domingo, 26 de dezembro de 2010

O Bom Velhinho Nicolau


Nicolau. Eis o velho avarento. Não “um”, porque não era qualquer, mas “o” avarento.O único ser humano capaz de estocar mais de oitenta por cento do holerite mensal e, no fim dos trinta dias entregar vitorioso, mais de quinhentos contos limpinhos ao banco.

O velho Nicolau nem sempre foi velho, mas, avarento? Ah isso ele sempre foi! Guardava cada centavo do seu suado salário e só gastava no que julgava necessário. Apenas e, exclusivamente, no necessário. Tinha uma relação muito dura com as cifras.

Começou cedo na vida. Aos quinze anos entregava peixes de casa em casa, graças à oportunidade que seu tio (peixeiro) ofereceu. Aos dezessete, realizava pequenas tarefas domésticas e aos dezoito, garantiu um emprego público no gabinete de um vereador.

Conquistara, assim, seus objetivos na vida. Um emprego estável, que lhe proporcionasse bom rendimento mensal e, paz interior para colocar seu único plano em prática. Quando concursou-se assistente do vereador, tinha menos de vinte anos e a vida pela frente.

Aos trinta destacava-se pelo empenho profissional. Nicolau optara por não envolver-se emocionalmente, nem sequer casar-se, pois, custaria um dinheiro dos infernos! Vivia sozinho em um quartinho de pensão, no centro da cidade, bem ao lado do escritório.

Levou mais de trinta anos de existência nessa indiferença social. Sem amigos, sem esposa e, principalmente, sem filhos (a maior fonte de despesa de um homem). Não chamava a atenção de ninguém e, poucos o reconheciam como colega de trabalho.

Sempre que precisava aliviar-se dos desejos mais carnais, dava um jeito de resolver-se sozinho, mas, quando era inevitável, sacava uma quantia mínima e perambulava pelas ruas sujas do centro, atrás das putas mais baratas. E negociava cada centavo seu.

Muitas vezes voltava para casa e dormia cedo, de consciência limpa, sem perder um tostão para as vadias salafrárias do centro. Outras vezes, no alto da madrugada, uma ou outra alma caridosa aceitava seus vinte contos por quinze minutos de prazer comprado.

Levou outros dez anos nesse ritmo morno. Era sopa do osso todos os dias. Muito medo de provar arroz e viciar-se na guarnição desnecessária. Fubá era sua grande regalia. Apenas em datas especiais. Acabou, por total acaso, com um problema na tireóide.

Virou um velho inchado, depois que aposentou-se. Não cativava nem mais as salafrárias do centro, perdeu o interesse estético de se manter apresentável socialmente. Cortar o cabelo ou fazer a barba tornou-se um capricho caro e, sem ele, poupava uns trocados.

Nunca tratou suas enfermidades, a não ser quando gratuitamente, pois, acreditava que o governo tomava muito do seu dinheiro em impostos. Deixou a inflamação na tireóide de lado e muitas outras moléstias. Por inspiração divina, nunca sucumbiu a elas.

Agora, já não tinha mais a pigmentação escura dos pêlos que tivera na juventude. Aceitava sua velhice como libertação para seu plano maior. Maior inclusive que seu credo ou qualquer filosofia pagã. Nicolau era pioneiro no que aspirava. E estava pronto!

Foi até o banco e sacou a enorme quantia que poupou por toda a vida. Olhou para as notas e não tinha nada que se orgulhar. Sem família, sem amigos e doente, fadara sua fortuna ao lixo. Isso se já não conservasse em si um plano mirabolante e mágico.

Todos os dias, depois das oito da manhã, tomava o ônibus da linha dois e descia na praça da catedral, a procura de alguém que ninguém sabia quem. Empunhava um grande saco vermelho. Às seis horas da noite, com olhar frustrado, tomava a linha dois de volta.

Repetiu por anos essa rotina. Uns três. Foi assim que o conheci, no meio do seu primeiro ano, lá na praça. Eventualmente o encontrava fitando os transeuntes, com olhar fixo. Esperando, enigmático, por alguma coisa inexplicável aos meus olhos inocentes.

Até que um dia, miraculosamente, seguiu um jovem executivo de gravata frouxa e ofereceu a ele sua pesada sacola. O garoto, desconfiado, levou uma das mãos à boca quando viu o conteúdo e, deu um passo atrás, enquanto escutava o discurso do velho.

O velho, da camisa vermelha, barba e cabelos brancos, feito algodão doce, cansado pela longa empreitada, esticou a sacola ao alcance das mãos do jovem e soltou confiante. Assistiu estático a caminhada apressada do garoto ao horizonte, com a sacola nas costas.

Perdendo-o de vista, suspirou profundamente, soltando os ombros sobre o peito e embarcou no inusitado ônibus da linha sete. Nunca mais foi visto. Nem procurado. Não tinha quem se importasse com ele e, seu papel, já havia sido cumprido na Terra.

O garoto, ouso dizer, vi num anúncio de revista esses dias. Acho que era numa dessas que mede a fortuna de um homem. Ele estava na capa e, uma frase de efeito incentiva-nos (seres humanos comuns) a acreditar no ser humano e em toda sua bondade.

Finalmente ele havia feito fortuna, graças ao velho. Vejo por aí, anúncios sobre um tal velhote, barba e cabelos brancos, que aquece a vida dos bons seres humanos. Basta um pouco de fé e num determinado dia ele te recompensa. Hoje sou eu que estou velho, não com essa bondade...

E é aí que eu jogo minha sagrada bíblia no canto menos iluminado da cômoda e, sarcástico, aviso ao vento e de bom grado, meu antigo senhor Jesus: “Te cuida Cristo, que, de presente em presente, um dia esse velhote toma teu reinado...”.

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