolejando pelas ruas esburacadas, no banco de trás do carro da professora. Chegando lá, desviou o olhar e correu para o sofá, baixando a cabeça.

A professora contou a história do menino, apontou todas as possibilidades de futuro, assumiu o amadrinhamento dele e se dispôs a ajudar na casa. Tudo pela admiração instantânea naquele garoto quietinho e sem amigos. “Mas afinal, o que o senhor faz?” – Quis saber.

Todos na casa olharam para o pai, aterrorizados com aquela pergunta inocente. Jonas mantinha a cabeça baixa. O pai passou bem do seu lado e foi à cozinha. Na volta, tilintando o que pareciam fósforos, trancou a porta da frente. No dia seguinte, deu no jornal popularesco:

“Tragédia na Zona Sul, família inteira morre queimada em barraco. Professora do filho está desaparecida e a polícia considera hipótese de envolvimento no crime”

domingo, 28 de novembro de 2010

Zico Global


Aquela linha era o que nos conectava naquele momento, e só a linha. A mais indireta e impessoal das conexões. Objetivos tão distintos que, invariavelmente, antagônicos. Um defendendo a liberdade e a vida; outro, o simples instinto de sobrevivência pela supremacia.

Perdi a batalha, o contato. Bem feito! Era um peixe pequeno, saciaria algumas horas de fome. Não passava de um bagrezinho insignificante e bigodudo, que, posso garantir, chacoteou minha derrota enquanto rebolava a vitória me dando as costas. Tinha o anzol preso à boca.

Joguei a praticidade urbana para o alto quando decidi que precisava de paz. Meus pais vieram do campo, meus avós idem. Sou de uma linhagem campestre que carrego orgulhosamente nas veias. Entretanto, menos presente que os glóbulos vermelhos do meu sangue anêmico.

Para piorar, jamais teria coragem de incutir um ataque a um mamífero, tal como eu. Eis a hipocrisia humana: Carne congelada é matéria amórfica, não tem cara de bicho. E peixe não chora, era minha única alternativa carnívora naquele antro rústico. Meu inferno particular.

Na cidade, grande metrópole, era respeitado. E a lei da selva urbana é medida em cifras, o mais poderoso detém mais números a seu favor. Pode ser esguio e debilitado, mas, poderoso se ações em alta. E eu liderava esse tipo de ranking. Só que a felicidade sempre mora ao lado.

Choquei o mundo dos negócios quando decidi que abortaria aquela vida frenética e estressante buscando a paz que todos os meus familiares só tiveram contato quando habitantes primitivos do mato mais virgem que nossa terra oferece: Os confins amazônicos.

Fui parar no Acre, com um sorriso que ocupava dois terços do meu ser. Leve como o grão de poeira que pousa em uma pluma. Não durou dois dias... Ali, responsável pela minha própria sobrevivência, tinha que conquistar, sem dinheiro, a energia que me sustentaria de pé.

E que falta me fez a grande capital (quando eu gastava pilhas de dinheiro em pratos ornamentados, elaborados e cheirosos (meu dinheiro mais bem investido)). Levei uma semana para conseguir manufaturar minha primeira vara de pesca, foi também a última. Um fracasso!

Não estava acostumado com humilhações públicas e aquele bagre contou para todo o Solimões sobre a minha impotência. Não podia ali com aves, carnes e, do bagre em diante, peixes. Restava-me os vegetais. Teria que descobrir o prazer nas folhas, tubérculos e frutos.

Não me fez mal as primeiras porções de inhame cru. Tampouco os açaís colhidos do pé ou as alfaces lisas e tomates extraídos diretamente de suas raízes. Passou a ser natural esse espírito naturalesco de vida, embora nem um dia sem sentir falta da carne suculenta na minha língua.

A sensação mais curiosa era a da resistência deles, seres quase tão amorfos quanto uma bandeja de carne congelada. Mas sacar uma batata da terra ou uma graviola do pé, era impor minha força sobre quem a possuía antes e, assim, subjugar o progenitor do alimento.

Não tinha esse ímpeto dominador, minha relação com a vida sempre foi de frieza e troca, geralmente oferecendo dinheiro por o que quer que fosse. Era mais fácil. Faltava ainda romper com esse veneno urbano de subsistência. Eu tinha que ser maior que o dinheiro, não?

É, não... Nessa busca pela redenção me embrenhei na mata fechada atrás de alguma tribo incorrompida. Quando encontrei, vislumbrei a limpeza do meu organismo poluído. Mas o pajé, dono de um português impecável, me recebeu na varanda da sua arejada casa de alvenaria.

E vestindo uma camisa do Flamengo, perguntou sobre minhas origens. Quis saber sobre o ídolo pregado à sua parede e tive que frustrá-lo, afinal, Zico tinha aposentado há vinte anos! Na semana seguinte, estava de volta à grande capital, currículos impressos. Feliz e renovado.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Sujeito Indireto


Já tem um tempo que eu to invisível pro mundo. Só que ultimamente também tenho me sentido invisível pra mim, sabe? Já sentiu isso? Uma sensação estranha de que se é espectador da própria história... Sei lá que história é essa... A forma como tudo aconteceu.

E tava indo tão bem. Saí da universidade já no meu próprio escritório e o telefone não parava. As coisas caminhando direitinho e num instante eu tava casado, condomínio de luxo e filhos no colégio bilíngue. A vida tirou férias e eu já não tinha mais aqueles desafios da juventude.

Meu sócio e eu éramos braço-direito um do outro, desde a época da faculdade. O cara se tornou um criminalista de primeira e eu, modéstia a parte, era muito competente, só que tributário. Não à toa nosso escritório decolou no primeiro ano, dois jovens recém-formados.

É... tudo ia bem! Aí um dia o cara me aparece morto e o mundo começa a desmoronar para mim. Por respeito a ele assumi sua família. Mulher e dois filhos. Uma fresca e um parzinho de mimados. Quase pirei para dar conta de todo mundo e de mim, no meio disso tudo.

As investigações iam bem. Uma morte bem embaraçosa: Estrangulado no próprio escritório, numa madrugada de terça-feira, com as calças arriadas. Não era vingança. Desconfiaram de crime passional e sua mulher o odiou, uma amante! Os filhos ainda resistiram mais um tempo.

Daí descobriram, com uma montanha de exames, que a amante era um homem. Ui! Os filhos só aguentaram até aí. Meu sócio, grande parceiro e amigo de todas as horas, um puta profissional de direito, passou a defunto, abandonado moralmente. Quase apagado. Ficaram os pais que, velhinhos, foram poupados dos detalhes. Eu me mantinha reservado.

E enquanto isso, administrava tudo. Os negócios, as famílias, a integridade dele. O sol ainda reluzia forte na minha pele. Liberdade, respeito, sucesso. As relações lá em casa, sempre tão mornas, esquentaram bastante. Minha mulher e eu, as crianças. Viajamos mais e nos amamos.

A família dele, ainda desamparada estava sempre junto. Tornou-se uma relação estranha e quase bígama, embora não houvesse verdadeiro afeto da minha parte ali. Era puro compromisso com alguém que teria feito o mesmo por mim se tivesse sido o inverso.

E como podia ter sido o inverso... Não demorou até os investigadores descobrirem que omiti uma série de evidências. Sim o assassino era eu. E sim, claro, o amante também. O motivo? Torpe e típico. Ele decidiu que não me amava mais, tinha medo de arruinar seu casamento.

Mas não tinha medo de arruinar minha vida, não é? Bebemos juntos, como habitualmente fazíamos madrugada adentro, e ele me vem com essa de “vamos deixar essa farra pra lá, não temos mais idade pra isso”. Eu amava muito aquele ordinário e sai por um instante de mim.

Bem, aí a ordem cassou meu registro e, grandes merdas, eu tava preso! Passei vinte anos lá, cela especial. Não tive uma só visita. Meus pais não foram poupados de nenhum detalhe. Sei lá que fim tiveram. Fui violentado, espancado, tatuado e jogava muito truco, nas horas vagas.

Essa foi minha rotina desgraçada. Com o tempo também fui esquecendo a vida que tive do lado de fora. Era isso ou a forca. Uma tremenda lavagem cerebral. Daí fecharam o caso e eu fui liberto. Não tinha mais nada a ver com o mundo. Eu tava em outra, pirando em mim mesmo.

Fui da minha cela direto para lugar nenhum. Não tinha mais endereço, profissão, família e minha maior referência era o tetra campeonato invicto de truco mineiro com o Peroba, que morreu de facada alguns meses antes de eu sair. Bom, sem o Peroba eu só tinha a rua.

Pra ser sincero não sei nem onde estou agora. Quando canso de um lugar, ando. Vou andando até acabar a cidade e ando mais, ate começar outra. Tento, sem muito esforço, me recompor, quando tenho momentos de lucidez. Aí descolo um bico qualquer e levanto uma grana.

Mas o peso do passado é muito grande. E se to sóbrio ele vem à tona. Aí eu enfio tudo o que eu ganho no fígado e durmo tranquilo mais alguns dias. Essa sensação de paz que me dá, depois do último gole, é um dos poucos prazeres que a vida ainda capricha em me fornecer.

Tenho sorte, acho, de ser hoje, esse resto de gente que eu sou. Não preciso de nenhum fardo social. Se eu quiser dormir no meio da rua eu durmo; se não quiser me limpar, fico imundo e fedido. Bebo cada centavo que esmolo porque é meu. E não olho no olho de otário nenhum!

Porque eu sou invisível, oras! Uma anomalia invisível que nem o cheiro podre permite se fazer notar. E honestamente, eu devia estar sóbrio quando me queixei disso... Haha, sóbrio eu fico mesmo um panaca. Caçando problemas. Bom mesmo é ser eu: Sujeito indireto da própria vida.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Feliz da Vida

                                                               Arte: Sueli Martini

Havia ali um homem feliz: Domingos. Completo idiota! Dono de uma felicidade genuína (habitualmente das crianças), sorria para tudo. Mais que para todos, ele sorria era para tudo! Não havia má notícia que tirasse o sorriso daquele bom homem. Irritantemente querido.

Domingos era do tipo inumano e não havia tempo ruim. Nem mesmo em dias de tempo ruim. Alguns tentavam estudar o bom astral daquele sujeito de vida medíocre. Torneirava em uma indústria de parafusos e, sem possibilidade de ascensão, especializava-se naquilo mesmo.

Era imbatível. Executava sua tarefa mecânica com maestria e, mesmo sem o devido reconhecimento, levava seu troco para casa no quinto dia útil. Sorridente, sentia-se recompensado pela vida. Não devia nada a ela e, nessa perspectiva, sentia-se grato.

Para Domingos tudo tinha jeito. Absolutamente tudo! As mulheres mais cobiçadas eram possíveis e os cargos mais altos seriam conquistados. Naquela cabecinha de ostra, os sonhos seriam, algum dia, alcançados. E todo aquele otimismo descabido, intrigava os da sua volta.

Inclusive Soraia, moça direita e boa cozinheira. Dotada de rara beleza. Assava os assados do homem, dia após dia, quando tinha o que assar. Na alegria e na tristeza, obrigou-a o padre. E levava uns safanões, às vezes, entendendo que a mistura era responsabilidade sua.

Domingos sorria, como se os tapas fossem doutrina doméstica à inocente mulher. Estava certo que antes que ela completasse vinte anos, aprenderia a fazer a comida render até o fim do mês. Soraia era a melhor mulher do mundo. Boa em respeitar a infidelidade de um homem.

Nunca reclamou uma só doença contraída no pouco sexo que faziam, afinal, o sujeito era bom homem. Tão feliz e inspirador. Voz mansa e jeito de covarde dengoso, jamais a desrespeitou em público. Todas as lições eram tomadas dentro de casa. Ali era homem, o íntegro sujeito.

E estava disposto as vinte e quatro horas do dia, contando seus sonhos possíveis em alto e bom som, para quem quisesse ouvir. Curiosamente, muitos ouviam e não duvidavam, tamanha era a sua confiança nas palavras. Domingos era um entusiasta. Que tremendo demagogo!

Só não conseguia se livrar do pequeno contratempo de urinar mundo afora, em todas as árvores, todos os portões, enquanto cantarolava as alegrias da vida. Gingava seu famoso passo descompassado, pé ante pé, pé sobre pé e, não raramente, pé para o ar, arrastando-se.

Por onde passava todos sabiam: “Lá vem Domingos. Maldito sujeitinho feliz, alguém tem que dar cabo nisso.” – E deu Soraia, subitamente corajosa, livrando-se pelo ralo do elixir mágico do marido. Passou um dia, passou o efeito, passaram as cores e a alegria.

Domingos passou a ser sujeito medíocre, assumidamente medíocre. Operário padrão, resmungão, sóbrio. Infeliz. A vida sorriu-lhe de volta, pela primeira vez. Não compassiva, mas, vitoriosa. E acenou cinicamente indicando satisfeita que o homem, enfim, não lhe devia nada.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A Gemealidade e as Torres


Não se conheciam, aliás, nem se imaginavam. Mas havia quem os tivesse visto, individualmente. Cada um no seu próprio espaço geográfico. E provocava alguma confusão a cena improvável. Eram dois opostos ao mesmo tempo em que pareciam ser a mesma coisa.

Não tinham nenhuma semelhança, embora fossem um reflexo vivo. Filhos dos mesmos pais, com toda a certeza. E não eram, na verdade. Eis a beleza! A ciência, hoje, desmentiria. Havia uma distância oceânica entre eles. Dois continentes. E ficaria assim, não fosse pela tecnologia.

Jonas, um rapagão de dezoito anos, curtia sua recente libertação da infância. Descobria o sexo, as drogas, a arte e a noite, enfim, a vida. Passava muito tempo na rua conhecendo o mundo pulsante e cosmopolita da metrópole. Quando entediado, tornava-se recluso, com seu laptop.

Malaquias era esguio e pálido. Seus vinte e sete anos, tão injustos, lhe davam a sincera aparência de nove ou dez anos a menos. Não descolava os dedos do teclado e os olhos do computador, por isso, o talento para a informática era inevitável. Programava web sites.

Sábado à tarde para um, domingo de madrugada para o outro e, finalmente, se encontram no mundo. Ambos vagando pelo labirinto eletrônico da internet. Dois jovens com o mesmo interesse libidinoso de satisfazer-se sexualmente, cessando o ócio de um dia improdutivo.

A página exigia exposição pela câmera e os dois dispostos, pescoço para baixo. A língua universal da comunicação virtual os aproximou e provocou uma química maior do que a semi-nudez. Discutiram Nietsche e o antigo testamento. Wilde e a copa do mundo da África.

Eram dois homens com interesses comuns. Envolveram-se além da frivolidade sexual daquela página de conversação e trocaram contato. Permaneceram em uma relação intelectualmente carnal por meses, até o desejo converter-se em necessidade transcendental. Precisavam-se.

Continuavam oceanicamente distantes e não reconheciam-se pelos traços faciais. Era o que os diferenciava dos outros casais movidos à perversão, a propósito. Tinham o interesse intelectual além do estético e o fálico, além do estético (sacramentando, mais uma vez).

Com alguma racionalidade placebóidica, decidiram que transformariam aquela distância binária em proximidade tátil. Faltava corpo ao relacionamento. E era um relacionamento. Completo, apesar da tela de cristal líquido. Estavam mais conectados que a própria internet.

Programaram-se e, um deles (faz nenhuma diferença qual!), predispôs-se a forasteiro. O choque dominou-os quando reconheceram-se na definitiva versão estrangeira de si. Todo o aeroporto se arrepiou ao ver o calor passional daquele par de gêmeos amando-se no saguão.

A similaridade física, para os dois, consolidava uma particularidade que os casava até o infinito. Podiam ser mais predestinados? Burlesco... E quem poderia considerar a hipótese? Dois sósias, apaixonados. Andavam de mãos dadas e trocavam carícias públicas, alguns tinham vertigens.

Tocaram essa vida, conceitualmente incestuosa, felizes. Ninguém dizia que não. Despediram-se jovens, pela janela, no celular, atropelados por uma aeronave, envolvidos em um escândalo mais perturbador que a visão daquele amor, num dia onze, em um setembro nova-iorquino.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Benção do Novo Grande Amor


Desciam pelas bochechas, freavam no queixo e depois pingavam, sucessivamente. Eram tantas, e todas tão sinceras. As lágrimas mais sinceras que já escorreram daquele par de olhos. Entretanto, não era nobre a missão. Dar aquela notícia, naquela data, não era de fazer bem.

Mas não havia outro jeito. Tinha que ser naquela data, a mais funesta do ano. Aliás, calhou de ser. Infeliz coincidência. Continuar a enganá-lo seria um erro, tanquanto se enganar. Dali em diante haveria outro que consumiria seu tempo, seu coração e seria preciso aceitar.

Para tanto vieram os vivos, juntos. Assim se conheceriam todos e ficaria claro que o respeito estava acima. Não tratava-se de substituição mas, além disso, da vontade de viver. Não foi fácil olhar para frente na vida. Tudo tão instantâneo. Encarava a lápide e queria apenas redenção:

- Amorzinho, que difícil tarefa essa de explicar a você que não te abandono, embora assuma aqui, diante de ti, que tenho outro em minha vida. Não há premeditação ou vingança, embora esse sentimento de culpa. Não faço para punir-te mas, sabe, sozinha não dá...

Estava de joelhos, frente à estreita lápide, debulhando-se em constrangimento por, naquele momento, perante aos dois grandes amores da vida, declarar a troca de valores afetivos. O óbito pelo ávido. O passado pelo presente. Só um futuro possível, embora, só se abençoada!

E cada vez que dirigia a palavra àquele bloco inanimado de concreto, sentia o olhar afetuoso que a acolheu por todo o tempo durante a vida. Aqueles olhinhos dele. Por isso a culpa. De parecer não respeitar o sacrifício da dedicação plena. Sem troca. Altruísta e perfeita: Inumana.

E tratava-se apenas do ciclo natural da vida. A necessidade admissível de ter alguém para compartilhar as coisas daqui. Não se escolhe quem fica ou vai. E quem prefere a solidão? Ela não sentia confiança em declarar a injustiça de colocá-lo em segundo plano. Tão devoto e fiel.

Só que negar a ele, tão nobre companheiro, o reencontro da felicidade, seria como envolver todos em uma grande mentira. E então a própria felicidade viraria uma farsa sem sentido. Fazia exatamente um mês que tinha falecido e hoje era dia de finados. Infeliz coincidência.

Contou à lápide como se falasse pessoalmente que não perdeu um dia sem visitá-lo e, no fim da primeira semana descobriu, nos arredores do cemitério, aquele que seria seu novo grande amor. Não foi imediato, mas, autêntico. E ele, gentilmente, a acompanhou nos dias seguintes.

Foi um perfeito cavalheiro e jamais ousou ultrapassar os limites. Mantinha-se zelosamente em silêncio, preparado para o amparo que sabia ter de oferecer eventualmente e, quase sempre, ficava horas ali. Nunca sequer se apresentaram, mas se amavam. Ela, pela culpa, justificava-se:

- Faz uma semana que ele está comigo lá em casa. Na nossa casa. Dei boa parte do que era seu para ele. Roupas, acessórios, conforto e, o principal, meu coração. Me sinto uma cobra ingrata, às vezes. Espero que entenda que sozinha não dá. Não te deixo, mas, desejo que se aceitem.

Aproximou-os então. Duas faces do mesmo amor, complementares. O que era vivo, pela primeira vez, desviou seu olhar atento, em respeito ao pedido dela, e fitou a lápide, esperando aprovação. Foi até bem perto e levantou a pata traseira caninamente, demarcando seu território.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Preço

                                                                               Arte: Marlene Dumas


- Ei, mocinha! Isso, você. Venha cá... Quanto é? – Ela analisou meu carro antes de dar o preço. Viu que era um simples automóvel de companhia e achei que, por isso, seria menos empreendedora. Odeio as empreendedoras, tão materialistas...

- Oitenta contos, gato. Completo! Só para você – apoiou-se no generoso decote – porque acho que acabei de me apaixonar... – Era tudo mentira e eu sabia disso. Não passava das três da tarde e esse era o preço noturno, quando o valor agregado aumenta na medida da libido masculina.

- Gata, vou te dizer, ofereço trinta por uma boa cantada de microfone – ela sorriu desinteressada – e seja razoável que preciso celebrar!
- Olhe bem para isso tudo, cara. Acha que valho só esses seus trintinha?
- Acho que vale um milhão, mas trinta é só o que posso oferecer. Além do mais, escolhi você pra compartilhar esse momento de alegria. Topa? – Ela pensou durante uns segundos.
- Só oral? Você é rápido? – Demonstrando menor resistência.
- Isso depende de você... – Procurei manter o controle. E o foco.

Esticou-se afastando o corpo da janela e ajeitou o decote. Não era exuberante, mas, o reflexo do sol deu certa graça à sua silhueta. Eu sabia que ela aceitaria minha oferta. Essas profissionais de rua estão nessa por necessidade, mais que pelo prazer. Deu a volta e entrou.

Ajeitou-se confiante no banco de passageiro e exigiu adiantado, antes de qualquer coisa. Entreguei-lhe as notas, que se perderam no fundo da bolsa, e perguntei seu nome:
- Me chama de Jennifer... – Nome de guerra, como eu prefiro. “Jurema” não teria a menor graça!
- E então, o que estamos celebrando?
- Acabei de fechar uma venda magnífica! Sou promotor de vendas – fez uma cara de “pouco me importa” que foi impagável – É patético, eu sei, mas esse contrato com o hospital pode ser o passaporte para eu sair finalmente dessa área!
- E o que você vende?
- Remédios! – Voltou a demonstrar interesse.
- Então vou lhe dar uma comemoração inesquecível! – Desabotoou minha calça de sarja e, sem nenhum pudor, começou a trabalhar ali mesmo, em pleno centro da cidade. Mesmo tenso, não interferi. Que tipo de homem seria eu se interrompesse aquele momento?

No carro, protegido apenas pelo filme escuro dos vidros, tocava uma música randômica. O silêncio de ambos acabou potencializando a melodia e reconheci In My Life, Beatles. Inapropriada, mas bem-vinda. Acabei percebendo também que ela agora disfarçava um choro.

Não interrompera o serviço, mas o som abafado dos seus soluços me desconcentrava. E as lágrimas faziam cócegas nas minhas coxas.
- Escute, pare um instante. O que está acontecendo? – Ela então desabou indefesa.
- Desculpe pode ficar com seu dinheiro, eu estraguei tudo, vou embora! – Não era do meu feitio se importar, mas fui tomado por um sentimento estranho. Compaixão.
- Calma. Me conta... – Ela então vomitou sua vida inteira em cima de mim e eu (ainda incrédulo comigo) prestei atenção em cada uma das suas palavras.

Me contou que era moçambicana e tinha chegado aqui há alguns meses. Veio para concluir o doutorado, mas acabou nas mãos dos piores sujeitos. Não tinha mais os documentos e nenhum dinheiro extra. Não sabia chegar à universidade e vivia sob o efeito de drogas que nem sabia o nome..

Aquilo realmente me comoveu. Uma história digna dos melhores prêmios do cinema acontecendo bem na minha cara. Perguntei por que a música tinha despertado tal sentimento e rebateu que era o que ouvia quando chegou por aqui, quando ainda tinha sonhos.

Pela primeira vez, senti vontade de ajudar o próximo. Minha avó teria ficado orgulhosa de mim. Depois de enxugar as lágrimas ela finalmente se recompôs e perguntou se devia continuar. Me dei conta que ainda estava exposto e neguei a oferta abotoando minha calça.

Impulsivamente acelerei o carro e, algumas quadras à frente, perguntei se ela sabia ao menos a cidade onde ficava a universidade. Ela disse “na capital”. Peguei a saída para a rodovia. Ela sorriu feito donzela resgatada e não se importou de passarmos a madrugada viajando.

Me contou sobre sua paixão pela biologia e o quanto se interessava por botânica. Era esse, aliás, o motivo de estar no Brasil e, embora fosse de família humilde, no interior de Moçambique, sempre pesquisou as ervas e plantas tupiniquins. Agora sentia falta de casa.

Não tinha contato com os familiares e não havia telefone ou qualquer outro meio de comunicação na sua residência africana. Não teve tempo de apontar seu endereço aqui, pois, também, não tinha endereço. Era jovem e cheia de planos, não fosse por mim, estaria perdida.

No meio da noite, duzentos quilômetros depois de abastecer o tanque, a fome tomou conta de nós e eu precisava esticar minhas pernas. Estacionamos em uma parada de caminhoneiros bem escura, onde havia um restaurante vazio. Ela preferiu ficar no carro, fui atrás de comida.

No percurso não encontrei viva alma, apenas algumas discretas luzes perdidas. Voltei frustrado e com a mesma fome, para dar as más notícias só que, quando cheguei, o carro não estava mais lá. Pensei no pior! Tinham nos seguido e agora a sequestraram. Provavelmente a matariam!

Antes de entrar em pânico, perdi o ar e, por total consideração de hipóteses, tirei a carteira do bolso para conferir o dinheiro, os documentos e os cartões. Não havia mais nada lá. Tateei os outros bolsos e o celular também não estava lá. Ordinária! Tão sorrateira que nem percebi!

Agora eu estava no meio de lugar nenhum, no alto da madrugada e sem nenhum suporte. Vaguei por toda a madrugada tentando chegar a algum lugar. Nenhuma cidade! Caminhei incessante sob o sol do meio dia e não houve um carro que passasse por aquela estrada dos infernos!

Lá por volta do fim do dia, quando eu já delirava, passou por mim um caminhão grande e em seguida encostou. Quando o alcancei, percebi a preocupação estampada no rosto dele:
- Está perdido, colega? Logo anoitece e aqui não é lugar seguro para andarilhos! Precisa chegar a algum lugar?
- Me leve para onde você for, amigo. Preciso de água, comida e um telefone. Fui roubado... (hesitei) por uma puta!

Ele prontamente ofereceu o banco de passageiro, como se entendesse meu suplício e divagou:
- Não dá para confiar em puta, colega! Tem que ficar com os olhos bem abertos! – Apenas concordei, enquanto ele concluía – Mas eu sei como é, já entrei em cada uma! E a estrada é um lugar muito solitário... Agora, por exemplo, estou a dois meses dirigindo sozinho. Nem puta cruza meu caminho...
- Amigo, estou delirando de sede e fome, pode me ajudar com qualquer coisa?
- Claro, parceiro, é aí que eu quero chegar! Eu ando muito sozinho. Carente, entende? Você tem sede e fome. Estava pensando se não podíamos nos ajudar.
- Você tá falando sério, cara? Tá me oferecendo comida em troca de sexo?
- Pô, mas não precisa ser assim, tão formal, né? Não se trata de uma transação comercial, entende? É mais uma troca de favores entre chapas!– Sorriu os poucos dentes que tinha, sujos e encavalados. Como é teu nome, parceiro?

Primeiro pensei em como mataria o desgraçado, nunca me senti tão subjugado em toda minha vida. Mas respirei bem profundamente, pensando na água e em qualquer coisa para mastigar e então respondi à pergunta:
- Me chama de Jennifer...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Coronel Nascimento: O Cavaleiro das Trevas


Saí agora de Tropa de Elite 2. Tão agora que talvez até esteja na sala ainda, juntando grãos de M&M´s que rolaram pelo chão. Estou extasiado (e vencido pela porção de confeitos de chocolate maior que minha gula). Extasiado porque o filme é uma obra densa e complexa.

O filme e o próprio Roberto Nascimento, agora promovido a Coronel. Outra roupagem para quase outro personagem. Ainda melhor. O Cel. Nascimento deste filme, já consagrado como o grande super-herói da ficção nacional, tornou-se completo com o segundo volume do filme.

Se antes, um bloco maciço e indestrutível de titânio, agora reflexivo e frágil ao reconhecer os limites da sua força. E fica fácil entender a trajetória do personagem (enquanto consolidação heróica) se considerar a construção de um super-herói tradicional. De Superman a Batman.

Quando surgiram, não tinham maior atributo que a invencibilidade. Tomavam seus sopapos e pontapés, mas, acabavam vencendo seus duelos, invariavelmente. Com o questionamento dos fãs, esses personagens foram se humanizando e adotando conflitos existenciais. Fraquezas.

Para o Cel. Nascimento não foi diferente. Em Tropa de Elite 2 o policial militar é, também, humano. Claro, sua carcaça titânica ainda permanece tão espessa quanto no primeiro filme. Mas aqui o soldado chora. E carrega toda a nação com suas aflições, difícil não compadecer.

O roteiro do filme é complexo (mas não confuso) e muito bem engendrado. Salvo a artificial narração da abertura e os momentos onde se confunde o que acontece com o que o Coronel esperava que acontecesse, o diálogo é impecável e vibrante. Flui bem do pesado ao divertido.

Não sei se melhor que a grande obra (na minha humilde opinião) que é Cidade de Deus, mas, indiscutivelmente melhor que o primeiro capítulo dessa história particular de guerra. Tropa de Elite 2 é um dos raros exemplos de superação na continuação. Me surpreendeu e convenceu.

De dispensável fica apenas o merchandising, cada vez mais embutido descaradamente nas obras nacionais. Fonte necessária de patrocínio, talvez. Mas precisam descobrir um meio de diluir a poluição publicitária entre os takes. Tropa dispensava, se pagará em bilheteria.

E o infalível Nascimento, mesmo com toda sua falta de moralismo e seus preconceitos pós-conceituados (é a história sob a ótica dele, afinal) também conquista com seu carisma de anti-herói turrão. Padilha acertou, Moura idem. Item de coleção. Próxima parada, DC Comics!

domingo, 17 de outubro de 2010

Buk Meu Caro, e o Futuro?


Ando brando demais. Polido demais. Debruço-me sobre o caráter tórrido e lascivo do velho Buk e penso: Não sei ser homem. Mas esse velho soube! Não pela sujeira ou pela perversão. Mas por, apesar delas, fazer-se notar nos cantos escuros dos botecos fedorentos. Cru e bruto.

Já eu não. Sou dos limpinhos... Cheirosinho demais até. Falta-me o pigarro e a voz rouca da ressaca monumental em plena madrugada de segunda. Displicência. Quero a imaturidade de afligir os editores pelos prazos estourados, não a mim. Quero arte sobre o profissionalismo!

Dedicar-me ao prazer, ainda que sado (ou maso), vez ou outra. Quero a luxúria artística de gozar meu humilde talento quarta-feira ao meio dia, depois de acordar com a boca seca. E só! Nobel é consolação, Pulitzer é estupidez. Não peço aplausos, só um brinde e taças tilintando.

E uns doze pares de olhos devotos, para me manter inspirado e sustentado. Alguns usuários dessa literatura desprendida das agruras da gramática. Aliás, cago e ando para a gramática. O dilema? Me cago todo dos que se importam com ela e, na mesma medida, dos que me cagam.

E me importo, também, com palavras cadenciadas. Minha estrutura pende mais para o fluente que para o correto. Adotei: “O português correto é o português claro, não necessariamente correto.” – A frase da minha vida. Dela em diante, decidi que podia escrever sem culpa.

Mentira! Vivo a mea culpa de não ter base. Sou uma fantasia. Leio tanto quanto... toco banjo! Almejo a indiferença crítica e a defendo aqui, mas cá estou, imediatamente medindo minhas atitudes literárias e nadando em subterfúgios. Sou um fracasso... embora em transformação!

Mas estarei satisfeito quando o gosto ácido da bílis subir pela garganta dos leitores através das minhas palavras. Na verdade quando a bílis finalmente despejar-se nas linhas dos meus textos. Ah o velho Buk... Meu fígado jamais produzirá uma bílis espessa e mal cheirosa como aquela!

Tão evidente no altruísmo dissimulado e podre do ego. Tão belo, complexo e egoísta. Eis o homem: A mais pura e definitiva rosa de Hiroshima. E como soube entender a espécie o velho. Como eu queria entender. Mal sei de mim. Graças a Eve tenho a ele, um pouco de iluminação.

Graças a quem lê, tenho esse pequeno esqueleto literário que chamo de minha obra. Tão esguia e raquítica, porém viva e hormonal. Crescente. Ofegante e imatura algumas vezes. Sincera. Não sou escritor, por ora. Mas escrevo. Buk e eu. O tempo passa. Hobby ou profissão?

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

SWÚltimo


Dá uma sensação boa de não domingo, escrever em pleno domingo, com um feriado logo ali na terça próxima. E vem a calhar, depois de um sábado “peculiar” em Itu. E paro em peculiar, por ora, deixando os adjetivos mais específicos para as próximas linhas. Melhor respirar!

Estou ainda reunindo forças para expor com precisão o sábado. De rock, mas não só isso, nem perto disso. Será tarefa complicada transpor todas as sensações (absolutamente novas) de estar na abertura do SWU, evento monstro realizado na mini estância megalomaníaca de Itu.

Tinha até ontem, à flor da pele, a experiência do meu último grande festival, um ano atrás. O Maquinária. Ah o Maquinária, aquele do Faith no More e Jane’s Addiction; de introspecção, organização e paz. Que saudade dos bons fluidos dos festivais de outrora. Pois é, tão recente.

Mas vamos aos detalhes: O SWU prometia, na primeira noite, um evento inesquecível com apresentações de Los Hermanos (voltando aos palcos depois de alguns anos) e Rage Against the Machine (reunidos há pouco, pela primeira vez no Brasil). E outras boas surpresas.

Com toda minha displicência, decidi na semana do show ouvir o restante das bandas que iriam se apresentar nos quatro palcos do festival e acabei encontrando Apples in Stereo, uma oferta recente do meu irmão, que dei pouca bola na ocasião. Realmente muito divertidos, quis ver.

Daí vinha Infectious Groove, The Crystal Method e Mallu Magalhães como atrações que valiam por estarem ali, inclusas no preço. Com a desbravante campanha sonora de descobrir o que rolaria, conheci The Mars Volta, The Twelves e Letuce + qinhO. Pronto a lista estava completa!

Aí começou a bagunça (por enquanto culpa minha). Os horários se misturavam e algumas bandas seriam sacrificadas. Los Hermanos e Rage Against estavam a salvo. Do resto, o que tivesse sido escalado em qualquer horário oportuno seria contemplado com prazer.

No que me cabia, o plano era reproduzir as sensações do Maquinária e talvez turbiná-las, conhecendo agora o potencial emocional destes eventos. Estaria sozinho no meio de muita gente, com tempo para mim e ouvindo bandas que me remetiam à nostalgia.

Outra ruptura com o sólido esquema da minha programação foi o oportuno convite de uma parceria inesperada. No primeiro impacto, confesso, de negação, ressenti calado! Em seguida a aceitação e, depois de tudo, o alívio da companhia certa e fundamental para a ocasião.

Ainda era terça e tudo isso já tinha balançado minha modesta organização. No decorrer da semana descobri os cem reais que me custariam estacionar o carro e, mais tarde, descobri que cem reais e um quilômetro e meio de distância para o local do show. Bolei um plano, estúpido!

As alternativas de garagem eram: A do quilômetro e meio por cem reais, quinze quilômetros e cinquenta reais, no kartódromo de Itu ou à sorte de Deus na rodoviária municipal, vinte quilômetros de distância. Todas ofereciam ônibus até o local do show e aportei na rodoviária.

Tinha ido sozinho até a cidade e os descontos por estar com o carro cheio não me fariam efeito. Além do mais, me pareceu sensata a decisão de poupar algum trocado por quinze minutos a mais em um ônibus lotado. Minha parceria então chegou, vindo do céu, e partimos.

Tudo andava perfeitamente dentro dos conformes embora alguma coisa soasse estranha. Não sei bem o que era ainda, mas eu não me senti acolhido naquele campo. Fiquei contente de não estar sozinho e, melhor que isso, bem acompanhado. Ali sim me sentia acolhido.

Pingamos de tenda em tenda ouvindo os shows menos importantes. Perdemos algumas aberturas, dispensamos alguns encerramentos e perambulamos até que chegasse o momento alto dos Hermanos ou do Rage Against. Acabei perdendo Apples, o único triste sacrifício.

A distância para o palco dos Hermanos era considerável mas era possível vê-los, minúsculos, lá no palco. Foi bonito o sentimento rememoriado e a possibilidade de cantarolar quase todas as canções. Raro. A apresentação impecável não surpreendeu, apenas atendeu perfeitamente.

Mais tarde, sem grandes expectativas, Rage entrou e, mesmo carregando o fardo de ser a possível última banda idolatrada da minha adolescência rebelde, não despertou qualquer euforia. Talvez porque o show, certamente vibrante, rompesse o clima a cada interrupção.

Foram três ao todo: A barricada que cedeu e o som que foi cortado, duas vezes. A cada interrupção a sensação, em processo, evaporava. Ao menos, todas as músicas esperadas foram vociferadas por Zach de La Rocha e, mesmo muito longe do palco, o bate cabeça nos alcançou.

O mais exaltado batedor, dessa vez, notou logo meu ímpeto pacífico e protetor e, em um gesto solidário, abraçou sua acompanhante construindo uma pequena fortaleza ao nosso redor. Assim, os que estavam dispostos a se ferir, afastaram-se respeitosamente alguns passos.

Quando acabou senti alguma coisa estranha, um pavio que não incendiou. O SWU não tinha despertado nenhum sentimento em mim. Parecia nascido com o destino apócrifo de não constar nos meus autos. Mas isso ainda iria mudar. O inesquecível veio a seguir.

Eu poderia ter notado pelo homem nu que cruzamos na via sacra rumo à saída. Foi esse tipo de pitoresquice que ficou faltando. O rapaz andava pacificamente sem qualquer ornamento que protegesse as partes e, pelo inusitado, mereceu meu respeito. Mas a noite não se salvou.

Na fila do ônibus, puro caos. Como conter cinquenta mil jovens impacientes? Todos tinham seus motivos para ir para casa. Alguns pegariam mais ônibus, para outras cidades. Uns para outro estado. O fato é que estar pacificamente na fila certa não me colocou dentro do ônibus.

Depois da fila inútil, o pessoal da companhia rodoviária abdicou da responsabilidade, confiando apenas no bom senso juvenil. Ninguém mais sabia onde as filas estavam, que ônibus ia para onde e qual era o ponto de partida. Os ônibus, aliás, já chegavam lotados. Explica?

Fácil! Os menos civilizados forçavam a porta e invadiam os assentos, muito antes do ponto. Logo os mais civilizados fariam o mesmo. Em seguida, até eu! Era uma selva e podia ter sua diversão não terminasse como terminou. Levamos uma vida naqueles vinte quilômetros.

Invadimos a condução à meia noite e vinte, aproximadamente. Despencamos na rodoviária às quatro e meia da manhã. Tente imaginar quatro horas de pé, em um ônibus circular, com o dobro da capacidade! Ainda estou sem analogias para uma das sensações mais boçais que vivi.

O confinamento e a impotência pela necessidade. Sem o ônibus, jamais chegaria ao destino. Com ele, chegaria ao inferno, antes da rodoviária. E provavelmente ficaria por lá, se desse para dormir, por algumas horas. Eu só pensava que, uma vez no carro, mais um trecho, dirigindo.

O mais irritante é saber que teria aguentado se mais moleque, seria fácil se o dia tivesse sido excepcional. O mais irritante é carregar essa memória do SWU. Um dia, quando não me lembrar mais quem tocou, ainda me lembrarei desse maldito ônibus. Pouco valeu a pena.

Por sorte, não estar sozinho me fez manter a compostura. Modéstia à parte, agregar boas companhias é um talento que tenho e, por esse preciso anjo (que voa, ouvi dizer), preservei minha integridade não tirando a roupa aos berros, às três da manhã. Mas beirei a loucura ali.

Hoje de manhã, domingo, acordei com a pressa de um domingo qualquer e a primeira notícia que tive foi de uma conhecida que conseguiu entrar no ônibus às seis da manhã! As SEIS! Pelo menos a essa hora eu já dormia em casa. Mas penso se ela manteve suas roupas, e a sanidade.

O cruel de todas essas mil linhas é que passei o dia estragado – não fosse por um cinema de última hora (assunto para outro texto) – e agora estou sem sono. Não me sinto aliviado com o desabafo (aliás, mais confuso) e, pode ser uma decisão precoce, mas, acho que aposentei...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

                                                                                              Arte: Deni


Quando entrou na minha vida, mansa e sazonal, não causou alvoroço e não fez questão de se fazer notar. Não pretendeu minha família e nem se apresentou aos meus amigos. Éramos só os dois, ainda que cercado de conhecidos. Só tinha olhos para mim e fui entrando no seu jogo.

Nos descobrimos juntos, em uma dessas noites despretensiosas da juventude. Quase passamos despercebidos ao flerte torpe do outro, mas, soubemos bem ali que estaríamos predestinados, cedo ou tarde. O tempo passou e, vida feita, caímos no colo do destino.

Me preservei, no início, e dissimulei um desinteresse. Ninguém se entrega assim tão sumariamente. Era o meu jogo até então, ter o capricho de desdenhar a devoção alheia. Eu estava vislumbrado, embora contido. Moderado, mesmo que, entre meus botões, fascinado.

Aquela presença ali, perto de mim, dentro de mim, minha, cativava meus desejos adormecidos, tão sórdidos. Era pura, autora. Toda essência e toda origem. Aquilo que o ser humano não é capaz de ser. A musa inerente e eterna da arte.

Voltei a pintar. Por ela. Com ela. Para ela. Mas já não reproduzia mais os traços lineares nem sobrepunha os tons coerentes de antigamente. Incorporei o asco ao realismo e não tinha mais mão para o impressionismo. Minha arte, tão particular, era totalmente minha agora. E dela.

Naquele momento eu já estava fundido àquela fonte inesgotável de inspiração. Sem nenhum pudor. Se com ela sempre um mar (revolto) de novidades mágicas, então, sempre com ela. E como criei naquele período! Não sabia mais da vida que acontecia do lado de fora do ateliê.

Vivíamos a arte. O tempo todo entorpecidos, comendo comida enlatada. Pintava com o óleo do atum. Sangue, esperma, urina. Gema de ovo. Qualquer liquido, toda secreção era inspiração e obra. Apesar do odor, a casa não fedia, exalava arte em todos os cômodos.

Deram minha falta. Me deram por morto, inclusive. O pessoal do escritório, como eu não voltava, mandou uma coroa de flores para a casa de minha mãe. Quase serviu para o velório dela, tamanho o choque que a velha levou! Foi nosso primeiro conflito, a família no meio.

Veio a pressão. Tomaram as chaves da minha masmorra, sim, do templo meu e dela. Já não tinha mais a liberdade de viver pela arte. Toda a explosão criativa que me proporcionava, definhava em mim sem destino, sem tela. Pintava os versos dos documentos na repartição.

Nunca mais deixei de criar, nunca mais deixei a arte e nem a deixei. A razão da existência era finalmente clara para mim. Entretanto, pelo menos, não tentaram nos separar, teriam de ser loucos! A função administrativa logo voltou a cercear minha vida. Desculpe, a nossa.

Fugimos. Em nome daquilo que nos definia: O incrível talento mútuo para a arte. Eu sem ela era ordinário. Ela sem mim, estado emocional. Pintamos o mundo, felizes e completos. Dois completos autistas, aliás. Não esperávamos nada em troca, dinheiro ou reconhecimento.

Depois de muito tempo nos acharam. Ali eu já estava velho demais para continuar fugindo. Mesmo assim intervenção. Hoje ainda pinto, quando afrouxam a camisa. Continuo com ela, como pode imaginar. E não me arrependo de um só dia em que estivemos juntos nessa vida.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O Negócio da Coisificação


Quando as palavras vão perdendo seus significados. As coisas quando perdem seus nomes e viram: Coisas! Objeto inominado designado pelo destino da ponta do dedo, pelo ruído gutural da garganta ou simplesmente renomeado “coisa”.

E todas as suas variações: Coisa negócio; coisa bagulho; coisa breguete; lance, fita; isso e aquilo. Troço! Na falta do nome verdadeiro a cada um dos objetos, uma diversidade infinita de falta de título. E título nome próprio, não mero rótulo.

“Aquela coisa, pega para mim?” – E nunca, ninguém soube que coisa era aquela. Foi pega, afinal. Entregue e assunto encerrado, mas, por falta de especificação, acabou coisa qualquer. O homem se comunica e a língua dinamiza. Necessidade moderna, capricho humano.

Já li a respeito de aprendermos não sei quantas mil palavras novas todos os anos (ok, talvez não sejam tantas), mas que diabos acontecem com as antigas? Devem ser substituídas... Há essa escolha infeliz pela coisificação, um jeitinho preguiçoso de simplificar o discurso.

Mas não sou, sem dúvida, do tipo conservador ou o tirano da língua, logo eu, que invento palavras! Mas há certa necessidade desse dinamismo na comunicação. E se expressar é tão magnífico. Às vezes peco pela timidez, mesmo munido das palavras certas.

Da mesma forma, nunca achei que fosse dizer isso, mas, se preso em um diálogo enfadonho algum dia, prefiro mil vezes a prolixidade às adivinhações aleatórias das coisas inominadas. Melhor uma história pausada que não acaba a uma pausada que não evolui!

Na verdade prefiro o bom discurso, limpo, claro, diversificado. Se pudesse, escolhia esse diálogo a ter que enfrentar esforços de compreensão de qualquer natureza, mas, como não escolho e, como bom humano pecador da coisificação, tolero quando é de tolerar.

E como simples hipócrita, reconheço algum apreço (pequeno) nas coisas coisificadas, quando cabe. Certa vez fui o próprio “Coiso” (como um nome mesmo, ou uma alcunha, pelo menos) e simpatizava! Tinha carinho pelo título desmerecido. Sinto falta inclusive, às vezes...

É uma lingua difícil essa nossa, posso admitir. Mas (me perdoem os ufanistas) pelo menos não é tupi. Ou russo (generalizando o ataque ao verbo)! Portanto, se pode ser pior, não está tão ruim assim. Facilite o discurso. Leia, dicionarize-se, descoisifique o vocabulário.

Que coisa, meu!

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Cromossomo Vinte e Um


“Volte aqui imediatamente e recolha essa bagunça, mocinha!” – Ela não se entrega, como de praxe, às intimidações do padrasto. Mostra a língua e sai forçando os passos, sem velocidade. Sabe que ele logo virá atrás e tentará mais uma vez ensinar-lhe a lição dos bons modos.

Recebe o esperado pontapé na bunda. Nádega esquerda. Bico do pé. Sempre tão previsível. Cai de joelhos e engatinha em fuga, forjando o pânico que a autoridade dele espera, fingindo a dor que já nem sente. Fica em silêncio, encenando aquela baboseira tirana, contando o tempo.

“Não interessa quem jogou a tinta no tapete. Aqui você é quem arruma! Não é a mais velha? Deveria ser responsável pelos pequenos.” – E nina no colo o guri autor da lambança que, assustado com os berros e confuso com a cena, só não chora pelo amparo caloroso do pai.

“Por isso ninguém te ama, sua ingrata! Por isso só te restou sua madrasta e eu! Nem seus irmãos são seus! – E é verdade. Do pai nem se lembra e da mãe lembra que, anos atrás, tinha tanto sono que nem saía da cama. Perdeu tanto peso que um dia desapareceu, literalmente.

E embora agora, reinserida mais uma vez no modelo tradicional de família (pai, mãe, irmãos), não pertence, ainda, à sua. E como gostava de dizer isso, aquele sádico maldito. Tudo bem, porque esse bastardo provisório logo partirá, de alguma forma, e será substituído.

Curioso, mas as pessoas ao seu redor simplesmente se vão. Morrem ou partem, e quem fica casa-se de novo. Sina. Já perdeu a conta de quantos pais e mães teve nesse rodízio maluco. Alguns irmãos, já adultos, construíram até a própria família, em algum lugar mais feliz.

Pensou nisso até o desfecho falido da lição, mais dois tapas no rosto, o sermão inútil e a expressão de ódio mútua. Sai em direção ao quintal e ancora-se na goiabeira plantada em homenagem ao nascimento de Lucinha, trinta e seis anos atrás. É seguro na goiabeira da mãe.

Não por trazer memórias de um passado mais alegre, não sente falta de passado algum. Lucinha vive apenas os prazeres do despertar e entrega todas as suas frustrações diárias aos sonhos, na hora de dormir. No dia seguinte é mulher renovada e livre de culpas e pecados.

E dos pequenos prazeres, gosta de brincar no sol, com suas bonecas, perto da goiabeira. Às vezes prefere a paquera eletrônica com os jovens galãs da TV. A fascina a programação juvenil. Passa o dia entre criança inocente e adolescente hormonal. Os dias bons.

Não gosta de como é tratada fatidicamente pelos padrastos e madrastas. Se não com arrogância e violência, apenas indiferença. Disfarça as próprias limitações e ignora o desprezo humano à sua existência. Do contrário, seria um estorvo. Apenas ser quem é. Os dias ruins.

“Menina, sua maldita, venha já aqui e acode seu pai! O que você pôs nesse frango sua assassina?” – E lá se vai mais um padrasto. Entende que terá de proteger o rosto das primeiras pancadas, as mais agressivas. E não sabe por que, não tinha nada de errado com o frango...

O dia seguinte e todo o episódio do frango foi parar nos confins do subconsciente. Lucinha, feliz, penteia e entretém suas amigas sintéticas. É só as que tem. Em breve um novo homem para chamar de pai. Outro ser qualquer para chamar-lhe a atenção, impaciente e bruto.

E leva, leve, dia por dia, um de cada vez, a difícil sina de não caber em coração nenhum. Descobrindo a felicidade das pequenezas, à sombra da goiabeira. Protegida inconscientemente pela sólida carapaça de um cromossomo vinte e um extra.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Meu Amor Pela Política


Estou em ponto morto no cruzamento de duas ruas tradicionalmente movimentadas. É sábado e o trânsito por aqui é sobrenatural. Não é certo para minha pequena cidade semi-metropolitana, tantos carros na rua com o mesmo ignóbil destino. Não é certo para mim.

O plano, aliás, não era estar aqui. E estaria perfeitamente sob controle se eu não fosse de deixar tudo para a última hora. Mas, desleixado que sou, mereço o trânsito sem fim. E sem origem também. De onde estou, o mar de carros é mar aberto e nós todos boiamos.

Nós, somos eu e os outros mil carros, cada um com sua rota traçada, poucos com a necessidade irrefutável de estarem ali, todos atados à mesma fila asfáltica sob o sol do meio dia. Eu até poderia não estar, mas, tarde demais. Alguns cartazes e bandeiras políticas, divago:

É período eleitoral, vejam só. Todos nós, do trânsito e do mundo, democratas e republicanos, cristãos e muçulmanos, temos o ódio unânime e sacramentado à campanha eleitoral. E, fato, não somos de escolher políticos por bandeiras ou santinhos. Não somos, aliás, de escolhê-los.

Dois problemas crassos, mas a campanha é algo que provoca a ira, durante essa fanfarra eleitoral. Por aqui um carro por minuto e esse sol. Partidários e panfleteiros descansam refrescados, nos bancos de Nhô Gomes. Eu não: Ponto morto, primeira marcha, ponto morto.

Mas qual o propósito da corrida à cadeira do congresso, do senado ou da câmara, afinal? Não é político. Aliás, como levar a sério um sistema político que não admite o mínimo de restrições ideológicas? Isso não é democracia é várzea! Celebridades falidas no congresso é várzea!

Não precisa ser, é evidente, se o interesse for social e não fiscal. Todo brasileiro, celebridade ou anônimo, tem direito a aspirações políticas. Pois que seja, então, obrigação, tornar-se competente e profissional. Mais que pelo dinheiro apenas. Como em qualquer outra profissão.

E profissionalização da política! Aulas de história política: Maquiavel, Marx, Hobbes, Rousseau; economia e gestão. Governo não é renda extra, afinal não é pouca a renda! E matemática simples: Não dá para ser bom em duas coisas ao mesmo tempo. Ou se dedica ou se desiste.

Isso considerando o sistema que vivemos, de administração popular, de governantes eleitos por voto massivo. O que já não parece certo, essa brecha em conceder o controle e o poder a poucos e aceitar, vendados, que no fim nós temos alguma força popular.

O golpe veio, num certo 68, e levamos, com toda nossa força popular, trinta anos para derrubá-lo! Poucos no controle é sempre excesso de poder (megalomania), e vai ser em qualquer sistema. Inclusive nessa nossa “pouquigarquia” disfarçada de democracia.

Eu devia ter estudado, nas minhas sutis pré-disposições punk da adolescência, a filosofia anarquista... Simpatizo com ela. Utopia por utopia, ela soa tão mais modesta. Uma nova visão de poder, mais diluída. Todo mundo igualmente responsável, menos responsabilidades.

E nenhuma obrigação eleitoral! Direito a voto... Abro mão, em nome de todos aqueles que lutaram pela obrigação do voto, de colocar alguém que tomará decisões em benefício próprio e partidário. Não, não abro mão, compactuo com o sistema, sou fraco e não sou mártir.

Só que não cedo à tentação circense de acatar as campanhas. Não voto em bandeiras ou santinhos. Não voto em comício ou televisão. Nem voto em intrigas conspiratórias, em podres alheios. Voto apenas no sistema, na esperança que um dia Nulo se eleja e, enfim, repensemos.

Toda essa pataquada digna de Odorico Paraguaçu, toda essa algazarra de vitória, como se tratasse disso: Vitória de um ou outro partido. Como se escolas de samba ou times de futebol. Como se não fôssemos todos brasileiros e tivéssemos interesses sociais coletivos.

Devo dizer, concluindo, que finalmente cheguei em casa. Onde precisava ir não consegui, me livrei do congestionamento tarde e as portas estavam fechadas. A razão do caos? A principal avenida da cidade interditada. Era um grande comício. A política e meu amor por ela...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Beijo Tardio

                                                                         Arte: Gustav Klimt


Eram dois e se gostavam muito. Desde o dia em que ele bateu na cabeça dela. E moravam juntos, num dos buracos da montanha. Porque precisava também, não podiam ficar sozinhos com tanto dinossauro! Era um casal das cavernas e eram felizes. Saudáveis e felizes.

Aí um dia ele ficou bastante dodói e não podia mais comer nada. Aí ela passou a caçar sozinha e a cuidar da caverninha pequenininha deles sozinha. Mas não gostava porque ficava muito cansada. Aí ela viu que ele ficava mais e mais fraco, todo dia. Não comia e mal se mexia.

Teve então a ideia de dar comida pra ele igual a passarinho.Daí então, ela foi lá e mastigou a carne de pterodátilo bastante e bastante, engoliu e pôs tudo pra fora de novo, direto na boca dele, empapadinha e quentinha. É que naquela época, ainda não tinham inventado o fogo!

Foi assim que ele curou e voltou a caçar com ela e a cuidar da caverninha deles e a proteger um ao outro. E aí, quando ela ficou indisposta, porque tava esperando um menininho da caverna dele, ele fez a mesma coisa com a comida e foi assim que surgiu, há muito muito tempo.

Foi dessa forma que contou Joana, a irmã mais velha, sobre a origem do beijo. A pequena Joaquina permanecia em choque. Esperava altas doses de romantismo na história. Logo agora que começava a se interessar pelos garotinhos. Tinha nove anos e o primeiro trauma.

Não foi nada disso, não! A primeira pessoa que inventou o beijo quando ele surgiu, era má à beça e o que ele fazia era roubar o coração e a vida das pessoas. Primeiro ele falava para uma mulher que queria casar e ter muitos filhos com ela. Mas era só para a mulher gostar dele.

Daí, quando a mulher gostava dele, ele metia a boca na boca dela e roubava o coração dela para se alimentar. E depois roubava a vida dela também. Ele era um bruxo feio e malvado que só fazia isso porque era muito feio e malvado.

Aí quando ninguém mais acreditou nele, ele enfeitiçou todo mundo das famílias das mulheres para acreditar que o que ele fazia era uma coisa boa, aí ninguém mais via quando ele tava sugando a vida das mocinhas indefesas. Minha mãe disse que esse bruxo existe até hoje!

E disse que conheceu ele uma vez e que ele enganou ela por um tempo, mas daí ele desapareceu de repente, igual bruxo faz! Aí ela falou que só não acabou com a vida dele também, porque a única coisa boa que ele fez foi eu e porque ela gosta muito de mim.

Com as mãos apertando as bochechas, Joaquina, escuta inconformada a contra-história de Marlene, sua melhor amiga. Marlene, que ouvira com desdém o causo de Joana, contado por Joaquina, disse saber, desde sempre, quando surgiu o beijo.

E a história dela era ainda pior. Ao menos havia, no primeiro causo, certo apreço. Uma grotesca, porém singela, demonstração de afeto, de certa forma. Marlene, que era puro veneno em suas palavras, nunca soube, mas presenteou a menina Joaquina com um segundo trauma.

Depois os anos passaram. Joaquina, que já não era mais pequena, agora colecionava traumas incalculáveis. Ouviu na pré-adolescência barbaridades como a das borboletas que os homens botam nas barrigas das mulheres, quando as beijam. E meses depois, a barriga fica imensa...

Também as doenças que o beijo passa. Os germes e todas as moléstias. Joaquina tentou descobrir, quando menina, a origem do gesto que deduzira o mais belo entre duas pessoas. Entretanto, hoje, o que sentia era um medo terrível e, aos vinte e sete anos, nunca havia beijado.

E era mulher de roubar olhares por onde passava, só que, nos homens via imensas borboletas venéreas que vomitavam na boca das pessoas para roubar-lhes a vida. Era uma imagem perturbadora. E embrulhava seu estômago cada novo galanteio. Quase impossível de lidar.

Mesmo assim casou-se (poucos acreditaram), aos vinte e nove anos. Celebrou em missa cristã e, do noivo, muito compreensivo, apertou as mãos para selar a comunhão nupcial. Teve suas filhas, duas, mas o trauma elas não herdaram. Foi até feliz em família, embora incompleta.

Quando fez setenta e oito anos, pela primeira vez, chorou a incompreensão do mais magnífico mistério da vida (dela). Ainda lhe dava asco o beijo, e esse foi seu martírio. O marido, pacientemente insistente, contabilizava mais de duzentas investidas frustradas.

Porém, em um doze de junho muito frio, perto das dez da noite (hora de dormir), Joaquina não fez caso da escuridão repentina, provocada pela falta de energia. Caminhou tateando o breu até o quarto e, desamparada, deslizava pela imensidão preta pensando em pouca coisa.

No caminho, dominada delicadamente pela cintura, arrepiou-se de frio e de calor, ao mesmo tempo. Seu velho marido, de volta da caixa de força, respirava a centímetros dela e sua respiração aquecia os lábios de uma forma excitante. Não enxergava um grão de luz, atordoada. Nem os próprios traumas.

Os lábios se tocaram impulsivamente e, desprevenida, permitiu a invasão carinhosa da língua dele em sua boca. E tocou a língua dele com a língua dela. E continuou naquela dança silenciosa e carnal, admitindo completa, ser aquela, enfim, a origem do beijo.

Os dias passaram, a vida. Naquela história, não havia mais passado, só o interminável presente daquele beijo tardio. Não pensava nele, o sentia. Não pensava em nada. Nem jamais se perguntou que vida teria depois daquele beijo, porque aquele beijo, magicamente, nunca terminou...

domingo, 12 de setembro de 2010

O Bocejo e outras Coisas


Tenho tido coisas demais na cabeça. Todas ao mesmo tempo e confusas. Sem base nem conteúdo. Umas e outras elucubrações e epifanias baratas. E elas, todas, instantâneas e rasas, se bastam pelo simples gesto epifânico. Tenho tido preguiça, essa é a verdade.

Uma preguiça avassaladora do ato – inevitavelmente – humano de pensar. De concluir pensamentos e tomar partido das coisas. Esse medo senso comum de ser julgado, somado à necessidade da personalidade indecifrável, embora louco para ser compreendido. Antagônico.

Conservo dentro minhas ideologias, bem dentro e, pior que isso, abro mão delas. As filosofias profundas. Essas coisas que nos determinam. Penso pouco para não enfrentá-las. Sou raso por vontade própria, concluo assim. E talento intelectual não falta, sei disso. Mas sobra preguiça.

Falta estímulo e sobra preguiça. Falta vontade própria e sobra preguiça. Sou assim: Escrevo pouco para quem pretende a escrita como meio de libertação. Leio ainda menos, para quem pretende a escrita como meio de libertação. Não vivo os louros da paixão artística que assumi.

A essência da coisa é que me interesso pelo mundo, sem rédeas nem freios. Sou um pouco de tudo e pela natureza da generalização, sou pouco em tudo. Nada me define. Um pot-pourri de introduções. Boa companhia no elevador, potencialmente constrangedora em viagens longas.

Por isso a escrita tem sido um esforço à minha preguiça, uma luta silenciosa para cima desta casca dura e mal cheirosa de ferrugem nas minhas articulações. As cinco produções que oficializo no final de cada mês, representam outra coisa além das palavrinhas (des) ordenadas.

É documento registrado em cartório e, muito mais, é golpe fulminante na auto-cegueira às minhas habilidades. Tenho preguiça, de sobra e aflitiva. Tenho talento, uma porção e dá para o gasto. Só que agora venho tendo atitude também. Coisa nova para mim. Vem de bom grado.

Com isso, vou vencendo minha depreciação fabianista, bem homeopático. Alívio aos que insistem em tentar convencer-me dos dotes artísticos. Alívio maior ao que tenta ser convencido disso. Nova fase e ainda em processo compreensivatório. Há de passar.

Mas, ainda que turbulento de coisas novas e intimistas, me pego aceitando esse texto forrado de coisas. Coisas mesmo. Palavras ocultadas e substituídas por “coisa”. E não suporto palavras convertidas em “coisa”. Coisa é coisa nenhuma, oras! Mas hoje não! Hoje não me afeta coisa alguma.

Bom domingo!

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Reinventando a Solidão


Martha não era uma mulher feliz. Nem de longe, como são as mulheres felizes da TV. Abandonada no mundo, passava muito tempo na companhia do aparelho a cores vinte e uma polegadas, comprado na loja pelo falecido marido, quinze anos atrás.

Não tinha ou não transmitia muitas emoções, mas, as que tinha e transmitia, eram compartilhadas unilateralmente entre as damas e os galãs das novelas das oito. Um hábito anestesiante, fortalecido pelos anos. Havia um estranho prazer nesse ritual morfínico.

Martha, quando saiu de Sapporo no Japão, aos quatorze anos e sozinha, fora arremessada para fora da ilha na esperança de uma vida melhor, longe dos campos de cevada. Acabou em uma fazenda, no interior do estado, onde se concentrava a maior comunidade nissei do país.

Aos quinze anos, novamente camponesa, acomodou-se submissa sob os braços do marido, vinte e seis anos mais vivido. Sobreviveu em dissonância com a vida por indiferentes vinte e cinco anos. Duas filhas crescidas e um velho enfermo em casa, que logo veio a falecer.

Pouco tempo se passou para se dar conta que navegava sozinha naquele oceano insípido de ilhas flutuantes. A filha mais nova migrara por estudo à capital do estado e a mais velha, ainda mais ousada, foi atrás das origens e de dinheiro, no Japão. Martha ficou, quase desamparada.

A casa grande, os ecos nos quartos vazios, os corredores largos. Tudo era imensamente oco na vida de Martha. Não havia aconchego ou algo que a abraçasse. Exceto pela TV. Sobrara apenas a TV nos confins do interior do estado e dela mesma.

E o efeito dopante da programação naquele cubo transcendental, adormecera na inocente nissei de cinquenta e poucos anos o calor dos sentimentos. As dores e alegrias da vida. Martha passeava apócrifa pelos sentimentos sintéticos da ficção, nunca os próprios.

Mas, felizmente, não foi assim até o fim dos dias, nem podia, não com a doce Martha. Ou essa história jamais teria existido!

Em um desses dias como qualquer outro (e qualquer dia era como qualquer outro), foi-se em um piscar de olhos a TV. Apagou a programação caprichosamente durante um intervalo comercial e despediu-se em fumaça preta e fedida: “Era sua alma!”, pensou entristecida.

Ineditamente sóbria no mundo real, não sabia lidar consigo e constrangeu-se no silêncio. Pigarreou. Insistiu nos primeiros socorros do controle remoto, mas, não houve massagem cardíaca ou transplante de pilhas que ressuscitasse a defunta. Aceitou dois dias depois.

Andou pela casa e assoprou a vitrola. Já nem funcionava mais. Folheou Moby Dick e outros clássicos dispostos na estante do escritório do marido. Mirou as fotos da parede no corredor. Percebeu o quanto as meninas cresceram. Não lembrava o rosto delas adultas. Fazia tempo.

Não tinha plantas, a pintura rachada e as infiltrações na parede eram o sinal mais claro do abandono. Do lado de fora, algumas ervas daninha sustentavam o universo paralelo da velha Martha. No fundo, ainda era a menininha de Sapporo, mas tinha passado tempo demais.

Por descobrir sentimentos atrofiados, guardados no íntimo mais íntimo, Martha diagnosticou-se depressiva e, mesmo nunca tendo pensado em interromper a vida, despediu-se naquela noite, com um bilhete na cabeceira da cama: “Adeus aos que ficam, nada deixo para trás...”

Na manhã seguinte, na abertura lenta dos olhos, descobriu-se viva como no dia anterior, nem mais, nem menos. Notou o papel no criado mudo, intacto. Amassou-o e arremessou ao além. Cumpriu as rotinas do dia com a inércia costumeira.

Nas primeiras horas da noite reconfortou-se empunhando papel e lápis: “Adeus aos que ficam, nada deixo para trás...” – Mas não havia um plano, na verdade. Nenhum estimulante à morte que favorecesse a despedida. Era mais um desejo de dormir e nunca mais acordar.

O ritual nefasto repetiu semanas, mas todo santo dia o resultado era o mesmo. O pé da cama já não passava de um amontoado de bolinhas de papel amassado. Até que em uma frustrada manhã de vida, algo mudou e Martha, pela primeira vez na vida, estava perplexa.

Bem abaixo do recado costumeiro: “Adeus aos que ficam, nada deixo para trás...” - Um caloroso: “Não se vá!”, arrepiou cada pelo do corpo franzino e pálido da solitária senhora. O lápis, caído equivocadamente no chão, denunciava uma nova presença.

A primeira demonstração de afeto em muitos anos tinha um tom todo sobrenatural e, mesmo assim, aqueceu suas bochechas e coração. Decidiu dialogar com a presença espiritual e, naquela noite seguinte, sem muito argumento, desdenhou: “Vou sim...”

“Por favor, fique, gosto tanto de você!” – Amanheceu o bilhete apaixonado. Martha pensou ser o marido, idealizou a figura dos pais. Não soube dizer qual o preciso espectro que estava ali, zelando por ela e, mais uma vez, arriscou: “Não fico, quero estar onde você está...”

“Mas você está onde eu estou, se for, ficaremos longe, muito longe” – É certo que não podia ser o marido, tampouco os pais, distantes quase uma encarnação. Não sobrava alternativas. As filhas, ocupadas em se estabelecer, não teriam tempo e a TV, pobrezinha, não seria capaz.

Trancou o quarto e desafiou a entidade escondendo o instrumento de comunicação entre os mundos no interior da roupa de baixo. Para alcançar o lápis, teria que remexer seu corpo e, assim, a acordaria. Antes da traquinagem, escreveu: “Pois para longe quero ir, adeus...”

Surpreendentemente na manhã seguinte, lá estava o lápis, ao lado do papel, na cabeceira da cama, culpado pelos dizeres: “Então este será o dia mais triste das nossas vidas...” – Martha já havia desistido da empreitada moribunda há muito tempo quando tinha escrito esse adeus, mas, por muito tempo ainda brincou de massagear o ego.

Levou mais algumas semanas até que entendesse estar dialogando consigo todas as noites. E quando entendeu, aproveitou para compreender o amor em si, desafiando a solidão até o fim dos dias. Pintou a casa, cultivou plantas e deu vida à própria vida. Feliz, enfim, da vida.

Comprava seus vinhos, bordava seus bordados, passeava entre os roseirais, estampando um sorriso vitorioso. E jamais, em qualquer outra ocasião, passou perto de uma TV, tamanha era a paixão e satisfação que sentia em ser quem era.