segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Dezencontros Casuais


Desliza sobre o balcão um copo americano até a boca de café preto. Marcos o agarra, assopra e saboreia o primeiro gole, depois rebate o açucareiro metálico e aponta para o café, prefere natural. Pensa na vida. Os olhos vagos no copo. Pede ao garçom que lhe faça um pão na chapa.

Marcos pensa no grande amor que nunca viveu e no tempo que passa. Obsessivamente desatento não percebe a linda mulher que se aproxima, tomando o acento ao lado no balcão. Margarete pede um suco de laranja e em seguida o açucareiro a Marcos. Adoça o suco e sai.

Passam uns dias e, no mesmo miolo do centro da cidade, Marcos lê furtivamente as notícias de capa na banca de jornais, dá o último trago e amassa a bituca nos pés, cruzando Margarete que se aproxima do atendente por um maço de cigarros. Distanciam-se às costas um do outro.

Fim do dia e, ponto de metrô, ambos esperam na estação. No mesmo trem, se esbarram compulsiva e involuntariamente até a primeira baldeação. Ela desce. Marcos a acompanha com os mesmos olhos obsessivamente desatentos de sempre. Apenas a mulher da sua vida.

Mais um tempo depois, um almoço trivial no restaurante preferido. Marcos encontra sua habitual mesa ocupada por duas executivas tagarelas. Margarete, claro, e outra. Pensa em partir, mas, acaba na mesa ao lado. Precisa comer. As mulheres discutem alguma promoção.

Impaciente, se dá uma noite etílica no bar próximo ao trabalho. Senta-se no balcão com uma boa dose de Bourbon. Frustrado e só, deixa-se contagiar pela alegria da jovem que parece celebrar algo ali. Margarete, mais uma vez, e o pessoal do escritório. É seu brinde a Balzac.

Depois da ressaca mútua e, ocasionalmente, de toda a primavera, se alinham, bem longe dali, em um shopping center, na fila do cinema. Depois na fila da pipoca e dispersam-se, silenciosamente, na porta da sala. O mesmo filme, fileiras diferentes. O acaso faz sua graça.

Com o verão ardendo a pino, belo domingo, a parcela menos entusiasta dos raios solares refresca-se na sorveteria em frente ao parque municipal. A combinação de sabores, menta e iogurte, une indiretamente o casal de desconhecidos mais próximo do planeta. Não se veem.

Durante um dia corrido na agência, sem tempo para um almoço cuidadoso, Marcos devora um sanduíche no banco da praça. Há algum tempo perdeu o interesse pela boa forma. Margarete, no banco ao lado, tem os olhos vagos. Ela e ele, ambos, incapazes de olhar além da frustração.

“Alô, é da agência de empregos?” – “Não senhora, somos uma agência de viagens!” – “Ah, desculpe, devo ter me confundido”. As vozes se despedem, convencidas do desproposital engano. Finalmente se descobrem no mundo, da mesma forma displicente dos últimos meses.

Pela última vez se encontram, frente a frente na mesa da agência: “Preciso de uma passagem urgente para a capital, tenho uma entrevista”. Trocam cordialidades pequenas. O diálogo raso entre vendedor e cliente. Deseja-a boa sorte na entrevista, ela agradece. Apertam as mãos.

Marcos suspira pela frustração da vida solitária. Derrotado para o amor e, simplesmente, cego. Margarete consegue a vaga na capital. Vive para o trabalho, por mais ninguém. Debruça-se na janela do escritório e pensa na falta de oportunidade para uma vida a dois. Toca o telefone...

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Quando o Mundo Acaba


Fim do dia era como se o mundo inteiro acabasse. Um poderoso e sísmico cessar da vida. Indigesto. Voltar para casa, a casa de todos os dias, há muito tornou-se um desafio à sanidade. Nada havia mudado no cotidiano daqueles dois, mas, agora, tinha idade para compreender.

E por se dar conta da sujeira silenciosa que envolvia aquela relação, arrepiava a pele e enojava-se toda vez que tomava o rumo do casebre azul e branco na Vila Genésio. Morar era uma necessidade, porém, livrar-se daquilo, uma realidade muito distante. Uma menina ainda...

Quando deixava o colégio da Vila, fim da manhã, Amelinha partia para o roçado, mas não sem antes empilhar todos os gravetos e palha que encontrava pelo caminho. Era a segurança de, no começo da noite, postergar seu regresso ao maculado lar e, com sorte, dormir em paz.

Carregava nas costas a pesada pilha de galhos e folhas secas e, as vezes junto, um ou outro escorpião. Não se abalava. Era a única forma de garantir que a fogueira queimasse alta e levasse junto os desejos impuros do seu algoz. Ali, estaria entre amigos, até o fim do fogo.

Só quando o calor e a brasa se dissipavam, ela voltava ao casebre azul, sorrateira e alerta, rezando para encontrar Romualdo vencido no sofá. Como de geral, sentia o cheiro forte de cachaça. Corria para o quarto e se cobria. Amélia aprendera a dormir de pronto. Sua anestesia.

Desde que descobriu e entendeu as carícias noturnas do homem da casa, a pequena Amélia desenvolveu (e aprimorou-se) na técnica de sono absoluto, para não ter que lidar com a desconfortável sensação daquela mão áspera e suja tocando seu corpo indefeso. E funcionava.

Muitas vezes, dava-se conta apenas no dia seguinte do cheiro asqueroso de suor e álcool, impregnado em seu cabelo. Limpava-se das secreções pegajosas que, sabia de onde vinham, pois nem sempre estava dormindo enquanto Romualdo cumpria seu rito imoral e covarde.

Girava no alto o mundo. Tão irrenovável e cíclico que nem sentia. Tão sádico que, cada sol que se punha, no fim de um dia atarefado, era um grão a menos no pequeno castelo de areia que protegia a integridade da menina Amélia. Uma insubstancial fortaleza, desintegrada no vento.

E cultivava o ódio por aquele sujeito deplorável, também comprometido com sua criação. Romualdo não era pai. Amigo do pai. Os verdadeiros jaziam no cemitério desde muito tempo. Um acidente banal. Mas não se mexia na morte na Vila Genésio. Tocavam para frente a vida.

Por isso Romualdo, na ocasião funesta, apadrinhou a bebezinha sob a admiração dos vizinhos. Sozinho no mundo, creditavam a ele méritos de bom homem. Pacífico e solidário. E prestativo, religioso e trabalhador. Só bebia um pouco, mas, quem não por ali? Muito nobre, porta afora.

E quem desconfiaria? Outro homem porta adentro! Pela ambiguidade, Amelinha culpava-se de sentir nojo. Pois era moço impecável na Vila. E ela não tinha lembranças dos pais, este fora seu pai desde sempre. Um forçoso dilema que ainda a levava para debaixo daquele teto podre.

Só por isso suportava (maneira, inerte e a contragosto) os afagos indesejados. Quando amanhecia, sentia-se menos confiante na libertação e mais absorta. Rezava ao mundo que um dia terminasse. Mirava Jocácio que, aos brados, previa o fim dos tempos na Vila Genésio.

Jocácio dizia, com convicta aspiração profética, que o cataclisma global viria devagar, mas avassalador. Levaria primeiro tudo e, por último, todos, deixando-nos sofrer um algo na abstinência do tátil. O menino de sanidade duvidosa gritava toda semana a ruína da Terra.

Mas era, como sempre foi, conversa fiada de jovem desmiolado. Passou muito tempo na vila, até que passou Jocácio, envolto em um manto negro de asas de baratas, à intenção de protegê-lo da devastação. Parecia sério e Amélia gostava de acreditar naquele maldito pirado.

Passou a acompanha-lo mais de perto, todos os dias. A coleta dos gravetos foi abandonada pela perseguição ao garoto profeta. Percebia que, mesmo sem saber para onde ia o menino, era quando voltava que o sentimento apocalíptico estava aflorado. Tinha algo em sua rota.

Talvez viesse de lá o fim do mundo. Quem sabe poderia guiar finalmente o caos às vielas da Vila Genésio. Também à Romualdo e àquela vidinha insossa. A perseguição ao menino, longa demais para o tempo que tinha, acabava sem sucesso. Amélia e o medo de não dar em nada.

De outro lado, sem os gravetos, não tinha fogueira. E Romualdo gostava. Mais tempo para brincar. Amelinha, coitada, na ansiedade de interromper de uma vez aquele martírio, perdia o sono. Não teve mais uma noite tranquila, sem ser corrompida pelas taras do velho padrinho.

Noite violenta quando decidiu, pela manhã e após se limpar, que naquele dia traria o fim do mundo ao vilarejo, custasse-lhe a vida! A falta de pudor de Romualdo não tinha limites. Apanhou duas maçãs, uma penca de bananas e pôs-se a procurar Jocácio, o menino barata.

De trás de uma pedra, engoliu a respiração para não ser descoberta. Teria apenas uma chance e Jocácio, paranoico que só, poderia ser medroso ou violento se a descobrisse. Imprevisível. Para não arriscar, caprichou como pode sua invisibilidade, crente da redenção no fim do dia.

Jocácio caminhava incansável e em ritmo acelerado para fora das cercanias da Vila. Tomava trilhas estreitas e sem pico. Pulava por cima das pedras e driblava riachos, banhando-se as vezes. Amélia continuava em seu encalço, como uma sombra. Longe demais para voltar.

Percebendo que o menino tinha mais olhos para o que vinha à frente, que ao que estava às costas, permitiu-se aproximar (não muito) para entender o que ele balbuciava, acelerado e ansioso, para ninguém, há algum tempo. Mesmo entendendo parecia confuso e perturbador.

“Não está mais lá, não está!” – “Já foi embora, eu sei, está tudo bem!” – “É o fim, não para mim, mas é o fim, vai todo mundo morrer!” – “Eu não! Tenho minha capa, não vou morrer!” – Repetia meticulosamente em ordem essas frases, de olhos fechados e mãos nas orelhas.

Amelinha fixada no transe do profeta redentor, não tirou os olhos dele quando percebeu que parou, no alto de uma rocha, e disparou o olhar para o horizonte. Fracassado, amoleceu todos os membros sobre a estrutura do corpo e chorou copiosamente. Estava ali o fim, ela arrepiou.

Em seguida Jocácio enrijeceu o tronco e correu apavorado, gritando: “É o fim, é o fim!” – Esbarrou em Amélia como se nem a notasse. Com uma dose de receio, ela caminhou, pé após pé, até o cume da rocha. Tremia e teve medo de olhar. O garoto parecia mesmo assustado!

Lá do alto, sem poder voltar atrás, arremessou os olhos ao fim do mundo, fosse o que fosse. Ao vê-lo, diante de si, deu um passo atrás. Não assustada, mas como quem tenta entender uma instalação abstrata. Suspirou confusa e sentou-se na pedra, buscando compreensão.

O que se via lá para baixo era um largo cercado de madeira nobre, infinito para os dois lados. O pasto baixo e verde que acompanhava a cerca, se interrompia no limite das vigas altas, cravadas perfeitamente no chão e atravessadas por tábuas brilhantes de verniz.

Mas era o além-cerca que, provavelmente, perturbava Jocácio. Embora também não fosse nada particularmente assustador. Apenas um interminável vazio que ocupava todo o terreno daquela propriedade em diante. Olhando à frente não se via fim para o fundo ou para os lados.

Mas sim uma imensa cortina branca que se confundia com névoa, embora espessa e sólida. Amélia pensou em como faria para trazer o fim para o lado de cá da cerca. O dia logo anoiteceu e, antes que sono ou fome, amanheceu outra vez. Nada mudou no vazio.

Quando completou dois dias naquela observação ininterrupta, percebeu a presença de Jocácio novamente. Tudo se repetiu como da última vez: As frases, o fracasso, a moleza, o pavor e a correria. Tratava-se de um louco, sim. Mas dava-lhe certo desconto, pela visão confusa.

Era como se o mundo acabasse ali e, subitamente, entendeu. O fim do mundo não era algo que engoliria sua vida mas, exatamente, o limite geográfico da Terra. Constatou sua descoberta ao atirar uma pedra branco adentro. Resvalou e voltou, parando diante do seu pé.

Tocou a superfície aveludada e macia do fim. Era confortável. Mas suspirou frustrada com a geografia rotacional e translacional da Terra. Nada estava certo. A única coisa que se repetia no universo era sua sina maldita, e estava de novo presa a ela. Enclausurada neste planeta.

Reparou como tudo no mundo anda em círculos. Sua rotina. O colégio, os gravetos, Jocácio, Romualdo, a Vila. Menos o mundo. O mundo sim é ponderado, tem começo e fim. E Amélia chegou ao fim. Baixou a cabeça e aceitou a Vila Genésio como seu infalível destino.

No caminho de volta, bem mais longo e penoso que na ida, pensou mais uma vez na coerência do mundo. Começo e fim. À porta da Vila, reconheceu algumas facetas vizinhas, aliviadas com o regresso (menos ela), e Romualdo. Manteve o passo firme e pegou firme Jocácio pela mão.

Atravessou a rua principal e atingiu a extremidade oposta da Vila, deixando os moradores novamente confusos. Desapareceu logo no horizonte e, inspirando seu perturbado redentor, disse: “Chegamos ao fim Jocácio. Agora falta encontrar o começo, e é lá que tudo muda...”.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Velha História dos Cigarros


Tobias, um homem distinto. Exímio corretor de imóveis do lado oeste da capital. Se algo está à venda, em suas mãos estava! Marido exemplar. A esposa, mulher completa, se gaba à vizinhança por todos os mimos e cortejos entregues por seu homem. Flores, brincos e bilhetes.

Sem filhos, mas, tio de dois adoráveis pequenos. Não existe uma só semana sem entretê-los à exaustão, nas merecidas folgas paternas do irmão mais novo. Amigo fiel. Está lá para eles, todo dia, todo instante e, em todo enrosco. Que diabos então irá desestruturar esse homem?

Celular vibrando, uma mensagem: “Amor to atrasada!!! To c medo, me liga?” – Nunca ligou. “Bias, ja era, to gravida o q a gente faz?” – Um mês dpois, deletada. “Seu cachorro, to fdd c essa barriga aki. Vc vai pagar mto caro!” – Não se acuou. Seis meses mais e alguma paz.

Um dia, dissimulando o tormento mensageiro dos últimos meses e, fingindo a todos a costumeira eloquência, deitou-se na rede do quintal, durante uma reunião de domingo. Apreciou a perfeição daquele momento: Linda esposa e amigos leais. Acendeu um cigarro.

Inspirou profundamente e expeliu a fumaça repetidas vezes, preenchido com o amor dos mais próximos e o respeito dos colegas de trabalho. No último trago, se deu conta do fim do maço e anunciou sua ida à padaria. Beijou a esposa suavemente nos lábios e, saindo, parou na porta.

Um embrulho pulsante agitava o pequeno cobertorzinho do aconchegante cesto deixado na soleira da sua porta, na altura dos seus pés. Só podia ser uma coisa, sabia. Constatou quando ouviu o estridente som de um choro faminto. Na alça um bilhete: “É seu, agora se vira!”.

Atônito, resistiu dois eternos minutos, congelado da cabeça aos pés. No terceiro corria desgovernado pelas ruas mais remotas, distanciando-se do seu paraíso particular. O embrulho, ainda sem forma, cessou o choro durante o chacoalhar. Tobias mostrou-se apreensivo.

Sentado num banco, numa pequena praça, livrou-o dos panos e assistiu, pela primeira vez, um rostinho sorridente, certamente animado com o chacoalhar de minutos antes. Dono do mesmo espírito aventureiro do pai. Seu filho, seu primeiro e único filho. Ops, filha, conferiu.

Babou por muito tempo naquela obra maravilhosa da qual fez parte e que, desastrosamente, negligenciou por toda a gestação. Arrependeu-se pela amante. Deve ter sido difícil. Sofreu antecipadamente pela esposa, o que diria? Seu mundo, sua reputação, tudo por terra.

Não! Não abriria mão de tudo o que conquistara por um serzinho minúsculo como aquele! Abandonaria da mesma forma que recebera, pela porta de casa. Com certeza alguém poderia amá-la. Se ele pôde, num segundo, qualquer um poderia. Melhor para todos, o mundo segue.

Mas tão bonitinha. Como deixa-la nas mãos sujas de um desconhecido qualquer? Acabaria num orfanato. Na rua, nas drogas. Prostituição. Não podia! Decidiu levar para casa, a esposa, tão prestativa, só poderia entender. A filha que não tiveram. A filha dos dois. Família feliz.

Até parece, ela jamais entenderia... Como entender a falta de escrúpulos em um homem tão íntegro. Melhor abandonar a pequena por perto, para acompanhar de espreita, mas sem se apegar demais. Quem sabe com um amigo não acabaria apadrinhando ela? O plano perfeito.

Também não, se ficar perto demais vai se apegar. Logo irá reivindicar o direito paterno. Vai ser merda no ventilador da mesma forma. Melhor deixar longe, bem longe... Alguém rico. É isso! Alguém rico, velho e carente. Vai cuidar dela como uma neta, será a princesa do castelo.

Pronto! Achar o castelo não vai ser difícil, tantos casarões naquela área. Está ali! Casa branca, clássica, vigas gregas, um Rolls Royce. Quem mais, além de um velho solitário para morar num mausoléu assim? Tobias vai à porta, deixa o cesto e toca a campainha. Corre para um arbusto.

Acompanha a aparição formal do mordomo que apanha o cesto, olha em todas a direções e desaparece porta adentro. Um alívio. Uma angústia! Sente falta da Nina. Esse será seu nome: Nina! E Nina tem pai! Corre até a porta e toca a campainha. Soca o mordomo e toma o cesto.

Corre de novo. Já não importa a reputação em casa. A esposa, os amigos, o trabalho, tudo fica para trás. Só importa Nina! Toma um ônibus para qualquer lugar e desaparece vitorioso para longe. A vida dali em diante era apenas Tobias e Nina. Pai e filha. Família, sangue, muito amor.

Muito tempo depois, bem longe dali, num dia de matrícula no colégio, Tobias encontra a antiga amante, mãe da Nina. A indiferença da mulher com a própria filha choca Tobias, que não tinha interesse de nenhuma apresentação. Os três se entreolham desconfortavelmente.

Sem resistir Tobias informa: “Essa é Nina, MINHA filha!” – “Gozado, deve ter puxado a mãe!”, debochou a mulher. Tobias envolve Nina nos braços e percebe a aproximação de um garoto. “A propósito, esse é Tulio, meu filho, puxou o pai. Pelo visto estudará com SUA Nina!”.

Sim, Túlio era a cara de Tobias. O bom homem percebera naquele momento que Nina não carregava nenhum de seus traços, enquanto Túlio, todos. Fora enganado... Fora? Beijou Nina na testa e disse: “Te amo filhota, vamos?”. E perpetuou todo o seu amor na filha querida.

Nunca teve crises ou arrependimento, Nina era sua filha! Família, criação e muito amor. Preferiu não enlouquecer. Abdicou de Túlio... A esposa, por outro lado, mesmo depois de todo esse tempo, ainda dizia: “Meu marido? Saiu para comprar cigarros... e nunca mais voltou”.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cem Velas


Luzes apagadas e todos que estavam ali presentes, feito romeiros velavam mudos a pequena Eulália, que era frágil mas, ao mesmo tempo, imponente. Estava no meio, o invisível centro das atenções. Autora ou “co” de cada ser naquela ampla sala branca, enegrecida pela falta de luz.

Velas acesas, cem delas. A meia-luz que delineava os corpos inertes na penumbra da tardia homenagem àquela que deu a vida por todos eles. Discípula da imaginária Santa Úrsula de Macondo (capricho de Márquez, não canoniza-la!), sempre viveu a vida dos outros. A família...

O incômodo ofício matriarcal mas, o prazeroso e autossuficiente sacrifício de ceder às manhas das crianças ingenuamente cruéis, dos adolescentes intransigentemente brutos e dos adultos inconsequentemente infantis. Eulália suportou seus cem anos sem um sorriso de gratidão.

Ainda assim lá estava, finalmente celebrada. Havia quem duvidasse que tantos familiares pudessem ser reunidos. Especialmente em uma família tão grande e tumultuada, conhecida pelas desavenças e as picuinhas. Bem diferente das outras famílias (a minha e a sua).

E mantinham-se em um fúnebre e desagradável silêncio desde que chegaram, todos os desaventes. As crianças, que entendiam muito pouco da vida, corriam e gritavam com seus carrinhos e bonecas. Curioso, mas eram os mais afinados com a proposta da reunião: Alegria.

Não havia mais alegria que remorso naquela sala. Não se sabia o sentimento exato, mas a cena provocava uma atmosfera melancólica, fundida a uma súbita complacência. Todos se entreolharam e, mesmo as endiabradas crianças entraram, confusas, na culpa dos adultos.

Depositaram seus brinquedos voluntariamente dentro de um velho baú, esquecido em um canto do quarto, e juntaram-se aos pais e avós, no maior e mais sincero abraço coletivo. Ainda que fora de tempo. Era tão sincero que ninguém confundiu com amor. Apenas homenagem.

E até Eulália, com seu jeitinho inexpressivo de se expressar, dissimulava de olhos fechados a total satisfação daquele gesto. Como se cem anos inglórios valessem de repente a pena. Houve um profundo suspiro que tomou a sala e selou a paz provisória daquela noite sem desafetos.

Alguns arriscaram uns sorrisos, correspondidos. Outros ofereceram lágrimas arrependidas que, acatadas, transcenderam o pacto da noite para as próximas noites e, até que se fizesse o próximo desafeto. As crianças riam e se divertiam na pequena ciranda que formaram ao redor.

Do alto do seu lugar de destaque, no meio da festa, no centro dos olhos, a matriarca permanecia estática e inexpressiva. Talvez poupasse esforços para sentir a energia nova que contagiava sua prole. Talvez qualquer esforço acabaria ruindo aquele improvável cenário.

Do lado do velho baú, enfeitado com dezenas de tulipas e orquídeas coloridas, surgiram delicadas notas de uma flauta doce. Da penumbra, alguns identificaram Manoel que assoprava, espontâneo, a música preferida da bisavó. Ela então sorriu, irresistivelmente.

Delineadamente, seu rosto tomou outra forma. Angelical. Nunca foi de expor suas emoções abertamente. Embora as reconhecesse. E não houve espanto. Porque era bonito de ver. Sua afetuosidade, maior que a de todos, estava enfim evidenciada ali, para sempre.

As velas queimavam abundantemente e, antes que a beleza das notas de Manoel se dissipassem, os convidados entoaram, em uníssono, uma sessão de aplausos. Cadenciada. Clichearam um cântico de felicidades e longa vida, exaltando Eulália no final.

Quando o silêncio invadiu (bem menos pesado) a sala novamente, Eulália abriu os olhos. Inflou os pulmões e os esvaziou em seguida, apagando bravamente as velas. Luzes acesas e a vida então retomou seu rumo, bem menos rancorosa e egoísta que nos últimos cem anos.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Um Tango Para o Fim do Mundo

                                                                      Arte: Anya Gerasimchuk

Dançavam num suave dois pra lá, dois pra cá. Sem pressa. Cadenciosos e na velocidade retardada de tudo ao redor. As árvores dançavam lentas, os pardais voavam lentos e o mundo girava lento. Era bonito de ver e todos aplaudiam, no compasso vagaroso da apresentação.

A orquestra cigana musicava a cena. Tocavam o campo harmonioso, num tempo de se prever o próximo acorde. Os sorrisos, todos sinceros. E a pequena multidão se fitava, compartilhando da mais bela dança da história. Algumas lágrimas alegres saltavam dos olhos mais passionais.

E o acordeom gritava notas longas e tristes, enquanto dedos alucinados serpenteavam as mil teclas. Não se ouvia o choro, mas, se via os dedos. A flauta, a tromba e o trombone, enferrujados, suplicavam metalizados. A população em transe. Na roda, deslizava suave o par.

Os pratos ardiam nos tímpanos, clamando o despertar. A caixa e o bumbo socavam, violentamente mudos, os ouvidos já surdos. Os passos, centimétricamente executados. Tão envolventes. Ninguém mais se enxergava. Catarse. O par no meio passeava, a caminho do fim.

O violino arriscava notas subliminares. Soavam insoantes. Os dançarinos riam. Encaravam a plateia, sedutoramente, e debochavam o feitiço daquele entrelace corporal. Todos ali boiavam atônitos, inertes a qualquer desventura do mundo. Logo o público era o dobro e aumentava.

E logo estava o mundo inteiro ali, plateia insensível do irrevogável destino. Tentaram juntos, a viola, o bandolim e a bandurra, acordes dissonantes que, singulares, não dispunham do vigor heroico de outrora. Então a banda era plateia. Todos os instrumentos, também plateia.

E só se ouvia o estalar das pontas dos pés e dos calcanhares, a cada passo preciso daquela milonga funesta. Logo um deles, sadicamente ruborizado, entoou graves notas de dentro de sua garganta. Aos ouvidos cordeiros, a mais densa e forte melodia. Sinuosamente hipnótica.

Às suas nucas tapadas, como se em outra dimensão, ruíram as primeiras montanhas. Inteiras. Engolidas por um vazio imperceptível. Foram, em seguida, os oceanos, escorridos ralo abaixo para dentro do buraco. As ilhas, as costas, as cidades, as casas, as pequenas histórias. Tudo.

Quando nada mais havia, tornou-se noite. De toda a matéria universal restava, suspenso no vazio, uma pequena porção de solo árido, onde quase quinze bilhões de pés sustentavam-se inutilmente. De qualquer lugar, pôde se ouvir notas limpas de um piano muito bem afinado.

As cordas vocais do segundo dançarino, pálido feito neve, finalmente vibraram agudas, no embalo do misterioso e confortável som que reverberava em todos os ouvidos. O cântico, preguiçoso e sereno, pesou cada par de pálpebras em cada rosto. Sem preleção ou distinção.

Quando o estado de sonolência atingiu cada ser, a terra cedeu violentamente, numa explosão desproporcional. Cada um dos espectadores e os dançarinos, anestesiados e flutuantes, se foram, no ritmo daquele tango. Desapareceram, lentamente, no vazio absoluto. Para sempre.