terça-feira, 30 de agosto de 2011

Repelindo a Perfeição


                                                           Arte: Pablo Picasso

Era quando eu olhava para o lado de lá, procurando a perfeição projetada idiotamente em mim, que eu me frustrava mais. Aquela perfeição idealizada e burra que passei a vida tentando encontrar. Vasculhei, inquieto, todo o perímetro do espelho e só encontrei olhos perdidos.

Os mesmos olhos vagos da minha infância, tão inocentes. Como se tentasse descobrir o erro, para não repeti-lo.  Porque “errar uma vez é humano, insistir no erro, é burrice” – Era o que eu ouvia o tempo todo. Então não podia errar. Muito. Anos de asco à incompetência, aqueles.

Foi que, no meio da minha adolescência, a grande epifania! Se perfeição é não errar, sequer tentarei! Perfeito! Não é fácil assumir, mas, por mais de uma década, fiz absolutamente nada. Não ousei nem tentei. Errei nada. Pode apostar, havia por aí uma sincera admiração por mim.

Que eu não sabia de onde vinha e, ainda, fazia vista grossa. A perfeição maquiada que eu exalava. Mas, como toda maquiagem acaba borrando, logo essa admiração se auto sepultava. E, digo, uma vez que você assume a preguiça da vida, difícil voltar atrás e arriscar-se ao êxito.

Mesmo assim, tentei resgatar em mim algum talento oculto e adormecido, lá nos confins do corpo. Assumi a escrita e, pela primeira vez em muito tempo, entreguei-me sem ressalvas a alguns julgadores em potencial, conhecidos e desconhecidos. Meu perfeitômetro particular.

Aí gozei de um curto período no Olimpo. A surpresa que meus textos provocavam, o carinho. Que talento! A admiração, finalmente, fundamentada e o caminho da perfeição. Aí, subitamente, me vi julgado pelo pior dos julgadores: Eu. Claro. Os textos? Não tão bons assim.

Então eu desisti de uma vez por todas dessa obsessão quase natural pela perfeição. Porque o prazer deve estar no desejo da produção e não na obtenção do resultado. O que qualquer um (incluo-me) acha do que produzo, importa menos que a total satisfação de estar produzindo.

Mas, paralelo a mim, vem você tentando a mesma perfeição, tapada e inalcançável. Pensando que o êxito, na vida, está no êxito das coisas. Nas linhas retas e pele lisa, sem cicatrizes. Esquecendo que toda falha tem sua graça tragicômica. E uma carga de modéstia impagável.

E você pensa que é sua impecabilidade que te aproxima dos outros e que os conservam por perto. Mas não vê que é justamente ela que afasta. Que é ela quem despeja uma avenida de ovos de distância. Porque enquanto você melhor que todos nós, que temos a oferecer?

E, veja, todos nós dormimos sem escovar os dentes, de vez em quando. Todos nós peidamos no elevador, às vezes. E nosso cocô fede! Já falamos coisas sem pensar e não fomos bons cidadãos em algum momento. Mas é por isso que nos aceitamos iguais. Perfeitamente iguais!

sábado, 27 de agosto de 2011

O Banho


A água quente atingiu o peito do pé que, de tão gelado, confundiu-se em temperatura, demorando a denunciar que as gotas já queimavam a pele. O banho quente era tudo o que precisava e as lágrimas, insustentáveis de prazer, se misturavam, difusas, às gotas ferventes.

Tinha virado o segundo mês que ela não sentia o calor do vapor aquecendo o corpo branco e (sujo, embora) meio desbotado. E aquele banho tinha um preço. Um preço alto que conhecia e tinha total indiferença sobre. Porque agora, e desde sempre, os fins justificavam os meios.

Os poros do corpo, retraídos e empoeirados, se abriam aos poucos, um a um, despertando de um sono hibernal. Essa era sua purificação. E quase feria a pele a água removendo a sujeira espessa dos últimos meses. Monóxido de carbono das ruas. Carros, cigarros e idiotas em geral.

Sentia-se nobre outra vez. Dotada de uma realeza tão única que extravasava os limites daquele cubículo, revestido de louça barata, e atingia o cômodo adendo. Onde repousava impaciente um gordo qualquer, que devia ter nome, embora isso não importasse uma vírgula para ela.

“Me traz aí o sabonete e o xampu, seu inútil” – Abandonou o papel de menina indefesa e reassumiu sua posição real à plebe. Lavava, junto com as tranqueiras que o corpo absorvera todo esse tempo, a baixa autoestima que a impregnava e a desconcertava socialmente.

Sem titubear, o gordo trouxe os produtos e os ofereceu do lado de fora do box, embaçado pelo vapor. “Deixa aí na pia e some daqui seu imprestável, não estou pronta ainda.” – Era uma posição confortável essa que revivia, depois de tanto tempo submetida a caprichos alheios.

Rita conhecia seus limites e, também, as taras mais autênticas do homem comum. O gordo virou as costas rapidamente e se ocupou da televisão, no quarto. Ela abriu o box e pegou os produtos na pia, encharcando o chão. Despejou então, todo o conteúdo do pequeno frasco.

Sentiu o cheiro demasiadamente forte do eucalipto, descendo pelo cabelo e preenchendo seu nariz. Agora que, purificada, ousou nausear-se. Depois lembrou ser esse o aroma mais limpo que sentira nos últimos meses. Reservou então, sua arrogância genética para mais tarde.

Ensaboou-se por muito tempo. Enquanto isso, a pele ia se tornando mais branca (agora limpa e perfumada). Deslizava o sabonete pelo corpo, novo em folha, se acariciando. O calor do seu corpo era o calor do chuveiro agora. Termo-híbrido. Rita passaria toda a vida ali, se pudesse.

Mas, simplesmente, não podia. Desligou o chuveiro e caminhou pela névoa morna e úmida que dominava o banheiro, transpirando a louça. Secou-se delicadamente com o par de toalhas ásperas e brancas, que arranhavam seu corpo finalmente reciclado, deixando suaves vergões.

Enquanto o denso vapor desaparecia pelas frestas frias da porta e da janela, Rita encarava o que parecia seu próprio reflexo no espelho. Turvo. Na medida em que os traços iam se tornando mais concretos, Rita ia se reconhecendo, do lado de lá do vidro. E se reencontrando.

Soltou um largo sorriso ao reflexo. Foi correspondida. Era bom, enfim, ver um rosto familiar, depois de tanto tempo sozinha. E aquele rosto refletido, sorrindo para ela, era de quem gostava de se lembrar. Voltou no tempo e se viu menina, correndo pelos bosques do palácio.

Os grandes almoços em família, os ostensivos natais na fazenda. Nunca mais. Tentou dispersar-se em pensamentos mais concretos, o banheiro e o gordo ao lado. Não conseguia. Eram ainda presentes, aquelas memórias irrecuperáveis. Reflexos de uma vida mais simples.

Agora que Rita emancipara-se, tinha os compromissos de uma mulher adulta. A total responsabilidade pelos próprios passos e o que viesse adiante. Teve o passado certo e projetado, mas, logo ele pareceu menos deslumbrante que a beleza incerta do mundo de fora.

O resultado dessa inconsequente imprudência era evidente naquele banheiro, se deu conta enquanto secava cuidadosamente o longo cabelo dourado, enfim livre dos nós. Algo não saiu como esperava no seu plano de libertação. Ou talvez não estivesse preparada ainda. Talvez.

Mesmo assim, enrolou-se no robe branco e foi até a porta. “Psiu” – para despertar o gordo. Trocaram falsos sorrisos de cumplicidade e ela foi em sua direção, com seus doze anos de idade. Em instantes estará novamente suja. E corrompida. Precisando de bom um banho.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Um Problema Nominal



- Nome?

- Patrício!

- Nome completo, por favor!

- Patrício Fezes...

- Pois não, senhor Patrício, em que posso ajudar?

- Preciso trocar de nome.

- Entendo, e porque quer trocar de nome?

- Não te parece óbvio?

- Talvez senhor, mas não tenho liberdade de presumir nada, na minha posição.

- Não suporto mais ser gozado nas ruas, em todo lugar.

- Mas senhor, você tem certeza disso? Mudar de nome é irreversível, não se pode fazer duas vezes!

- Acha que é um capricho? Que só quero “mudar” de nome? Eu quero é me livrar desse carma que está preso à minha família por gerações!

- Entendo... Mas não te preocupa abrir mão assim das suas origens, sua personalidade?

- Minha senhora, eu preciso mudar de nome, pode ser? Porque tantas perguntas?

- É meu dever, senhor, como tabeliã...

- Não é fácil a vida que levo, lidando com todo tipo de provocação! Ainda acabo fazendo uma besteira!

- Mas porque isso agora? Porque não mudou de nome antes de chegar a esse ponto?

- Venho tentando desde que tenho dezoito anos.

- O que deu errado?

- Quando completei dezoito, meu pai ainda era vivo. E um defensor mordaz do nosso nome. Tive receio de decepcioná-lo.

- E depois?

- Depois eu me casei. O tabelião julgou improcedente minha queixa e disse que mexer no meu nome só atrasaria as papeladas do casamento.

- Havia certa razão no argumento dele, devo dizer.

- Aí, finalmente, quando vi a certidão de nascimento do meu filho, entrei em parafusos...

- Então o senhor já é pai? E como é o nome dele?

- Como assim?

- Como se chama a criança?

- Patrício Fezes, ora...

- Ah, deram o mesmo nome...

- Sim, Patrício Fezes Neto!

- Mas isso não poderia ser evitado?

- Coisas da minha mulher. Aprontou essa maldita surpresa para mim e disse que meu amor pela criança superaria o trauma!

- Claro...

- Não dá mais para suportar isso, preciso me livrar dessa sina imediatamente!

- E seu filho?

- Volto aqui semana que vem!

- Ok, senhor Fezes, vamos ver o que podemos fazer.

- Gostei de você. Finalmente alguém capaz de entender minha aflição!

- Claro, senhor, entendo perfeitamente, já estive em situações muito parecidas com a sua! Agora preciso que assine essa papelada e que me diga seu novo nome, para a certidão.

- João!

 - O que tem?

- Meu novo nome: João!

- Mas e o Fezes?

- O que tem?

- Ãhn... Nada não! Eu pensei que...

- Não sou capaz de aguentar nem mais um “Paty” na minha direção!

- Claro, claro! Bem, aqui está! Considere-se, de agora em diante, oficialmente João Fezes.

- Muito obrigado! Que satisfação! Esse é o dia mais feliz da minha vida!

- Por nada,estou apenas cumprindo com o meu dever!

- Posso perguntar o seu nome?

- Pois não, é Maria... Maria Vagina!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Presidiológioco


Amanheceu. Esse sol lá de fora que não me esquenta nem as palmas. Melhor ir para o quintal. Não é grande coisa mas, ao menos me permite esticar os membros um pouco. Acho que vou dar uma cagada. É isso, uma bela e demorada cagada do alto de alguma pedra. Nào, melhor esperar o pessoal chegar. Eles sempre riem das minhas cagadas. Me diverte, a estupidez deles.

Eu fico perambulando por esse pequeno espaço, dissimulando um exibicionismo que me encheu a paciência. E já não tenho mais nenhuma vocação para o entretenimento. Aliás, vocação para porra nenhuma. É cabana, quintal, quintal, cabana. Puta tédio dos infernos! Principalmente depois que vetaram as visitas da Francisca. Naquela época eu me divertia.

Trepava nela como um louco. Montava na megera e babava, e gritava, e lhe dava uns sopapos. Ela gostava disso. Gostava da minha virilidade. Devolvia alguns socos no ar, outros na minha cara, mas, no fim da contas, gostava dos encontros que tínhamos. Era quando eu dispunha da melhor plateia. Fãs, arrisco dizer. Vibravam e nos atiravam pipocas, até que caíssemos de lado.

Os anos dourados! Mas a vadia deu de dizer que eu estava a matando aos poucos e então trataram de reduzir nossos encontros até que, finalmente, proibiram-na de vez de entrar na minha cela. "Pior para ela", foi o que pensei no início. Vagabundas se tem aos montes por aí. Mas sabe que depois de um tempo descobri que só existe uma vagabunda para cada cafajeste.

Aí a situação ficou insustentável. Tédio, remorso, raiva e uma carência tão forte quanto ridícula. Não restava em mim mais nenhum resquício daquela virilidade e auto-confiança do tempo da Francisca. Minha vida sem minha vagabunda era só uma vida vagabunda. Maldita hora para conhecer o amor. Eu já estava perdido para o mundo e corrompido nos sentimentos.

Mas ficava lá, dependurado no galho mais alto do meu cercado, olhando para minha selva, do outro lado do muro. A selva que um dia foi minha e que poderia ter sido minha e da Francisca, se tivéssemos feito as coisas direito. Direito o suficiente para não termos sido capturados, pelo menos. Acabaram me dizendo que ela tinha sido libertada. Nem se despediu de mim, ingrata!

Com certeza já estava trepando com algum almofada da sociedade, dando-se ao luxo de se considerar um deles. E eu nessa vida de merda. Servindo de atração para crianças e velhos desocupados. Vontade de voltar para as ruas e para o crime. Tomar a Francisca das mãos bem lavadas do idiota que estiver cuidando dela para mim e corrompê-la novamente.

Aliás, aí está minha única motivação nessa vida: Francisca! Bom, por um lado. Me dá esperança ao abrir os olhos, de manhã. Por outro lado, uma bosta de motivação. Jamais conseguirei sair daqui sendo uma das atrações. Por isso atiro meus excrementos na tela da jaula, para tentar satisfazer e dissipar meus espectadores. E ter um pouco de privacidade solitária, nesse fim de mundo.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O Último Primeiro Beijo

                                                         Arte: Steven Thomaz VanOeveren


Vinham de estações diferentes e não se conheciam. Ele da Primavera, ela da General Bodegas. Viviam seus próprios devaneios, todos os dias, a sessenta metros de distância sem, sequer, cruzar olhares. Não se buscavam no mundo, mas, naquele dia trocariam o último primeiro beijo.

Mathias tinha uma carreira promissora e extasiava-se com o ofício da lei. Desde que aprovado na Ordem, passava mais da metade do dia no escritório onde estagiava e, aos poucos vinha sendo reconhecido. Sentia prazer e sabia que, algum dia, se tornaria um dos associados.

Glória deixara a família aristocrática do interior do centro-oeste para conquistar o mundo sozinha, na capital do mundo. Estudava arte e frequentava festas vanguardistas. Tornara-se respeitada no universo artistico e diziam que, por personalidade, seria a próxima Frida Khalo.

Ambos talentosos e prodígios. Cada um em sua área. Como um par de planetas perfeitamente diferentes rodopiando na mesma órbita. Era desproposital que, voluntariamente, viessem a tocar os lábios com tanta fúria e voluptuosidade. Mas lhes digo, aconteceu e eu vi!

Aqueles dois tinham pressa na vida porque tinham paixão por ela. E moviam-se por essa paixão. Que era o trabalho, mas que, na verdade, não era trabalho, porque aquilo não lhes dava trabalho algum, só prazer. E tinham ambição. E era só o que buscavam, naquele momento.

Àquela época, passeavam pelos vinte anos. Ela quase lá, ele pouco mais. Vão dizer que, pelas adversidades e coincidências, se aproximariam como se ela de "Mutantes, Caetano e Rimbaut", e ele de "novela e futebol de botão com seu avô". Mas, sabemos, as histórias são singulares.

O beijo se deu perto das seis da tarde, eu estava lá, no meio da histeria coletiva. E durou até que nascesse o sol na manhã seguinte. Que espetáculo! Duraria a vida inteira, se não fossem desgrudados abruptamente pelos paramédicos e bombeiros. Tão insensíveis...

Mas antes disso, pouco antes das seis, ele adentrou ao vagão, na Primavera. Esbarrou em mim e, cordialmente, se desculpou. Mais à frente, duas estações, ela se juntou a nós, na General Bodegas. Uma faísca mais forte se propagou nos trilhos bem naquela hora, posso garantir!

A paixão! A inexplicabilidade concreta da paixão. Foi tudo tão rápido e, ao mesmo tempo, tão genuíno que mal consigo explicar. Mas tento: O beijo do século! Nada mais que o beijo do século! A comoção unânime, as explosões, os gritos, a luz una, sobre o casal desconhecido.

Eu já sabia de seus destinos e, por isso lá, naquele trem lotado. Preparei tudo com a minúncia da paixão que tenho pelo meu ofício mas, que desfecho supreendente, devo dizer! Um segundo antes da suave curva para a estação Boa Vista, estalei os dedos. O descarrilamento.

Os trens se atropelaram provocando uma fusão de metal e plástico. Glória permaneceu no meio do vagão, atordoada. Uma barra daquilo que costumava ser o trilho, cortou a fuselagem do vagão e atravessou-a pelo tórax, empurrando-a e diminuindo a distância universal entre eles.

Os trens continuavam a se invadir, retorcendo o metal e comprimindo os passageiros em montanhas humanas. Sufocantes, mas seguras. Glória seguia flutuando em nossa direção, inconsciente, mas como se mirasse Mathias, agora a menos de vinte metros de distância.

Antes de se grudarem no beijo apaixonado (e nefasto, agora posso dizer), ele olhou na minha direção e, enquanto se expremia na parede do último vagão aterrorizado, franziu a testa, me reconhecendo. Aí deixou o corpo, num forte colapso cardíaco. O beijo veio no instante a seguir.

A barra de ferro encontrou Mathias cedendo à gravidade e, antes que o deixasse tocar o solo, pescou-o na mesma altura de Glória. Os lábios então se tocaram. Enquanto isso, a violëncia do impacto tratava de expulsar os corpos do vagão, deixando-os suspensos no túnel escuro.

Por um breve momento decepcionei-me com as labaredas e as faíscas que não chegavam lá fora. Mas em seguida subiram as luzes de emergência, vermelhas e quentes, rodeando aqueles corpos, funestamente atracados, no tom que a ocasião merecia. A paixão. A Minha e a deles.

Não tardei a busca-los, desorientados caminhando pelo túnel, já fora dos corpos. Tomei-os pelas mãos e os conduzi desconhecidos, cada um a seu destino.