terça-feira, 31 de maio de 2011

Quando Eles Tomam o Poder


Invadiu a casa, todo emburrado, em pleno meio-dia e, fazendo questão de chamar a atenção, atirou contra o batente, a porta da sala. Mirou seu olhar no sofá e em Silvia, que almoçava e descansava das tarefas matutinas:

- Escuta, estou tendo um dia dos infernos, por isso saia dessa TV que eu preciso dar uma boa relaxada.

- Mas... Mas... Você não devia estar aqui a essa hora. O que faz aqui?

- Me faça um favor e tente não me deixar ainda mais irritado. Fui expulso, jogado fora. Não me queriam lá. E nem eu queria estar lá, você queria mais que eu. Me viro melhor sem aqueles imbecis.

- Mas você não pode sair desistindo assim. Não pensa no amanhã? E o futuro, meu amor?

- Cala essa boca e me deixa ver TV. Depois a gente conversa. Aliás, vai até a cozinha e me frita alguma coisa. Uma porção de calabresa ou sei lá.

Ela foi, tentando evitar um conflito maior. Ele era durão, mas não era de sofrer sozinho. Logo contaria o que tinha acontecido, aí ela o dissuadiria desse plano louco de jogar tudo para o alto. Tinha uma persuasiva psicologia, e o conhecia tão bem...

- Aqui está, coma um pouco, vai te deixar mais calmo.

- Mais calmo? Não passa nada nessa bosta de TV! E me trás uma soda porque essa comida encharcada vai me deixar com sede.

- Claro! Mais alguma coisa?

- Está sendo sarcástica? Odeio seu sarcasmo imbecil! Você é uma imbecil!

- Para com isso, só estou perguntando se quer mais alguma coisa...

Esvaziou os pulmões impaciente e fingiu ignorar seu comentário. Abriu o armário da sala e o revirou atrás de um aparelho eletrônico. Depois, conectou os cabos à TV e espalhou tudo pelo chão. Praticamente desfez a organização de Silvia. E nem fez menção de se importar.

- Olha só, essa bosta de videogame já está me dando nos nervos. Preciso de mais jogos. Porque não sai pra comprar algum bem sangrento enquanto me deixa em paz aqui?

- Por-que vo-cê não an-da me-re-cen-do! – Cantarolou graciosa e inocente, da cozinha.

- Cadê minha soda? – Inquiriu, enquanto a ignorava espancado um personagem qualquer do seu jogo.

Passou assim as próximas duas horas e, perto do meio da tarde, saiu da sala (abandonando o videogame ligado, no emaranhado de fios) e reclamou do calor. Jogou a camisa do seu uniforme no chão, a caminho da geladeira. Sabia do que precisava naquele momento:

- Cadê a cerveja? – Gritou para o ar.

- Não combinamos que você não beberia durante a semana? Ainda é terça-feira!

- Não! Combinamos que você não ia encher o meu saco. Cadê a porra da cerveja?

- Na gaveta, embaixo do congelador... – respondeu da porta da cozinha, tentando convencê-lo com sua cara de piedade.

Ele encontrou as garrafas e foi logo pegando duas. Matou a primeira em um só gole e finalizou com um arroto sujo e longo, olhando para Silvia com um sorriso debochado. Cruzou ela e foi para o quintal. Essa era uma das poucas coisas que a fazia querer mata-lo ou se matar.

- Você precisa agir assim? Como um homem podre e asqueroso?

- Cuida da sua vida. Eu nunca me meto em nada que você faz. E vai à merda... – Disse de costas, convencendo-a de que não se importa.

Passou mais uma hora e passou outras duas ou três garrafas de cerveja. Já estava bastante enfraquecido pela bebida. Fitava sonolento o horizonte. Silvia perguntava onde tinha errado. Ele sacou do bolso um maço de cigarros e ela, inacreditavelmente perplexa, gritou da janela:

- O que é isso, está fumando agora também? O que mais me falta?

- Não tem roupa para lavar não? Não enche!

- Olha como fala comigo, não sou sua empregada! – Retrucou discreta o insulto.

- Então lava isso! – E atirou o sapato em sua direção, quase acertando o seu no rosto.

Não passou muito tempo, acabou vencido pelo sono e voltou para a sala, desfalecendo no sofá. Roncou e resmungou algumas palavras incompreensíveis e logo se acalmou em um sono pesado e até bonito de ver. Perto das sete horas, chega Pedro, o vê deitado e procura Silvia:

- Boa noite amor, como foi o seu dia?

- Oi querido, foi normal e o seu?

- Também, nada de novo! Está tudo bem com o Roni? O que ele faz dormindo no sofá a essa hora?

- Acho que teve algum problema no colégio. Estava irritado quando chegou, no almoço.

- Adolescentes... Tudo parece o fim do mundo! Logo essa fase passa...

sábado, 21 de maio de 2011

Definhando

                                                  Arte: Vincent Van Gogh

Acordei pensando na morte. Mas não, nada de último suspiro. Leito final, pele enrugada e conselho sábio à juventude. Apenas na morte invisível do dia-a-dia. Aquela que se aloja no nosso organismo logo que deixamos o ventre e que vai comendo nosso corpo aos poucos.

Que se alimenta a microgramas da nossa estrutura bio. O colágeno da pele, o cálcio dos ossos. Os hormônios, a melanina. Tão devagar que nem percebemos o cabelo perdendo a cor, se não os próprios fios. Tudo o que começa a doer. As juntas. O corpo arqueado que se arrasta.

A cabeça sã. Algumas memórias oferecidas em troca de um pouco mais de saúde corpórea. As pessoas que esqueço pelo caminho, as glórias infantis que desaparecem fugazes do meu subconsciente, invariavelmente, para que eu possa subir pelo menos mais um lance de escada.

As debilidades dos meus vinte e tantos anos. Toda a vitalidade que tinha aos quinze e que não volta. As debilidades dos trinta e tantos, a vitalidade dos vinte e cinco que não volta. As debilidades dos cinquenta, a vitalidade dos quarenta que não volta. Nada, na vida, volta.

Morremos um pouco todos os dias, quando dormimos. Morremos de vez, se não. Me lembro que ontem tinha mais saúde que hoje, ao acordar. Tinha um dia a mais de vida. E lembro que meses atrás eu jogava bola, hoje a droga do meu joelho podre não permite. Vai melhorar?

Não vai! Vou, eventualmente, aprender a conviver com a dor e jogar manco, mais alguns anos. Mas é justamente essa adaptação soturna às intempéries da vida que me apunhala as costas. Essa condição acomodada de aceitar as lesões, a calvície, a demência e, a final, a morte.

Um instante! Falando assim pareço em crise com a velhice (Peter Pan?). Mas não, só acho que Chaplin é que estava certo. Deveríamos nascer velho e morrer bebê, no melhor estilo B. Button. Mas quanto mais estímulos recebemos da vida, menos condições físicas nós temos.

Tudo graças ao sadismo divino de brincar com nossos desejos e anseios. De nos oferecer lindas trilhas a praias desertas e a esclerose múltipla. Vôos de asa delta e o ataque cardíaco. Mulheres exuberantes e a impotência sexual. A vivência acaba com o prazer de viver.

Amanhã pensarei menos nisso, talvez até esqueça. Alzheimer? Acho apenas que acordei para a irreversível e particular contagem regressiva da vida. Uma ampulheta monumental que, a esta altura, suspende bilhões de grãos no andar superior, mas, os despencados morreram na queda.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Na Janela


O vento que bate na cara limpa. A brisa suave que acaricia a pele, os pelos, e deixa escapar o sorriso involuntário da felicidade. Fios de baba no ar, fios que ficam para trás na estrada. Próxima encarnação quero levar uma vida menos premeditada, uma autêntica vida de cão.

Não essa cheia de compromissos e preocupações. Nem, tampouco, aquela do cão abandonado ao lixo, tentando alcançar as sarnas no dorso. Na verdade, nem o cão ipsis literis, capacho de estimação. Mas uma vida que, em segurança, não me tire o sono no alto da madrugada.

O que eu queria mesmo era poder contar com o despreparo para o futuro. Ter a absoluta convicção de não ter ideia do que vem adiante. Essa tarefa inesgotável de planejar tudo, de pensar nas consequências para o meu desenvolvimento, dá um trabalho danado, do cão!

Olho para meu par de tênis surrados (um ano de uso) e arrepio pelos que ainda nem nasceram. Preciso de novos! Vou a uma loja e sei que o novo tem que ser confortável, elegante, sofisticado e , de quebra, caber no meu orçamento. “Parcela em quantas esse aqui?”

Daí eu vejo uma bolinha de tênis na gôndola ao lado do caixa e tudo, tudo o que eu quero é poder arremessa-la o mais longe possível pelo corredor do shopping. Daí sair correndo, por cima de todo mundo, até alcança-la com minha mandíbula. As pequenas glórias do dia...

Depois do tênis é o óleo do carro. Depois o carro inteiro. Encontrar uma esposa. Ser feliz. Um apartamento. O nome das crianças. Um apartamento maior, uma casa. Escritório. Contas. Economia. Viajar. Vida sexual. Aposentadoria. Aposentadoria? Putz, esqueci! Tarde demais...

Os sonhos. Claro! Os sonhos ficam para depois. Tão logo eu descubra as limitações da idade, vou sentar na cadeira de balanço, na sacada da casa velha e vazia e ter, finalmente, tempo de sobra para sonhar. Vento nas árvores, fralda geriátrica, babador e visão turva. Inércia plena.

Só que, segundos antes de eu sufocar de vez essa angústia, vai passar na minha frente um carro, e nele um cachorro debruçado na janela. Cabeça para fora, vento na cara, olhos semicerrados, baba desgovernada e, satisfeito, sem absolutamente nada na cabeça!

domingo, 8 de maio de 2011

Muito Prazer, Mí-ou-ní


Tudo bem que não dá para levar a sério um cara de outra dimensão, que voa, através do arco-íris, todo saradão, no meio do deserto mexicano e, logo de cara, flerta com uma Natalie Portman meteorologista, toda meiga e impetuosa. Mas dá pra se divertir muito com tudo isso!

A grande aventura começa perto das seis da tarde, com um convite inesperado: “Thor as dez no Cinemark” – Inesperado simplesmente por não esperar, porque sendo feito, só podia ter sido por quem foi, parceiro ávido e ativo da sétima arte. E sempre sucumbo à idoneidade.

Por isso, não fosse o incansável voto de confiança, Thor teria passado longe da minha lista de filmes. Pelo personagem, sem dúvida. Já não sou um grande entusiasta dos quadrinhos e, salvo Batman, Ironman e Watchmen, os dispensaria todos, até que enfim chegassem os Vingadores.

“Filme feito para fãs” – foi o incontestável argumento para rebater minha displicência heróica. A defesa nasceu de um inocente desabafo ao incrivelmente chato Hulk (readaptado) e se estendeu ao iminente Thor. Argumento pontual, deixo minhas desculpas ao monstro verde.

Tela em movimento, avalanche de trailers (não canso de gostar da expectativa proporcionada) e pronto! Fade in para o filho do trovão me convencer dos seus poderes mágicos. Poucos frames e o sorriso de Portman brilha intenso bem lá no fundo dos meus olhos. Thor quem?

E vão dizer que é a maldição do Oscar. Que bastou a estatueta para ela se meter em produções duvidosas (leia-se Halle Berry em Mulher Gato e Charlize Theron em Aeon Flux), pois defendo Thor como uma produção duvidosa de primeira! E a menina Natalie impecável.

Aliás é a doce liga do filme, a própria Ms. Portman. Mesmo dentro de um papel raso, ela extravasa carisma. De dispensável fica apenas o sempre dispensável romantismo hollywoodiano, entre ela e Thor (Spoiler?). De resto, boa ideia e ponto para Kenneth Branagh.

O diretor sabia que tinha uma bomba em potencial nas mãos. Empurrar Thor, um herói do segundo escalão, goela abaixo de expectadores desavisados como eu, não seria nada fácil. Por isso a grande sacada de fazer da obra, uma comédia sutil e sem exageros. Pipoca com coca!

Até o quase inédito Chris Hemsworth soube sustentar o papel que lhe cabia. A melhor personificação que consigo visualizar. À contra gosto, admito, estar tarde demais para Brad, um reles cinquentão. Não sugiro sequer o velho Odin, já que Hopkins é tão imbatível quanto o próprio sr. Pitt.

Mas acato à sugestão paralela do filme se passar todo em Asgard, sem a Terra. Faria bastante sentido um pouco mais de epicismo, Anthony Hopkins e Rene Russo (onde diabos ela tinha se metido?). E aquela dimensão dá um caldo. Loki, a trilha que leva ao portal dos mundos, o guardião e os Gigantes do gelo.

Thor é pouco, mas atende a uma proposta específica. “Filme feito para fãs” vira minha verdade absoluta. Natalie Portman tem minha carta de anuência para qualquer produção, chanchadas se quiser! Que venha Capitão América, os Vingadores, tudo. Ainda viro fã!

Alimentando a Fé



Filmes de terror não estão entre meus preferidos. O medo nunca foi uma necessidade fílmica para mim. Mas se pudesse escolher algo capaz de me assustar e despertar minha curiosidade, iria no terror católico, de demônios e descrença nas divindades. Isso sim.

Em “O Ritual”, Anthony Hopkins é um padre exorcista (desses que fazem o tipo gênio indomável, ignorando protocolos) que tem a tarefa de reascender a fé em um jovem seminarista em crise. E essa reconstrução da fé é minuciosa até para nós, expectadores.

As evidências apresentadas ao jovem Michael Kovak (Colin O'Donoghue, o seminarista) pelo padre Lucas (Hopkins) não o convencem tal qual não nos convencem. Parecem truques infantis e somos forçados a compactuar da descrença do pré-paroco.

Até que a frase mais forte do filme é lançada pelo próprio Dom Lucas: “Escolher não acreditar no diabo, não o protegerá dele” – Eis o meu dilema pessoal! A falta de fé no céu e no inferno não me exime do medo juvenil do desconhecido. E agora, meu Deus?

A única garantia que tenho da defesa aos ataques demoníacos, nas solitárias noites escuras do meu quarto, é a certeza de que nada disso existe. Aí vem um maldito padre Lucas e diz que isso não é suficiente para a proteção da minha inexistente alma? Ferrou!

Mas, no meio disso, interessante ponto de vista de Mikael Håfström (diretor sueco habituado às obras de terror) ao transformar um simples filme de exorcismo num thriller de angústia e dilemas. Não há fortes cenas de susto, nenhuma surpresa em volume alto.

Seria muito óbvio fazer dos takes nas sessões de exorcismo um ataque aos nossos ouvidos e coração, mas as cenas são apresentadas com rigorosa cautela, há um certo “prepare-se, é agora”. Isso faz de um medroso como eu, o expectador mais interessado.

Até que percebemos (presos à cadeira, músculos enrijecidos), não se tratar exatamente de um filme de terror, mas, de um desafio à fé nos dias atuais. A perda da força cristã na era da informação e auto-suficiência. Estamos no meio de uma transição histórica.

Como em “Merlim” que abordava a transição do mágico para o cristão na idade média. A chegada de Cristo enquanto a derrocada dos seres místicos (fadas, elfos e gnomos). “O Ritual” aborda com precisão essa crise que chegou ao clero vaticanês.

E Hopkins dispensa elogios, sempre. Mesma cara perturbada, personalidades distintas. Alicinha Braga com sua habitual beleza sulcada, segue com esmero os discretos passos hollywoodianos da tia. A atuação em “O Ritual” não é brilhante, mas pontual.

Porque o filme, no conjunto, não é brilhante. Inovador sim, uma nova cara para o terror, muito mais convidativo e emblemático, mas, como toda reinvenção de gênero, oferece alguns clichês e apenas abre precedentes para os próximos diretores o seguirem.

Já o interesse pelo resgate da fé é claro, mas, pelo meu orgulho cético, convenceu-me só por duas horas. Méritos pelo feito artístico/cristão! Por outro lado, viva a sétima arte porque, não fosse o asco a um tal Hannibal Lecter, Hopkins teria me jesuítado à igreja!