sábado, 31 de julho de 2010

Nhô Gomes


Do alto é de onde se vê tudo. Não muito alto que pareça transcendental, mas poucos metros (poucos e mais meio) acima das cabeças ordinárias. E conhece cada grão e farelo ao seu redor. O guardião da praça. Da vida alheia, como hobby inevitável à sua situação condicional.

Observa diariamente cada etílico transeunte bater cartão nos bares da orla arborizada das calçadas artificialmente naturais. Trata-os pelo sobrenome, pois, não se desdenha nem os bêbados nessa pequena porção de verde, no coração da carbônica metrópole.

E tem lá sua maneira de entreter-se, dentro dos seus limites. Todo tipo de interação humana provoca no guardião uma grande admiração pela vida e suas possibilidades. Deleita-se espectador dos amores iniciados e perpetuados nos bancos publicitários de concreto.

Mas intriga-se por não compreender a magia do banco destinado à Serraria Pau-Brasil em ser o mais cobiçado entre os jovens casais. Chegou a acompanhar mais de um par apaixonado que, cansado de esperar pela desocupação do banco, dá as costas à praça, decepcionado.

Ri sozinho do óbvio descaso ao banco reservado à Funerária Final Feliz. Exclusivamente consumido por colos idosos e cansados que, inertes ao tom funesto do banco, descansam a sesta precoce do fim da manhã ou lêem seus jornais popularescos, desapressados.

Nunca esteve noutro lugar que não lá, sempre lá, protegendo vigilante o perímetro da praça. E por essa preocupação heróica, guarda um zelo especial pelo que considera berço, mais que túmulo. Desconhece o mundo depois da esquina, porém, um mundo que não há, além-praça.

E se em algum momento concede o direito próprio à melancolia, é quando recorda os bons tempos de picolé e pipoca; do movimento de pernas mais intenso que o movimento de rodas, dos paralelepípedos. Quando a praça era um evento, muito antes dos Shopping Center.

Mesmo a alta sociedade desfilava seus brogues e stilettos pela calçada da praça, na saída do clube hípico, todo final de semana. Viu em primeiro plano o passo a passo da decadência nada glamorosa do clube junto ao êxodo da elite para os centros claustrofóbicos de compra.

Já quando aponta os olhos à catedral, reconhece o sucesso imbatível da fidelidade à fé. E divide com ela os bons momentos que restam, especialmente aos domingos. Mesmo com uma rua os cortando friamente em dois extremos. Mesmo com a rua os separando praça a praça.

E ainda que, com os percalços do progresso humano e urbano, jamais incomodou-se da incumbência a que fora projetado e, seu fardo é, também, seu maior tesouro e o grande ímpeto em manter-se tão sólido e indestrutível do alto das cabeças ordinárias.

Na falta de companhia afetiva, de alguém para dividir todos os seus devaneios mais puros, espremidos no peito duro, deposita nas pombas sujas e barulhentas que se aglomeram ao seu redor, seus sentimentos mais fraternais.

Elas, de tão tapadas e amorfas, respondem aos votos de amizade cagando-lhe nos cabelos e ombros. Aos montes, como chuva viscosa e torrencial. Para o guardião é simplesmente como se comportam e, se satisfaz, sem enojar-se da indelicada demonstração de afeto.

No fim do dia, essa é a vida que leva, a sina sem fim de estar acima de todos, imponente. Coveiro do grande conterrâneo. Filho imortal de pai imortal. Sólido e bronze. Busto, dorso e batuta. Guardião da praça, protetor de Nhô Gomes.

domingo, 25 de julho de 2010

Drexler: Sem fronteiras



Sexta-feira, vinte e três de julho, São Paulo e eu me acomodando em um dos melhores shows da minha vida! A poucos dias de agora. Ainda estou com o cheiro das melodias impregnado em mim e, espero que se dissipe com a velocidade desapressada dos pequenos prazeres.

E um prazer coletivo, que de pequeno fica apenas a referência. A massa uniforme de fãs, simultaneamente, constatou na noite instavelmente paulistana do Via Funchal, o talento e o carisma transbordantes de Jorge Drexler, reaportado mais um ano no Brasil, em outro julho.

O espetáculo que, já antecipo, durou cerca de duas horas (ininterruptas), passeou pela carreira do músico entre as canções do novo álbum, Amar La Trama, e alguns de seus maiores clássicos, rearranjados. Boas surpresas também encheram os olhos e os ouvidos.

Desde quando pisou no palco, Jorge, sereno, demonstrou total controle da situação. Estava muito à vontade de estar ali e não cansava de declarar, entre piadas singelas e apresentações, que o valor das presenças (nossa e dele) era recíproco.

Tocou, nos presenteando em tom de suspense e, fazendo da bossa, tango, Sampa do Caetano (vou deixar essa frase confusa como ficou, por diversão). E ganhou de vez a platéia enquanto intercalava versos em bom português e castelhano na Ipiranga com a San Juan.

Tocou mais a frente Disneylândia que, surpreendeu apenas a mim por conhecer a versão dele mas não a original, dos Titãs. Já tinha assumido a composição como uruguaia e gostava, desrespeitando copiosamente Arnaldo Antunes. O Brasil não saiu de cena com Drexler.

Anunciou a presença de um amigo, para tocar Doce Solidão de Marcelo Camelo. Esperei por Moska, confesso, mas entrou no palco o próprio Camelo, feliz. Tocou só uma música, recebeu elogios rasgados de Drexler e promessas de parcerias futuras. Novo tempero ao espetáculo.

Por isso tão difícil, entre todas as boas surpresas, definir o ponto alto do evento. Tentei escolher durante o show, mas, em casa e com calma, decidi que, entre o soneto declamado e o arranjo novo para Se Va, Se Va, Se Fue, fico com o coro em uníssono de Guitarra y vos.

Com muito carisma, Jorge agradecia os aplausos e cantoria, julgando-os indispensáveis, mas, em Guitarra y vos pediu silencio durante as estrofes e participação no refrão. Emendou até um carinhoso “shh” a uma fã mais exaltada, mas, riu da incapacidade da menina calar-se.

Não houve nenhum momento tenso, justamente pela atmosfera de alegria e disposição criada pelo uruguaio e sua banda transnacional. Todos muitos modestos, da percussão ao trombone, estavam felizes por estarem no Brasil, como disse Drexler.

Críticas apenas ao excesso de luzes, no começo: Na área das mesas para auxiliar os atrasados (dessa vez não estávamos entre eles); às nossas costas (uma repórter decidiu fazer uma passagem do nosso lado); e no palco (uma luz roxa cansava a vista na primeira canção).

Do contrário, vislumbre. O show caminhava para o fim quando a banda, de volta ao palco após uma pausa, tocou Todo se Transforma e se despediu. O invariável bis estava anunciado porque Al Outro Lado Del Rio não havia sido executada e, música de Oscar, não podia ficar de fora.

Jorge cantou sozinho, a cappella, em um tom que parecia desdenhoso ao seu maior sucesso, mas, aos poucos, fomos todos entendendo que se tratava de um novo arranjo também. Artista e platéia, juntos, criando uma nova melodia, livre de instrumentos. Peça rara.

Depois de Soledad (sem Maria Rita) e La Trama Y El Desenlace, encerrou com Sea, deixando uma satisfação pessoal de, mesmo sendo um fã desleixado, poder arriscar meu patético castelhano bis afora e, quando das luzes acesas, suspirar esperançoso por El Fuego y El Combustible que ele, caprichosamente, deixou para o próximo show, ano que vem, julho, provavelmente.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Pregando uma Peça




Se depois da maresia a ressaca, antes da ressaca, infalível, a maresia. Aquele tormento silencioso e estático da falta de tudo: Opinião, atitude, disposição, talento... Não, dessa vez sem crises de baixa auto-estima, apenas uma celebração ao vazio.

De tempos em tempos, bate em mim a descarga criativa e assisto, do troninho, todo meu ímpeto pseudo-literato escoar ralo abaixo. E isso é coisa que acontece. Falo por mim, mesmo não sendo capricho meu. É a crise criativa. Invade todos os setores: Comércio, indústria e arte.

Aquele período moribundo que interrompe o expediente intelectual como que em greve rebelde e sem juízo. Não há aviso prévio para o buraco na criação. De repente acordamos desaprendidos de tudo aquilo que soava tão naturalmente oxigênico.

É um tanto desastroso e sufocante, reconheço. Mas absolutamente administrável. As primeiras crises, lembro-me bem, anos atrás, davam a sensação de água nos pulmões, tamanha a angústia da imprevisibilidade.

Hoje entendo que, pela falta de prática e de tempo dedicado à produção, arbitrariamente a parte reservada ao talento artístico do meu cérebro sai em recesso e me deixa a ver navios. Uma punição severa à minha escolha particular de fazer da literatura hobby.

Mas que culpa tenho eu, se o mundo transborda informações maiores que as vinte e quatro míseras horas do meu dia? Como posso inundar de tinta todas as folhas de papel com minhas indagações, se o mundo se compromete a suprimir meus devaneios: Google.

Não tenho motivações quando o que tenho para contar, desabafar, perguntar, está ali, na ilha ao lado, mastigado e digerido, esperando pela navegação nos mares WWW. E não sou o nostálgico tinhoso que nega o progresso. Compactuo da passividade intelectual como cordeiro.

E, pela lã que me cobre o dorso, tenho essa culpa. A preguiça de pensar quando o objetivo for facilmente atingível. E, se possível, simples. Convenço-me da resposta para a pergunta fundamental sobre a vida, o universo e tudo mais: 42. Como não? Um brinde ao fácil! Ópio.

O elixir da sabedoria rasa. A vitamina de letrinhas triturada e brindada goela abaixo, inodora e insípida. Declarada de mil formas, por mil mãos e em mil vocábulos diferentes. Não mais a verdade, mas, a democrática liberdade de ouvir o que se quer com as palavras mais belas.

O compromisso litúrgico com a alienação. As horas impostas desdenhosamente à coisa alguma. A vida que passa na nossa frente sem freios nem vontade de diminuir o passo. Nosso comprometimento com a falta de propósito. Feliz alienação.

E assim vou levando, fingindo que a angústia implosiva da falta de criatividade, quando reconfigurada em ódio, nem me dói mais. Que a inspiração, quando retoma, vem em avalanche inovadora e acumulada. Como se o tempo acompanhasse meu fôlego asmático.

Mas não reclamo, por certo, da minha capacidade indiscutível de me enganar, pensando enganar os outros, com uma pequena porção de palavras descontextualizadas. Interrompo essa declaração romântica ao nada, com a mais sincera das palavras escritas aqui: Desculpe!

terça-feira, 13 de julho de 2010

Vive La France!


Decidi voltar momentaneamente às críticas. Uma vontade incontrolável de declarar ao mundo o poder da comédia francesa atual. E falo com autoridade, pois, não só uma, mas, duas surpresas adoráveis encheram meus olhos nos últimos dias e, preciso dizer: Vive La France!

Aliás, antes devo me redimir porque, à espera da primeira, o receio era maior que o desejo e, antes da segunda, a primeira parecia ter sido a sorte de uma boa obra ocasional. No fim da segunda, a constatação de que a comédia francesa é das mais divertidas e sensíveis do cinema.

E das boas coincidências, Kad Merad é o homem que une a duas obras. O ator, franco-argelino, estrela ambas. Como protagonista na primeira e coadjuvante na segunda. Não é um grande ator e nem parece ter essa pretensão, mas, confio nele como chanceler do cinema francês.

É que Merad não se importa em sustentar um filme sozinho e, assim, parece saber escolher roteiros que sustentam o filme por si só. Não é fácil ter essa percepção. Por isso, Merad entrou para o hall das personalidades que valem meus ingressos.

Mas bem, inicio com o primeiro: A Riviera não é aqui. O filme é de 2008 e só agora chegou às nossas poltronas. Trata de vidas divididas. Philippe Abrams (Merad) é um funcionário público em crise conjugal e, para tentar salvar o casamento tem a ideia de se transferir com a família.

Para tanto, tenta a mais cobiçada repartição dos correios na Riviera francesa. Mas por forjar seu pedido, é punido indo para o norte gélido e escuso. No início vai sozinho e o filme acaba por explorar esse distanciamento que, claro, parece fazer bem ao casamento deles.

Na verdade o que a gente percebe quando o set de filmagem migra para o temido norte, é uma singela homenagem do diretor e ator Dany Boon ao ponto mais discriminado da sua França, conhecida como a região do Ch’tis. Um povo hospitaleiro e amigo, que fala um dialeto bastante peculiar. E Dany declara: é um Ch’ti!

Os primeiros minutos do filme podem tentar decepcionar. A comédia tenta uma pastelice antiquada e previsível, mas, do momento em que Philippe entra no carro até o fim, surge uma das mais bonitas obras sobre amizade. Por sinal, a mesma base da outra deliciosa comédia.

O Pequeno Nicolau é um filme de 2009 e também pousou há pouco no Brasil. É baseada na obra infantil de René Goscinny (roteirista do Asterix) e lida com as coisas do mundo adulto sob a ótica infantil. Uma espécie de Calvin and Hobbes francês.

Qualquer película com crianças ingenuamente espertinhas tende a ser, ao menos, engraçadinha. É até covardia, vide: Valentim, The Goonies, Little Giants e afins. Mas o Pequeno Nicolau vai além. Sentencia a infância como a fase mais pura, divertida e marcante da vida.

O grande percalço aqui é Nicolau (junto da sua gangue) tentar evitar que seja abandonado pelos pais na floresta, depois que seu novo irmãozinho chegar. E a aflição se dá quando o menino faz associações furadas sobre a iminente chegada do suposto irmãozinho.

Cada personagem-mirim é minuciosamente bem construído e articulado, a história é delicada e provoca incansáveis suspiros. Sem falhas. Uma ode à fantasia e à imaginação infantil. Destaque para as cenas do Rolls Royce e da visita do Ministro da Educação ao colégio.

Pensando agora nas recentes experiências, concluo que Godard, Truffaut e sua Nouvelle Vague não definem o cinema francês e, meu sacrilégio cinematográfico se paga, satisfeito, nos frames de Dany Boon e Laurent Tirard. Outro sacrilégio? Já não tenho receios e reitero: Vive Le France!

sábado, 10 de julho de 2010

Mar de Rosas


As rosas, tão ocupadas em brotarem puras e solitárias no topo do caule cheio de espinhos, estão fadadas a morrerem em bando, chacinadas em nome de um amor insustentável dessa espécie tão inapta à auto-suficiência. Crime premeditado: Assassino e cúmplice.

E esses brutais ceifadores mutilam jardins e roseirais na tentativa energúmena de afirmação tirana a um amor homicida. Um amor sem sustentação afetiva, pois, não basta a dois. Ou basta, e as rosas mortas indicam o redor que padece perante a esse romance bonnieclydiano.

Enquanto isso os macabros espectadores/cúmplices assistem encantados o definhar discreto das pétalas aveludadas. Ainda vermelhas e já sem vida, boiando na água. O suave aroma impregnado no ar, não esconde o gesto grotesco e cruel do sacrifício involuntário da flor. Não têm escolha.

Se enterram sozinhas, germinam sozinhas, brotam e florescem sem apoio ou qualquer estímulo companheiro. Aí, quando atingem o esplendor da beleza e saúde, são amputadas da solidão e enroladas umas às outras. Violentadas. Sequer desfrutam da comunhão fúnebre a que são acometidas.

No fim, os falsos cordeiros – sempre tão humanamente inocentes – se satisfazem com o objetivo atingido: O amor perpetuado. Somos mesmo tão mesquinhos e egoístas que nossa satisfação não cansa de sobrepor-se à vida alheia. Sem nenhuma distinção de espécie.

São assim nossos relacionamentos mais intensos, transbordados de pequenos crimes sociais e morais. Um generoso punhado de contravenções inconscientes e beneficiárias exclusivamente a quem pertence a aquela bolha. Um par apenas. Um ser, às vezes.

Pois nem todo crime presume cúmplice. A cumplicidade do homicídio ambiental das rosas está na pasmaceira ignóbil do receptor. Ainda aspirante a cúmplice. Seu crime estará em compactuar da chacina e, por puro sadismo romântico, prolongar aquífero a angústia da flor.

As flores morrem no instante em que, decepadas, se aglomeram nas mãos do carrasco. Dali em diante, não importa a embalagem, é apenas fetiche necro. Quer exaltar a vida? A excessiva sensação vívida de estar amando? Faça um filho, não mate as rosas.

Mas não faça um filho se, apenas para privar as rosas do aborto. Seus genes estarão nessa criança e, se cada romântico tiver um filho em nome das rosas, o mundo se entope em vinte ou trinta anos. Será aromático, não duvido, mas ainda mais sufocante.

Maldita emoção que, sôfrega, ejeta a razão do nosso ser no clímax da paixão. Nos polimorfiza inconstantes e vulneráveis. Sempre despreparados da próxima transmutação de personalidade. Nos desencontramos bobos. Diariamente e diferentes do dia anterior. Despreparados.

Bendita emoção essa que nos dá férias da razão. Nos juveniza e alimenta o que há de mais sensacional para ser alimentado: O amor. É por isso que vivemos afinal. Conquistar e ser conquistado no campo do amor. Outras satisfações pessoais é simplesmente consequência.

“Quem não ama, não vive” – disse há pouco tempo um amargurado bêbado andarilho, no meio da madrugada. Desde então eu vivo como me obrigou o etílico senhor. E vez por outra, divago sem razão sobre coisas estúpidas, sobre rosas. E me convenço, ingênuo, que estou com a razão.