sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Oportunista


Certa vez tomei quinhentos contos emprestados de um grande amigo. Moleque justo, poupara toda a grana que ganhara desde os quinze anos para financiar seu próprio carro aos dezoito. Era o sonho dele, meu e de qualquer outro jovem naquela época. Mas para poucos.

No fim das contas tomei nem a metade do que tinha arrecadado, apenas quinhentos contos. Mesmo assim, tempos difíceis aqueles. Não dava para sair brincando com grana por aí. Pela amizade que tínhamos, ele topou segurar uns meses o carro, para quando eu quitasse a dívida.

O fato é que, dois meses depois, quando o prazo acabou, eu não tinha um centavo no bolso. Devo confessar que até já entendia o valor que tem o dinheiro na vida de um homem, mas meu talento para desperdiçá-lo, suprimia categoricamente minha necessidade de acumulá-lo.

Acabei inventando uma boa história sobre o motivo do empréstimo e a razão de não conseguir levantar o valor ainda. Ele confiava em mim. Amigos de infância. Consegui mais uns meses e ele jamais desconfiou a farra que fiz e as mulheres que comi com aqueles quinhentos contos!

Quando o novo prazo acabou, eu continuava desempregado e sem a menor pretensão de tal sacrifício. Nem pelo amigo. Mas precisaria convencê-lo novamente da minha falsa integridade. Afinal, eu andava tão duro que não podia arriscar uma amizade rentável como aquela.

Foi aí que tive a brilhante ideia que resolveria todos os problemas de uma só vez. Dizem que temos apenas uma grande chance na vida e, posso assegurar confiante, que aproveitei a minha. Não me arrependo do rumo que dei à minha vida depois desse fatídico episódio:

- Túlio, precisamos acertar as contas meu chapa, tá com um tempinho? – Me antecipei.

- Claro Guto, mas tá tudo certo? Resolveu aquele enrosco? – O cara se importava comigo.

- Não cara, mas também não é justo foder um amigo, não acha? Ta por aí andando a pé por minha causa!

- Que isso bicho, tenho a vida toda para colar a bunda no banco de um carro. Família vem primeiro!

- Pois é, mas você merece! Por isso achei justo considerar uns vinte por cento de juros. Seiscentos contos, beleza?

- Pô Gutão, nem precisa, mas se você diz...

- É isso mesmo, vamos só fazer umas continhas e depois disso, tocar a vida!

Ele concordou sem nem franzir a testa. A doce ingenuidade de uma amizade. Acenou positivamente com a cabeça enquanto eu inventava a situação lá em casa: O tio viciado em jogos, devendo até os punhos; minha mãe depressiva; a contenção de despesas. Até aí, fácil.

- Então cara, vou ter que considerar aquela viagem que te levamos para praia, lembra? Tiro os cem contos dos juros e tá tudo certo.

- Claro bicho, é justo. Já falei que nem precisava...

- E teve o telhado da Dona Judite que a gente quebrou indo atrás das pipas. Fiquei um ano sem mesada! Pô, tremenda sacanagem ! – Eu ri, tentando forçar segurança nos argumentos.

- É, mas eu também fiquei sem mesada o mesmo tempo, não te parece o mesmo prejuízo?

- Pô Tulião, você que tava em cima do telhado, bicho! Até hoje não sei por que paguei aquilo!

- É, acho que tem razão... Dá para eu assumir essa! – Respondeu ao meu riso, aliviei.

- Vou tirar cento e cinquenta nessa, fiz as contas!

- De acordo!

Até aí eu tava indo muito bem, meu plano diabólico começava a entrar sutil e rastejante pelas suas veias. O inocente garoto confiava de olhos fechados em mim. E nas baboseiras que eu vomitava em cima da dívida que assumi com ele. Estava na hora de pegar pesado, pensei:

- Aí tem os presentes de aniversário. Pô, nunca deixei minha mãe te comprar cuecas nem meia. Meu melhor amigo sempre mereceu o melhor presente! Só que isso custou os olhos da cara, você sabe!

- É, sei sim... – Nesse momento ele pareceu desconfiar.

- Então, se eu contar só os últimos dez anos, tiro mais duzentos. Parece certo? – Mantive a confiança.

- Hmm, acho que sim, pode ser. E o que mais?

- Nossa coleção de bonecos militares, tá contigo, né? Pensei em deixar contigo de vez por cinquenta. Já faz anos mesmo...

- Beleza Guto, compro sua parte então.

Cheguei a pensar que ele tinha sacado onde eu queria chegar. Na verdade, qualquer idiota teria sacado, e ele nunca foi um idiota! Mas acho que, no fim, ele tava meio perplexo comigo e quis ver até onde eu chegava. Respirei para manter a frieza. Já tinha pisado na merda mesmo...

- Lembra da Mari e da Carol, que a gente levou para a chácara do meu tio? Pô, ele acabou descobrindo e tu sabe que ele aluga lá. Veio me cobrar...

- É? Quanto?

- Cem contos por dia, ficamos três...

- Tá, mais trezentos contos, então?

- Não. Cento e cinquenta. Meio a meio ou eu estaria te passando para trás.

- É, SÓ por ISSO, você estaria me passando para trás...

- Bom, sendo assim, tu precisa me dar cinquentinha quando puder, beleza?

- E com isso nossa amizade tá quitada, digo, não nos devemos mais nada? – Sacou as notas da carteira enquanto eu concordava

Algum tempo depois, apareceu de carro no bairro. Fiquei feliz por ele, esforçado, trabalhador. Merecia o que plantara. Túlio sempre teve esse incrível talento para o sacrifício e nunca abriu mão da minha amizade. E gosto mesmo do Túlio, amigo para toda a vida.

Por conta dele nunca precisei trabalhar. Sujeitinho bom! Depois que casou me arranjou um quarto no porão da sua casa. Tenho minha própria mesada e recuperei a coleção de bonecos militares. Agora to de cama, porque caí do telhado esses dias tentando resgatar minha pipa!

domingo, 26 de dezembro de 2010

O Bom Velhinho Nicolau


Nicolau. Eis o velho avarento. Não “um”, porque não era qualquer, mas “o” avarento.O único ser humano capaz de estocar mais de oitenta por cento do holerite mensal e, no fim dos trinta dias entregar vitorioso, mais de quinhentos contos limpinhos ao banco.

O velho Nicolau nem sempre foi velho, mas, avarento? Ah isso ele sempre foi! Guardava cada centavo do seu suado salário e só gastava no que julgava necessário. Apenas e, exclusivamente, no necessário. Tinha uma relação muito dura com as cifras.

Começou cedo na vida. Aos quinze anos entregava peixes de casa em casa, graças à oportunidade que seu tio (peixeiro) ofereceu. Aos dezessete, realizava pequenas tarefas domésticas e aos dezoito, garantiu um emprego público no gabinete de um vereador.

Conquistara, assim, seus objetivos na vida. Um emprego estável, que lhe proporcionasse bom rendimento mensal e, paz interior para colocar seu único plano em prática. Quando concursou-se assistente do vereador, tinha menos de vinte anos e a vida pela frente.

Aos trinta destacava-se pelo empenho profissional. Nicolau optara por não envolver-se emocionalmente, nem sequer casar-se, pois, custaria um dinheiro dos infernos! Vivia sozinho em um quartinho de pensão, no centro da cidade, bem ao lado do escritório.

Levou mais de trinta anos de existência nessa indiferença social. Sem amigos, sem esposa e, principalmente, sem filhos (a maior fonte de despesa de um homem). Não chamava a atenção de ninguém e, poucos o reconheciam como colega de trabalho.

Sempre que precisava aliviar-se dos desejos mais carnais, dava um jeito de resolver-se sozinho, mas, quando era inevitável, sacava uma quantia mínima e perambulava pelas ruas sujas do centro, atrás das putas mais baratas. E negociava cada centavo seu.

Muitas vezes voltava para casa e dormia cedo, de consciência limpa, sem perder um tostão para as vadias salafrárias do centro. Outras vezes, no alto da madrugada, uma ou outra alma caridosa aceitava seus vinte contos por quinze minutos de prazer comprado.

Levou outros dez anos nesse ritmo morno. Era sopa do osso todos os dias. Muito medo de provar arroz e viciar-se na guarnição desnecessária. Fubá era sua grande regalia. Apenas em datas especiais. Acabou, por total acaso, com um problema na tireóide.

Virou um velho inchado, depois que aposentou-se. Não cativava nem mais as salafrárias do centro, perdeu o interesse estético de se manter apresentável socialmente. Cortar o cabelo ou fazer a barba tornou-se um capricho caro e, sem ele, poupava uns trocados.

Nunca tratou suas enfermidades, a não ser quando gratuitamente, pois, acreditava que o governo tomava muito do seu dinheiro em impostos. Deixou a inflamação na tireóide de lado e muitas outras moléstias. Por inspiração divina, nunca sucumbiu a elas.

Agora, já não tinha mais a pigmentação escura dos pêlos que tivera na juventude. Aceitava sua velhice como libertação para seu plano maior. Maior inclusive que seu credo ou qualquer filosofia pagã. Nicolau era pioneiro no que aspirava. E estava pronto!

Foi até o banco e sacou a enorme quantia que poupou por toda a vida. Olhou para as notas e não tinha nada que se orgulhar. Sem família, sem amigos e doente, fadara sua fortuna ao lixo. Isso se já não conservasse em si um plano mirabolante e mágico.

Todos os dias, depois das oito da manhã, tomava o ônibus da linha dois e descia na praça da catedral, a procura de alguém que ninguém sabia quem. Empunhava um grande saco vermelho. Às seis horas da noite, com olhar frustrado, tomava a linha dois de volta.

Repetiu por anos essa rotina. Uns três. Foi assim que o conheci, no meio do seu primeiro ano, lá na praça. Eventualmente o encontrava fitando os transeuntes, com olhar fixo. Esperando, enigmático, por alguma coisa inexplicável aos meus olhos inocentes.

Até que um dia, miraculosamente, seguiu um jovem executivo de gravata frouxa e ofereceu a ele sua pesada sacola. O garoto, desconfiado, levou uma das mãos à boca quando viu o conteúdo e, deu um passo atrás, enquanto escutava o discurso do velho.

O velho, da camisa vermelha, barba e cabelos brancos, feito algodão doce, cansado pela longa empreitada, esticou a sacola ao alcance das mãos do jovem e soltou confiante. Assistiu estático a caminhada apressada do garoto ao horizonte, com a sacola nas costas.

Perdendo-o de vista, suspirou profundamente, soltando os ombros sobre o peito e embarcou no inusitado ônibus da linha sete. Nunca mais foi visto. Nem procurado. Não tinha quem se importasse com ele e, seu papel, já havia sido cumprido na Terra.

O garoto, ouso dizer, vi num anúncio de revista esses dias. Acho que era numa dessas que mede a fortuna de um homem. Ele estava na capa e, uma frase de efeito incentiva-nos (seres humanos comuns) a acreditar no ser humano e em toda sua bondade.

Finalmente ele havia feito fortuna, graças ao velho. Vejo por aí, anúncios sobre um tal velhote, barba e cabelos brancos, que aquece a vida dos bons seres humanos. Basta um pouco de fé e num determinado dia ele te recompensa. Hoje sou eu que estou velho, não com essa bondade...

E é aí que eu jogo minha sagrada bíblia no canto menos iluminado da cômoda e, sarcástico, aviso ao vento e de bom grado, meu antigo senhor Jesus: “Te cuida Cristo, que, de presente em presente, um dia esse velhote toma teu reinado...”.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Vampira da Praça do Fubá


Quando eu era pequeno, havia esse mito da vampira da praça do fubá. Nunca morei noutro lugar que não num dos muitos prédios que cercam a praça. Centro da cidade, cidade grande. E desde bastante menino corro e brinco entre suas árvores. Mas isso apenas durante o dia.

De noite, a praça torna-se um lugar mal frequentado, segundo minha avó. Lotado de marginais. E a vampira. Quando menino, antes de dormir, eu caçava com os olhos a rainha dos condenados. Custou até que eu descobrisse não se tratar de nenhuma delas, especificamente.

Eram muitas vagando por lá. Por isso tratei de eleger minha própria vampira. Algumas semanas as observando e acabei encontrando uma linda pretendente: Branca feito algodão, cabelos negros e maquiagem pesada. O perfeito estereótipo de um ser notívago e soturno.

Nunca consegui, durante minha infância, descobrir como desaparecia e para onde ia minha musa ocultista. Eu dormia antes... Essa obsessão cresceu em mim como um desejo sôfrego e puro de estar com ela e ser dela. Compreende-la. Na puberdade esse ímpeto aumentou.

Ainda não entendia como funcionava seu mecanismo. Andava pelos becos mais escuros durante o dia, em busca da escuridão onde repousava aquela beleza sufocante. Estava enfeitiçado pela deusa das trevas, disposto a oferecer minha própria carne por sua eternidade.

Como nessa época eu já tinha conquistado certa liberdade, só voltava para casa depois que elas começavam a surgir na praça. Rigorosamente às sete da noite, pousava delicadamente minha musa. Imponente, jovial, aromática e perfeita. Não a encarava mais que três segundos.

Mas já tinha entendido como se configurava cada etapa daquele ritual misterioso e sensual: Um homem discreto e randômico se aproximava com algumas notas, ela conferia uma a uma e, então, desapareciam juntos pela noite. Pouco tempo depois ela voltava, sozinha e intacta.

Depois que descobri o que faziam, achei curiosa essa transação. Logo na praça do fubá que herdou esse nome depois da lei áurea, quando os escravos, jogados às ruas, vendiam ilicitamente a farinha que produziam, para sobreviver. Anos depois, era a mesma motivação.

Agora estava claro que eu precisava dela mais do que nunca. Meus hormônios adolescentes não cabiam no meu corpo ou nas minhas fantasias. Juntei o dinheiro de um mês todo e fui até ela. Sem saber como a abordaria, o que faria e como seria minha vida depois dessa noite.

Parei em sua frente e percebi uma hesitação. Mostrei-lhes as notas e ela olhou para os lados. Tomou-as das minhas mãos e perguntou o que eu queria. Dei os ombros e olhei para o chão. Ela pegou na minha mão e caminhou comigo até um velho hotel, dobrando uma esquina.

Lá, ela tirou cada peça de roupa minha e despiu-se bem devagar. Pôs os seios à mostra e era toda impecável. Lisa, alva, reluzente. Deu-me as costas e encantou-me com movimentos sutis enquanto descia a última e minúscula peça de roupa. Sorriu libidinosa por cima dos ombros.

Eu estava ofegante e inebriado. Nunca estive tão excitado antes. Tremia. Ela virou-se em minha direção protegendo o sexo, como se me guardasse uma surpresa. Bem diante de mim, soltou as mãos e agarrou-se à minha cintura. Tive uma sensação estranha nas minhas pernas.

Não entendia nada de anatomia feminina naquela época, mas o calor que senti com a aproximação dela, era muito parecido com o calor que eu oferecia. Mas devia ser assim, eu jamais saberia que não. Sei que aquela experiência mudou toda a minha vida. Numa única vez!

Acabei tendo outras experiências, menos promíscuas e certamente mais autênticas. Descobri belas coisas sobre a delicada e sensualíssima anatomia feminina. Terminei me casando com uma mulher exuberante. Construí família. Mudei-me para o outro lado da praça, logo ali.

Ainda hoje observo a vampira. Linda como há trinta anos. Intacta e eterna. Conservada pela obstinação falida de uma feminilidade deturpada. Muito mais feminina que muitas mulheres, porque precisa provar para todos o que deseja ser. E precisa provar para si. E é, para mim, tudo o que quiser ser, a vampira da praça do fubá.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Pecado e Redenção


Mordeu profundamente o fruto lustroso e tenro da árvore proibida. Cravou os dentes como se fosse a própria carne daquele velho tirano. Mastigou junto meia semente (pretendeu o osso do velho). Em seguida cuspiu a papa adocicada que formou na boca. Só queria provar seu ódio.

O velho observou incrédulo o gesto cruel e decidiu, definitivamente, expulsar aquela megera ingrata do seu pequeno paraíso, projetado com tanto amor para os dois seres mais medíocres que o universo tinha tido notícia: Ana e seu tapado irmão, que nunca teve nome.

A menina, ao menos justificava-se pela personalidade impossível. Absolutamente intolerável, mas respeitável. Já o irmão não passava de um robozinho estúpido, programado para repetir cada um dos desafetos da irmã com a mesma intensidade, ainda que sem saber o porquê!

Abriu-se o portão principal e, pela primeira vez desde que tinham lembrança, alcançaram o lado de fora do mundo. Ana suspirou a liberdade enfim conquistada, o moleque olhou para todos os lados e suspirou junto, fingindo entender do que se tratava aquela densa respiração.

Lá dentro da fortaleza, suspirou profundo o velho também. Fraco e derrotado. Teve um sonho muito tempo atrás e construiu aquele magnífico calabouço ao ar livre. Confeccionou dois serezinhos desde o nada, como se seus próprios filhos. Deu-lhes conforto, instrução e amor.

Não tinha grandes expectativas, só achou por bem oferecer amor a um mundo corrompido por tantos sentimentos vis. Recrutou dois jovenzinhos puros e os apadrinhou. No começo Ana era uma explosão de curiosidade, interessava-se por tudo e respeitava o velho. Para ela: Papai.

Tinham muito tempo livre e muito espaço. Também tinham lições de botânica, geografia e história. Aprenderam que só duas coisas eram proibidas: Desejar o mundo de fora e alimentar-se da árvore proibida. Nunca quiseram os motivos. “Só uma questão genesial”, dizia o velho.

O tempo passou e Ana foi tornando-se mais inquieta, já não aceitava as imposições à sua condição naquele território. “Ou a plena liberdade ou a tirania declarada”, inquiria ela. Estava cansada da pasmaceira e daqueles muros, precisava expandir-se...

O tapadinho, no começo, afastou-se da rebelde com medo de perder as regalias. Algum tempo depois foi trazido de volta ao bando dos revoltados, sob algumas sinceras ameaças à sua integridade física. Ficou instituído desde esse dia, que repetiria cada um dos gestos da irmã.

Culminou na mordida do fruto. Outro fruto, mesma árvore. No momento seguinte ao desaforo da Ana. No momento anterior à abertura dos portões. Tinham agora a liberdade almejada e, também, a não necessidade de retribuir amor ao repugnante velho. Não mais a mesma cama.

Porque era esse o amor do velho. Físico, tátil, rude, sujo. Um amor obscuro e velado, que imaginou incorruptível, se a educação não transpassasse seus domínios. Que moral teriam as crianças se educadas por ele? Como discerniriam o certo do errado? Não poderiam...

Mas de alguma forma aquela pequena insolente pesquisou o mundo de fora. Assassinou o sonho hedonista do homem que conquistara quase tudo o que cobiçou. Agora viviam livres, os dois. Livre de correntes, de violência consentida e falso amor. Livres do amor, essencialmente.

Tinham liberdade e fome. Liberdade e desamparo. Frio, medo, impotência. Tinham certeza que estavam melhor dentro do portão. Até o irmão, em um surto de vontade própria reconheceu os benefícios do mundo de dentro. A comida, o conforto, a outra liberdade.

Ana finalmente assumiu seu pecado: Vaidade. Quis ser maior que o velho e agora aceitava que jamais seria. Deitou-se com o homem da quitanda por uma maçã, tenra e vermelha. Era o símbolo da sua redenção. Ajoelhou-se ao velho e, no dia seguinte, o universo harmonizou-se.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Jonas, o Que Faz Seu Pai?


Havia só mais uma fileira de carteiras e pronto, Jonas contaria para toda a classe, inclusive para a professora, o que faz seu pai. Não tinha escapatória. O colégio era o único lugar no mundo (de Jonas) onde ele tinha a paz de não pensar na carreira constrangedora do pai.

“Meu pai é bombeiro, professora!”; “meu pai é vigilante!”; “meu pai é açougueiro!”; “mecânico!”; “carteiro!”; “coveiro!” – Todos tinham orgulho das profissões dos seus pais. Menos Jonas que, aos oito anos de idade, frustrara-se em duas fugas para fora da própria casa.

Os coleguinhas à frente iam logo dizendo o que faziam seus pais, esperavam a admiração geral, e imediatamente olhavam para trás, esperando que o próximo pai fosse menos poderoso que o dele. Jonas suava. Era sua vez! Sem pensar muito despejou uma ideia súbita:

“Meu pai, professora? Ele é um super-herói...” - Tinha um tom discreto e nada confiante na voz. A classe foi abaixo, às gargalhadas. Mas a professora pareceu interessada no que o menino tinha a dizer. Mesmo se o menino não soubesse o que dizer. As idéias foram surgindo.

“Ele guarda a roupa especial no porão de casa e ninguém entra lá, só eu! Aí eu ajudo a encontrar todos os bandidos do mundo. Ele disse que quando eu crescer vou ser super-herói também!” – Os meninos ainda riam, mas crescia neles a curiosidade pelo causo inesperado.

“Quando ele vai para a rua ele captura um monte de gente má, que faz maldade com criancinhas e diz que faz isso para me proteger, principalmente!” – Crescia agora, em Jonas, a confiança nas palavras e as ideias brotavam em sua cabeça como formigas em formigueiro.

“Ele cuida de todas as criancinhas, desde pequenininhas até as grandes. Porque ele adora criança! Lá em casa tá sempre cheio de criança porque lá é muito seguro para brincar!” – Jonas andava pela classe e contava cada detalhe da falsa profissão do pai. Agora todos o invejavam.

“A roupa dele é muito legal porque deixa ele invisível e por isso ninguém nunca vê ele, mas é ele que não deixa nada de mal acontecer!” – Os meninos olhavam para os lados procurando o pai invisível e destemido de Jonas, alguns reproduziam gestos marciais em sua homenagem.

“E depois de tudo isso ele ainda tem tempo para brincar comigo e jogar bola no parque. Eu amo muito meu pai porque ele cuida de mim e de todo mundo.” – Os olhos da professora brilhavam. Jonas não sabia onde aquilo ia dar, mas percebeu um vislumbre incomum nela.

Toda aquela fantasia durou até o fim da aula e o restante da turma acabou não dizendo o que seus pais faziam. Nem queriam mais. Todo mundo queria era saber sobre o “Raio Invisível” (já tinham o apelidado). Jonas não tinha remorso da historinha, gostara do resultado até ali.

Pela primeira vez entendeu o que querem os outros. Não a verdade, mas uma mentira bem contada. Por mais absurda que seja, se contada com esmero, é a verdade mais pura e sincera que qualquer ser humano espera ouvir. Tanto tempo perdido em aflição. Se soubesse antes...

De qualquer forma, esperou mais um tempo na sala porque a professora pediu. Satisfeito com sua nova popularidade e também a repentina vitória sobre a vergonha que tinha do pai. Depois que todos saíram, ela veio em sua direção com um grande sorriso e disse:

“Olha Jonas, metade da turma mentiu a profissão dos pais aqui, mas só você foi belo para brincar com a imaginação, parabéns” – Sentiu-se aliviado, mas desconfiado. “Quero dizer que vou pessoalmente levar você para casa. Preciso falar com seus pais. Que menino brilhante!”

O menino não esboçou nenhuma reação. Parecia desligado do próprio corpo. Criara um problemão ali. Foi em silêncio fúnebre, sacolejando pelas ruas esburacadas, no banco de trás do carro da professora. Chegando lá, desviou o olhar e correu para o sofá, baixando a cabeça.

A professora contou a história do menino, apontou todas as possibilidades de futuro, assumiu o amadrinhamento dele e se dispôs a ajudar na casa. Tudo pela admiração instantânea naquele garoto quietinho e sem amigos. “Mas afinal, o que o senhor faz?” – Quis saber.

Todos na casa olharam para o pai, aterrorizados com aquela pergunta inocente. Jonas mantinha a cabeça baixa. O pai passou bem do seu lado e foi à cozinha. Na volta, tilintando o que pareciam fósforos, trancou a porta da frente. No dia seguinte, deu no jornal popularesco:

“Tragédia na Zona Sul, família inteira morre queimada em barraco. Professora do filho está desaparecida e a polícia considera hipótese de envolvimento no crime”