domingo, 25 de abril de 2010

A Natureza dos Seres



Pela impotência da idade e pela falta de amparo, passava o dia de olhos fechados, inspirando suave e profundamente o gás carbônico emitido às toneladas, por aquela maldita praga que devastou seu habitat tão irreversivelmente, nos últimos anos.

Habitava a ilhota fundamental de uma das vias mais movimentadas da capital do país. Sozinha, com um pouco punhado de bromélias, arbustos e grama bem aparada. Era a árvore mais velha do mundo e resistia ao avanço global, enraizada naquela pequena porção de terra, cercada por carros e asfalto.

Diziam – e era uma lenda apenas entre as árvores, já que os humanos não se importavam – que seu caule, de tão resistente aos anos, se fosse cortado, não apresentaria riscos de gerações, mas uma cor escura e uniforme, pois os riscos teriam consumido todo o espaço.

Ana, como gostava de ser chamada a brava anciã, tinha alguns poucos passatempos. Gostava de contar às bromélias como era o mundo antes, muito antes da época dos homens. Usava um dialeto que só elas compreendiam e, por isso, todo o enigma da origem humana permaneceu intacto.

Dos poucos prazeres que os homens podiam proporcionar, Ana gostava particularmente das ocasiões natalinas. É que espalhavam serpentes de luzes por todo seu corpo e penduravam muitos acessórios. Vinha gente de todo lugar e fotografava. Ela se sentia importante. Mesmo bem velhinha, nunca deixou de ser vaidosa.

E por ter, desde sempre, muito tempo livre, aprendeu a língua dos homens. Gostava de ouvir suas histórias e fantasias. Algumas, especialmente, ela guardava em si e depois reproduzia repetida e compulsivamente às colegas bromélias, toda vez que eram substituídas.

Como aquela história do menino que trocou sua vaca magrinha por alguns grãos de feijão e, aqueles grãos, se transformaram em um imponente canal de ligação entre a Terra e o céu. E, também, se comovia com aquela outra história do menino, outro menino, que tinha no pequeno pé de laranja-lima do seu quintal, o mais verdadeiro amigo.

As bromélias adoravam ouvi-la e o respeito à autoridade natural de Ana era incontestável. Menos as folhinhas de grama. Elas, um tanto irritantes, passavam o dia murmurando entre si: “crescendo, crescendo, crescendo, uhhhhhhhh” – tão tapadinhas... Depois de alguns dias vinha alguém apará-las. Lamentavam-se por alguns instantes e o ciclo se repetia.

Enquanto isso, Ana, que há muitos anos, havia desistido do impacto visual do progresso, ocupava a memória nas suas amigas do passado, antigas tutoras, Sequóias mais antigas que ela. Todas decepadas e esquartejadas bem à sua frente. Progresso!

Pressionou seus olhos ainda mais tentando reter a seiva amargurada que forçava saída. Nenhum ser humano ousava mais tocá-la, em nome do progresso. Ana era, naquele momento, a representação da força da natureza. Única. O fardo que carregava era grande demais, insuportável.

Trancou-se em um silêncio mortal, ironicamente muda como uma porta – embora livre deste infalível destino – concentrou-se em não ouvir, não dizer, não sentir e nem ver o mundo do lado de fora da sua casca. Algo entre mil e cinco mil anos passou por ela. Mesmo com sua campanha gozando de êxito desde o terceiro.

E depois de tanta dedicação em ignorar a evolução humana, Ana resistia invariavelmente a todas as nocivas investidas daquela espécie que destruía qualquer obstáculo em benefício próprio. Não sabia mais o que se passava, não ouvia histórias e nem se deliciava com as serpentes de luz no natal. Era o apêndice do mundo.

Com muito esforço, rompeu a densa camada de seiva seca e abriu os olhos para um planeta inabitado, em ruínas cinza e apodrecidas. Suspirou o som da solidão, ruidosamente. Entretanto, no meio de algumas pedras e cacos de vidro, ouviu um delicado “oi” de uma rosa branca que, assustada, crescia isolada nos escombros.

Do outro lado, jovens bromélias apontavam efusivamente para o mito que acabara de despertar e, em todos os cantos se ouvia baixinho as folhinhas de grama: “crescendo, crescendo, crescendo, uhhhhhhhh”.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Pelo Buraco da Fechadura


Essas pessoas difíceis. Melhor, impossíveis. De se decifrar nos olhos e nas palavras. Estas que, de tão melindrosamente introspectivas, forjam uma personalidade misteriosa. Seres sombrios que, disfarçados em falsa timidez, soam até bonitinhos dissimulando por aí, ruborizados.

São mais comuns do que se imagina. Seres dificultosos da interatividade humana. Eu! Claro, sempre eu. Um bloco de sentimentos e sentidos obscurecidos pela insegurança de uma instabilidade simples: as relações. Porque não?

Me calo!

Nas decisões mais cotidianas que adoto no dia-a-dia. Poucas palavras. As respostas que afetam as pessoas. As respostas que deveriam ter existido para, justamente, afetar as pessoas. Os sentimentos e a total frieza aos conflitos alheios. E ainda exijo atenção!

Mas não só eu. A fatia mais gorda dos que integram meu círculo social. Qualquer círculo social. Nós e nossos problemas humanos. Seres racionais. Os homos que sapiensam para, depois, complicarem tudo. E nesse diálogo íntimo com nossa confusa consciência, cedemos à frustração.

Por não falar o que era preciso ser dito. Por dizer o que era impreciso, em prol do equilíbrio da relação. Cedemos. Calados. Mudos de personalidade. Essa indefectível necessidade de proteger os próprios flancos dos golpes da vulnerabilidade.

Sou eu vulnerável, dentro de mim. Amplamente vulnerável e, muitas vezes, desacreditoso do amor próprio. Mas não aos outros. Sou “misterioso” e, se puderem acreditar, “interessante” aos olhos que me olham com zelo. Mal me conhecem...

Há quem, eventualmente, me descubra da forma essencial: Moralmente franzino e psicologicamente débil. Irreversível, se me apresentar assim. São anos em um processo lento e enfadonho de confiança exterior, para romper o invólucro cascudo da minha autodefesa. De misterioso a sensível, elevado à quinta potência.

Mas está bem, há quem, eventualmente, me ature dessa forma. Bons amigos! Aqueles que olham dentro do buraco da minha fechadura e, indiscretamente, enxergam coisas que, muitas vezes, nem eu sou capaz de ver. Um talento. E ainda com isso, ao olharem dentro do meu íntimo mais particular, me querem. Um mistério.

domingo, 18 de abril de 2010

Se Para Crianças, Para Crianças Então


Ultimamente, quando uma animação é lançada, a pressuposição infantil da trama se restringe à essência tramática. Todos os ângulos e piadas do filme são voltados para os menos pimpolhos. “Como Treinar seu Dragão” foge às regras retomando regras mais primitivas, quando filme de criança era feito para criança.

O diretor Peter Hastings, que também dirigiu e produziu alguns capítulos do saudoso “Animaniacs”, embora não tenha conduzido muitas produções no meio animativo até hoje, soube, nessa obra, criar excelentes expressões e muitas sutilezas digitais, fazendo do longa uma experiência promovível.

Mas, já adianto de antemão ter graves dificuldades em parabenizar diretores de animação! Afinal, o mérito está na direção ou nos outros processos de criação? Honestamente, é um trabalho cinematográfico muito mais coletivo que qualquer outro. Não posso exatamente oferecer-lhe os louros!

O filme, enfim, não propõe uma fórmula inovadora de enredo, mas também não erra. Trata-se de duas espécies (vikings e dragões), inimigas há mil anos que, subitamente, se descobrem próximas em vários aspectos. Surge uma amizade proibida.

O resto é um despejado de clichês encaixados minuciosamente nas cenas mais adequadas, fazendo da película uma obra sensível e divertida. E para quem acha que clichês são o demônio do cinema americano, ouso defendê-lo aqui quando bem aproveitado. Funciona, oras!

Já a opção 3D não passa de uma opção. É que esses óculos ainda não me convenceram de outra que não a exclusiva incumbência anti-pirataria, porém, se com esse propósito, não justifica ingressos mais caros. Vale pela alegoria, aos que tendem aos caprichos tecnológicos. Nem melhor, nem pior.

Para quem acha que filme de criança pode ser agradável, mesmo aos adultos, eis a sugestão infalível. Ainda que em uma despretensiosa terça-feira qualquer. E às terças-feiras quaisquer, bom é quando tudo termina bem, e terminou!

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Botões Pretos


Num súbito, naquela fração milionésima de segundo que garante o semi-desligamento do corpo na total paralisia noturna, enquanto os olhos se trancam em sonhos. Nesse instante, milhares de vidas chacoalharam a quase nove graus, segundo Richter. Vidas purgatórias que, como se já não fosse o suficiente, surpreenderam-se às avessas no pico da madrugada escura e desprovida de lua. Sequer a lua abençoava o local naquela noite.

Era o dia do juízo e a natureza – vassala divina – arrebataria um chumaço de almas. Boas e más. Todas as sobressalentes, precisamente. As dividiria em santas e profanas. Joio e trigo. No fim do tremor, cem mil corpos se distribuíam no solo, pesados, macerados, vinte e um gramas a menos.

Para os incólumes, a missão desconfortável do resgate. Conhecidos e desconhecidos. Loteria à vida. Seres humanos. Das paredes e telhados sobrepostos ouviam-se, aos montes, gritos abafados e gemidos sem força ou origem. Suspiros avulsos que desafiavam o capricho sádico dos céus. Almas atrasadas, resistentes à corte celestial.

Esperança, que podia ser apenas um sentimento iminente, era o nome da garotinha robusta e de ossos fortes, enfiada sob a parte mais inferior do mais profundo amontoado de entulhos. Ela não pôde despertar a tempo de fugir do seu quarto, no primeiro andar daquele prédio de onze andares. Tinha o sono pesado.

Acordou com o quarto tremendo e a vida sacudindo. Conseguiu abraçar Fido, seu pequeno coala de pelúcia, e nada mais. Quando se deu conta da condição à qual havia sido brutalmente exposta, toneladas de concreto a prendiam, sufocante, numa cela centimétrica.

Primeiro, assustada, achou conveniente gritar, mas, sequer ouvia o próprio desespero. Em seguida, pensativa, cogitou chorar as lágrimas cortantes das crianças, mas entendeu imediatamente a ineficácia do gesto naquela situação.

O mundo centrou-se então em Esperança, o céu todo parou para admirar as ações que seis anos de vida poderiam experiênciar. Não houve mais tremores enquanto durou aquela interação indireta.

Ainda pensativa, a menina encontrou Fido sufocado em seus braços e, maternalmente, o desafogou acariciando o dorso. Suspirou aliviada pela companhia, era responsável por aquele bichinho inanimado, a mãe.

Refletiu confusa sobre os coalas e não soube o porquê do afeto a um animal tão distante da sua realidade, geograficamente. Não sabia nada de “globalização”, mas, certamente pensou nela, à sua maneira, com seu intelecto pré-escolar. Admitiu, emocionalmente, que não se escolhe o amor, seja ele impulsionado pelo mercado ou atribuído naturalmente. Amava Fido e dividiria com ele, incondicionalmente, os dias mais apertados da sua breve existência.

O tempo corria no ritmo dos respingos sujos que acertavam invariavelmente a cabeça de Esperança. Serviu de alimento líquido. Pensou e entendeu não ter grandes memórias ou qualquer legado que a fizesse revoltar-se contra a morte. Tinha apenas seis anos e Fido. Sua família certamente fugira do desabamento. Sorte deles. Começou a aceitar o destino.

Sempre que as gotas escasseavam, Esperança fitava Fido que, com aquele olhar estático de botões pretos, entregava-se à fome dela, permitindo que o devorasse. Mas ela preferia a morte lenta e ácida a exterminar seu fiel companheiro. O abraçava, ainda mais materna.

Continuaram nessa oscilação alimentar. Ora com as gotas, ora com a fome. Todos os dias eram escuros, não se sabe quantas luas ou quantos sóis atravessaram suas cabeças, mas, de um dia em diante, as gotas secaram de vez e secou tudo em volta. As pedras secaram, a boca de Esperança secou, sua garganta. Só restavam os dois com toda aquela aridez. E a fome.

Mais tempo ainda até que as escavadeiras e o sol puderam encontrar aqueles corpinhos intactos. Meses. E quando a luz ocupou aquele mísero espaço, a imagem era de Fido abraçando zelosamente Esperança, sem vida.

Dos grandes botões pretos emergiam espessas gotas que escorriam pelos sintéticos pelos e atingiam a face da menina, invadindo sua boca com aquele líquido puro e purificante. Após o longo silêncio que se instaurou entre as máquinas e a equipe de resgate, Esperança abriu os olhos e protegeu-se da luz.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Vão-se os Pulsos, Ficam os Cotovelos


O mundo e toda a fé que depositam nele. Não no mundo, embora, também no mundo. Mas toda a fé que o ser humano é capaz de empreender mundo afora. Das mais concretas às mais abstratas das coisas. Queria eu ter a fé cega da felicidade. Não que eu seja o absoluto mártir da tristeza humana, mas, me decepciono. Homenzinho pequeno.

E quando dou de me decepcionar, perco o freio. Embuto nas minhas descrenças toda a crença humana e a subverto em paspalhice. O ser humano é paspalho. Quando crê e quando não crê. Não crê ser capaz de satisfazer-se com suas crenças, não crê ser capaz de viver sem elas. Somos mutantes.

Mutantes porque adequamos nossas doutrinas sem qualquer pudor ou dogmatismo. É a sociedade da informação ditando o tom da melodia. Descobrimos mais, sobre o que já sabíamos. Descobrimos nosso, aquilo que nem imaginávamos.

Descubro intangível aquele óbvio sentimento imposto em mim quando ainda garotinho. O sentimento e Papai-noel, duas frustrações inesperadas, tão necessárias. E belas no discurso. Mas não sou de viver no discurso. Logo eu, tão discursivo.

Jamais ilusório! Se “discurseio” o faço a bem da verdade. Ainda que minha e, ao menos, enquanto acreditar no que estou falando. Pois não sou daqueles que acreditam castamente nas mesmas ladainhas, até o fim dos dias. É meu ímpeto descrente, não sou eu. Sou eu, descrente e volátil, oras.

Mas deixando claro: Não me julgo melhor, muito pior! Repito: Queria eu ter a fé cega da felicidade. Crer sem ver, nem saber. Sorrir à toa, ao léu, entregue aos cuidados alheios. Mas fico aqui, caçando contestações. Satisfazendo-me em mutilar as pequenezas que fazem a vida grande.

E sigo seguindo, feliz da vida por expelir de mim inverdades homéricas que empurram na gente goela abaixo. Infeliz da vida, por expelir de mim, inverdades homéricas, que empurram na gente, goela abaixo. Bem aventurados os tolos, porque acreditam. A verdade está no tamanho da fé, não no pragmatismo idiota da verdade.