terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Um Tango Para o Fim do Mundo

                                                                      Arte: Anya Gerasimchuk

Dançavam num suave dois pra lá, dois pra cá. Sem pressa. Cadenciosos e na velocidade retardada de tudo ao redor. As árvores dançavam lentas, os pardais voavam lentos e o mundo girava lento. Era bonito de ver e todos aplaudiam, no compasso vagaroso da apresentação.

A orquestra cigana musicava a cena. Tocavam o campo harmonioso, num tempo de se prever o próximo acorde. Os sorrisos, todos sinceros. E a pequena multidão se fitava, compartilhando da mais bela dança da história. Algumas lágrimas alegres saltavam dos olhos mais passionais.

E o acordeom gritava notas longas e tristes, enquanto dedos alucinados serpenteavam as mil teclas. Não se ouvia o choro, mas, se via os dedos. A flauta, a tromba e o trombone, enferrujados, suplicavam metalizados. A população em transe. Na roda, deslizava suave o par.

Os pratos ardiam nos tímpanos, clamando o despertar. A caixa e o bumbo socavam, violentamente mudos, os ouvidos já surdos. Os passos, centimétricamente executados. Tão envolventes. Ninguém mais se enxergava. Catarse. O par no meio passeava, a caminho do fim.

O violino arriscava notas subliminares. Soavam insoantes. Os dançarinos riam. Encaravam a plateia, sedutoramente, e debochavam o feitiço daquele entrelace corporal. Todos ali boiavam atônitos, inertes a qualquer desventura do mundo. Logo o público era o dobro e aumentava.

E logo estava o mundo inteiro ali, plateia insensível do irrevogável destino. Tentaram juntos, a viola, o bandolim e a bandurra, acordes dissonantes que, singulares, não dispunham do vigor heroico de outrora. Então a banda era plateia. Todos os instrumentos, também plateia.

E só se ouvia o estalar das pontas dos pés e dos calcanhares, a cada passo preciso daquela milonga funesta. Logo um deles, sadicamente ruborizado, entoou graves notas de dentro de sua garganta. Aos ouvidos cordeiros, a mais densa e forte melodia. Sinuosamente hipnótica.

Às suas nucas tapadas, como se em outra dimensão, ruíram as primeiras montanhas. Inteiras. Engolidas por um vazio imperceptível. Foram, em seguida, os oceanos, escorridos ralo abaixo para dentro do buraco. As ilhas, as costas, as cidades, as casas, as pequenas histórias. Tudo.

Quando nada mais havia, tornou-se noite. De toda a matéria universal restava, suspenso no vazio, uma pequena porção de solo árido, onde quase quinze bilhões de pés sustentavam-se inutilmente. De qualquer lugar, pôde se ouvir notas limpas de um piano muito bem afinado.

As cordas vocais do segundo dançarino, pálido feito neve, finalmente vibraram agudas, no embalo do misterioso e confortável som que reverberava em todos os ouvidos. O cântico, preguiçoso e sereno, pesou cada par de pálpebras em cada rosto. Sem preleção ou distinção.

Quando o estado de sonolência atingiu cada ser, a terra cedeu violentamente, numa explosão desproporcional. Cada um dos espectadores e os dançarinos, anestesiados e flutuantes, se foram, no ritmo daquele tango. Desapareceram, lentamente, no vazio absoluto. Para sempre.

Um comentário:

Tati disse...

Ah que eu já tava bem com saudades viu?
Adorei, me deu mais vontade de ir pra Buenos.
Escreve um conto pra Alice Fá? Pra eu dar pra ela quando ela crescer?
Beijo, amo você e todas as suas escritas!