domingo, 27 de novembro de 2011

Medo de Sempre



Muda tudo na vida dos idiotas. Só não muda o medo, porque sem o medo um idiota é figura desestruturada. Medo de quê é ele quem diz. Todo inseguro. Das poucas coisas que sabe, sua angústia é o que sabe melhor. No caso deste, é o futuro, que se apresentou há algum tempo.

E escreve, no anseio estapafúrdio pela libertação, pensando que algumas palavras baratas irão (algum dia) romper a clausura, dando asas multicoloridas à lagarta cor de folhagem. Como se fosse alimento do artista, seu próprio produto artístico. Como se fosse artista, o doce idiota.

Vadio. Na preguiça sobrehumana do próximo passo, aquele que o tira do universo da pretensão e o atira à constatação bipossível e definitiva do objetivo requerido. Contra a segurança de viver o eterno e torpe sonho do “e se...”. Porque uma vez na chuva, encharcado.

Medo mesmo. De se molhar. Do tempo que leva para secar e das moléstias que o corpo úmido tende a absorver. Um único desejo, covarde e simplista: Ter certeza. A certeza da habilidade, necessária ao mundo, externa, para fora do crânio impenetrável. Ter o que dizer e saber como.

Sem a sufocante sensação da idiotia. Maior, aliás, que a idiotia em sua essência. Porque a grande aflição é o caminho pela ponte movediça que liga a ideia à ação. Precipício abaixo e nenhuma garantia à frente. Ah Deus, ser idiota e não saber é o sonho de qualquer inseguro.

Que tem apenas uma segurança na vida: a incapacidade monumental de se definir. Uma inconstância diária para apoiar ideias alheias e desapropriar-se das próprias, subjugando-se. Sendo menos que os demais, mesmo que os demais não sejam mais. Pura depreciação.

Invejando da forma mais baixa o talento alheio, legítimo a ele, como se puro veneno anti-inspiração deslizar os olhos por palavras tão precisas e sentenças tão exatas. O que falta dizer se está tudo dito? Ou ainda, se disseram tudo, o que resta fazer senão assumir a vida operária?

E vão dizer que idiotice é isso, não crer no próprio talento, escancarado. Ou ficarão calados, pensando que o reclamante está carente, babando pelo amparo gentil e confortável do aplauso. Mas não, apenas liberdade. Não para voar, mas, primogênita, para criar, sem medo.

domingo, 13 de novembro de 2011

Duplo e Sem Gelo



Acabo de ser tele transportado para o universo bizarro e belo de Almodóvar. E ainda não voltei! Aliás, nem sei se volto porque, também, não sei se quero. Quanta raiva! Essa loucura poética (qual não?) e tão bem administrada que busco, incessante, feito o graal de mim.

Pedro Almodóvar, entre acertos e muito poucos erros é, no cinema, aquilo que eu queria deixar impresso e assinado. A bizarrice tão improvável e insana quanto livre e exata. Almodóvar brinca com os limites da invenção como se à exclusiva ingestão de antipsicóticos!

Chivas com Haldol, por favor! Duplo e sem gelo... Para compreender mas, mais que isso, estar lá dentro. Se alimentando e se extasiando dessa criatividade desenfreada e intimíssima. Uma porta para Almodóvar. No melhor estilo John Malkovich de Kaufman (gênio para depois!).

Mas nem sempre assim. Em 1994, o primeiro encontro: Almodóvar, Eu, HBO e Kika. Total fracasso. Horror, desnorteamento, trauma e os treze próximos anos sem estômago para o diretor. Mas, pobre de mim, só dez anos e previa apenas peitos desnudos e roupa de couro.

Nunca me atrevi a dar nova oportunidade à sofrida Kika, mas, em Volver superei o preconceito, alcançando o mínimo interpretativo que Pedrinho esperava de mim. E levei muitos minutos cego que Maura era de fato um espírito (spoiler?). Eu estava aprendendo...

Fora da sala o encanto tardio pelas pirações sufocantes do diretor abriram as portas para Má Educação, Tudo Sobre Minha Mãe, Abraços Partidos (único renegado) e o impecável Fale com Ela. Que cedeu o posto de obra prima hoje, para A Pele que Habito pois, obra máxima!

E eu cheio de melindres... Porque até então, Almodóvar não era unanimidade. Ainda havia a memória turva de Kika e a frustração recente de Abraços Partidos. E críticas recentes sobre o desatino da nova obra me deixaram temeroso. E não menos confuso pela classificação: Terror!

Mas não cedi aos alertas e, que bela surpresa, a melhor oferta que esse espanhol perturbado já me fez! O filme trata de muitas coisas, trata, de certa forma, até das mesmas coisas. Trata-se de um autêntico Almodóvar, mas não, não se trata de terror em nenhuma instância. É mais!

Antonio Banderas é um cirurgião plástico com muitos motivos para ter a personalidade que tem. Marília, sua governanta e braço direito é o perfeito Fritz (de Frankenstein) e o resto, bem, o resto é a previsível e adorável sucessão de surpresas tão almodovarianas que só ele mesmo!

E novo em mim, esse encantamento pela direção de um filme. Porque eu, sempre mais verbal ao visual, era de Kaufman à Jonze, por exemplo. Mas se somos com quem nos relacionamos, assumo agora a unanimidade de Almodóvar! Da seleta classe dos tão bons que invejo.

sábado, 12 de novembro de 2011

A Seta no Alvo


A visão turva e embaralhada me transtorna ainda mais. O suor se prolifera no alto da testa e escorre face abaixo, colado à pele, serpenteando a roupa e estacionando no peito do pé desnudo. O chão em brasa, me apressando. O dardo incandescente, queimando meus dedos.

É a vida que tenta me alertar sobre o tempo que avança incendiário pelo pavio regressivo da própria vida. O tempo que passa por cima de todos os recursos que tenho: saúde, neurônios e disposição. Pelo medo em mim, foco no alvo, não distante dos olhos. Bem adiante. Logo ali.

Arremesso a pequena seta fumegante e acompanho com esforço a linha enfumaçada que ela projeta no ar. Conto com a mira precisa que nunca contei. O centro. O meio do centro. E eu ficando pequeno, idiotamente para trás, crendo que só o meio pode exterminar essa pressão.

Nem acima, nem abaixo. Ou para os lados. Se não o centro, tudo em vão. O dardo encerra sua trajetória e fura o alvo ruidosamente. Ouço a pancada, mas, lá de trás não enxergo onde fincou. Mero espectador, não sou mais eu nessa vida. Sou o dardo; o alvo a vida; eu o passado.

Fico lá, agitado pelo impacto, fincado fundo no tabuleiro da vida. Sem saber onde estou. Acreditando que o meio, o invisível e fracassado meio, é o melhor que posso conseguir. Torcendo por ele. Essa expectativa, mesmo que angustiante, se edifica, é esperança.

Do alvo, penso naquela figura patética lá de trás, aquela que enxergava apenas o êxito do centro. Tento entender o que a fez assim. O que me fez. Penso nos conselhos distribuídos ao longo do tabuleiro, digo, da vida. E o que eu fiz com cada um deles por todo esse tempo.

“Não se preocupe, isso é normal”`; “Ei, relaxe, acontece com todo mundo”; “Você não é um fracassado, só é uma pessoa como outra qualquer”; “Sabe quantas pessoas são capazes de um feito como esse? Apenas uma em um milhão!”; “Não querido, tamanho não é documento!”.

Eu e esse conforto na mediocridade. Esse flerte derrotista com a invisibilidade existencial. O que faço aqui? Vivo pelo último suspiro. E nem um passo além? Um tédio interminável esperar o derradeiro inflar dos pulmões, sentado no trono do apartamento, com a boca escancarada.

E a morte vai chegar! Me escondendo da vida ou me atirando a ela, vai chegar. No meio, nos cantos ou até fora do tabuleiro. Um dia a morte me encontra e tudo o que deixei de fazer estará deixado para sempre. E se houvesse inferno, uma eternidade de remorso...

Mas meu alívio, cravado na vida no auge da minha vitalidade, ainda vibrante pelo arremesso é que de onde estou jamais vou saber se meio, extremos ou fora. Sou dardo, não mais expectador e, apesar dos olhos voyeuristas, o ponto fincado é algo que está na minha cabeça.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Projeta Brasil e os Reis da Areia




Muitas das boas iniciativas culturais, pública ou privada, acabam esbarrando na falta de bom senso do principal alvo: o público! Eis que a rede Cinemark dedica um dia de sua programação para exibir filmes brasileiros a preços mais que populares (R$2). Incentivo puro!

A campanha Projeta Brasil acaba de cumprir seu décimo segundo ano e deve ser a quarta ou quinta que eu participo. Quase sempre a decisão é de última hora, considerando o delicado dia da oferta: segunda-feira! Entretanto hoje, dia sete, estive eu na poltrona da unidade campineira.

Pela decisão súbita, com menos de trinta minutos para o início do filme, me preparei para enfrentar emoções guérreas nos corredores do shopping. Previ filas longas, muito barulho e problemas para estacionar o carro. Curiosamente, foi só o que funcionou. Além do filme, em si!

Capitães de Areia, a propósito, de Cecília Amado, mas eu já chego lá. Por enquanto as assombrosas surpresas da chuvosa noite do Projeta Brasil. Tudo foi bem no inicio, como já antecipei. Carro bem estacionado, ingresso comprado e assentos livres em todos os cantos.

Logo que as luzes se apagaram, reparei um barulhinho chato de pessoas que, descalças, despreocupavam-se com os demais contando amenidades do dia e da chuva. Pensei: Será difícil! Mas logo o áudio atropelou os timbres inúteis e pude me dedicar apenas à tela branca.

A publicidade veio direto à tela e frustrei-me com a falta de trailer (isso não se faz, eu quero trailer, muitos trailers!), mas tudo bem, eu confiava na obra, que viesse logo! Mas de tão logo, surpreendeu os menos apressados que, com o filme começado, decidiram finalmente entrar.

Nos primeiros dez minutos de filmes entrou mais gente na sala que nos trinta que antecedeu o início. Mas sem crise, não quero ser o tipo de ranzinza que, inclusive, não cede passagem (já estive no lado de lá da situação (sempre, aliás! (embora, me defendo, só durante os trailers!))).

Enfim, todos posicionados e, minha estratégia de sentar-se à frente de uma poltrona vazia para não ser chutado durante a sessão foi por terra, a sala encheu! Durante o acomodamento já tinham me chutado duas vezes! Até aí apenas um desafio à minha tolerância, sempre fui!

Porém, algo me desconcentrou: “Como chama o filme, amor?” - perguntou uma desavisada. “Os reis da areia” – confiou o namorado. DEUS! O NOME APARECEU FAZ CINCO MINUTOS! E ESTÁ IMPRESSO NO INGRESSO! E VOCÊS TIVERAM QUE PEDIR À BILHETEIRA! Como faz isso?

Mas logo eles cessaram a conversa paralela e, junto comigo, se entregaram a Pedro Bala e seus Reis da areia, digo Capitães! A obra, aliás, figurou na minha interminável e compulsivamente renovável lista fílmica há pouco, mas, nos desencontramos entre uma pipoca e outra.

Por sorte tive essa oportunidade e, terrores à parte, apresentava-se à pena válida! É uma história muito baiana, do painho Jorge Amado (e eu devia ter lido mais Jorge, pelo menos um Jorge. Mas, admito, sou um fracasso!) e retrata meninos malandros crescendo nas ruas.

O bando, liderado por Pedro Bala é uma espécie de família/comunidade marginal que precisa lidar com conflitos infantis, juvenis e adultos ao mesmo tempo. Têm sua estrutura abalada em dois momentos: Durante a epidemia da Varíola e quando a primeira menina entra no grupo.

A primeira situação desencadeia uma ruptura que afetará o eixo do grupo bem lá na frente e a segunda dá substância e contexto adolescente à trama, além de provocar um inevitável triângulo amoroso, mas não machadiano, apenas adolescente e complacente. Nada corrosivo.

A direção de Cecília (neta do homem, diga-se de passagem) é bastante primorosa e convincente. Não sei se dirigiu outro algo que eu tenha vista (e estou com uma preguiça de descobrir...), mas apenas por Capitães de Areia, garante meu voto de confiança para o futuro.

Por um lado parece fácil dirigir uma história que pôde ser contada pelo próprio autor, querido. Por outro, está estampado na tela o cuidado com uma Bahia lindamente descuidada, dos anos 50. A fotografia é linda, os cenários. As impressões e expressões dos personagens.

Mas de pecado, apenas a atuação. Algumas! Jean Luís Amorim tem uma feição incontestável para o papel do Pedro Bala, mas verbalmente demora a crescer e o texto enrosca em insegurança. Jordan Mateus e Israel Gouvêia vão bastante bem com Boa Vida e Sem Pernas.

Mas é Ana Graciela que segura a melhor atuação mirim. Acaba também denunciando algumas falhas de insegurança, mas, que não prejudica o personagem. E até Zéu Britto, figuríssima do cenário músico/cênico nordestino frustra com um pequeno papel e uma atuação discreta.

E a trilha, coordenada e maestrada pelo maior expoente da música baiana, Carlinhos Brown, vai muito bem! Entre cânticos no universo africano sampleados, sambas de raiz (entoado por Zéu Britto) e o tom grave de Arnaldo Antunes, a trilha sonora é uma pérola à parte!

Mas aí o filme que já havia convencido, resgatado em mim um amor abalado por uma Bahia hipotética de outros carnavais, e atingia momentos de clímax. Quando o terror voltou a sondar! No ápice do drama, durante a execução de um ritual de candomblé, o improvável:

Um ímbecil lá de trás da sala, totalmente equivocado, começa a gargalhar como se assistisse a um filme completamente diferente, debochando ignorantemente de uma cultura riquíssima do nosso país e incitando outros idiotas a aceitar o riso alheio como graça instituída.

Seria covardia duelar de qualquer jeito com uma toupeira desse calibre (só se xingando muito no twitter!), por isso, respirei fundo e me concentrei no fim do filme. Que acabou bem, felizmente. Não bem BEM, mas bem, com méritos! Aí, lancei ouvidos nas impressões alheias.

“Não sei, mas filme (falado) em português não convence!”, ou “Não é um filme de cinema. É ótimo, mas se tivesse custado mais eu nem vinha!” – Interrompi a investida chocado, constatando que, a iniciativa é boa e o resto, pura boa vontade! Chato aqui, só eu!

domingo, 30 de outubro de 2011

Respeitável, Público

 
Olá domingo, olá cinema! Dia de colocar os pensamentos no lugar, as frustrações. Dia de se organizar para a semana que já chegou, abençoada no meio por um feriado que acabará como este domingo: Em cinema! E o que é que se tem para hoje: Pipoca, picadeiro e o Palhaço!

A nova peça fílmica de Selton Mello, direção e protagonização, é uma pérola, extraída delicadamente da ostra do óbvio. A história se passa em um interior mineiro da década de setenta (talvez) e narra o cotidiano de um pequeno circo onde Mello é o Palhaço-proprietário.

Insatisfeito com sua indefectível sina, Benjamin (Mello) começa o filme na rotina das suas apresentações com a trupe em cada cidadezinha que cruzam pelo caminho. Ele, como Pangaré e o pai/sócio, como o Palhaço Puro-sangue (Paulo José), lideram o modesto espetáculo.

O descontentamento está claro desde o início, mas, a magia da obra vem depois. Enquanto o dilema existencial nos é exposto cena a cena, o filme destila um excesso de pretensão que só os menos impacientes conseguem conceber como necessário ao contexto do personagem.

Fica evidente, de um momento específico em diante, que a falta de paixão do palhaço (que parece ser de Mello, ator e diretor) é a transparência absoluta da crise vivida por Benjamim. Enfraquecido pela falta de perspectiva e pelo desgosto à vocação (inerente a ele) pelo picadeiro.

Até que se rompa a burocratização do óbvio dilema do palhaço infeliz o filme não apresenta mais que uma bela fotografia rural e uma estranha obsessão do protagonista por um ventilador. Daí o aparente pretenciosismo barato. Mas eu queria que o filme fosse algo mais!

Por isso que quando Benjamim chega a Passos, o filme realmente caminha e ganha status de obra. Porque o sentimento ganha profundidade, e o personagem (e o ator e o diretor) ganha sentimento, e o filme ganha profundidade. Mas não entro em detalhes, não sou de fofoca.

Mello propôs divertidas participações como o irmão Danton, Ferrugem e um irreconhecível Jorge Loredo (ou Zé bonitinho) que, aliás, contribui precisamente para o ápice de Benjamim, enquanto conta algumas piadas na mesa do bar! É lá que o Palhaço sana de vez suas aflições.

A expectativa para O Palhaço era alta, justamente por isso o medo do fracasso tanto quanto. Mas por ironia de um típico domingo de sentimentalismos pessoais, de crises de passado, de presente e de futuro, a identificação foi total e a satisfação, confortavelmente, também.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O Escolhido




Enquanto ele prematuro, inseguro e flácido. Ela sólida, fria e irrefutável. E também ela, a outra ela, paralela, na combinação exata dos dois: Frágil e sólida, decidida e insegura. Aberta àquilo como se nada mais importasse. E, de certa forma, nada mais importará. Porque o terá para si.

Mas não sem antes não tê-lo. Nem nos braços, nem no berço. Só em pensamento. Ele, que ainda sem rosto, corpo ou personalidade, se lambuzará em vida da sorte que os irmãos e irmãs jamais compartilharão. E então, saciado, aplicará o mais astuto e improvável golpe no destino.

O chão seco e árido do sertão logo será soterrado na memória em uma avalanche de oportunidades antes inimagináveis. Estudo, educação, carinho e amor. Sim, o mais autêntico e altruísta sentimento que se pode existir. Sem regras, nem protocolos. Sem interesses escusos.

Deixará para trás a sina retirante prevista em lei (pelos homens e por Deus) e, sem que tenha qualquer poder de intervenção, se dará cosmopolita, bilíngue, abençoado e único. Único para ela que, única para ele. Bem mais que biológica, legal. E, pela justa legalidade, autêntica.

O compromisso cartorial (burocrático, lento e angustiante) provocará uma fecundação desconfortável e, nas vésperas do encontro, contrações mais intensas do que a bolsa rompida na iminência das quarenta semanas. Por uma gestação que ultrapassou cinco anos de espera.

E, como nas boas histórias não há cegonha, ele não aterrissará no colo carente. Maomé não vai à montanha, mas, a montanha sim. Entre duas extremidades de um mesmo território, um mundo de distância e lá está ela, como uma alta montanha de cartas de baralho. Firme e frágil.

Se sentem pela primeira vez e se envolvem num laço eterno de amor indissolúvel. Porque verdadeiro. Escolhido. Ela sabe que só poderia ser ele. Ele, ainda cru, eventualmente descobrirá. E dá as costas ao passado que não lhe pertence mais. E ela, a primeira, se dissipa.

Um é propriedade do outro agora. Co-dependentes. Uma vida inteira de descobertas e satisfações. O brilho nos olhos dela. O talento para o encanto que ele emana pela própria natureza pura. Muito além do útero. Muito mais que a simples hereditariedade. Um gesto.

Imbatível até que se conteste essa ingênua plenitude, projetada e fortalecida pelos anos. Aí, bilhões de hormônios dirão a ele que não precisa dela, que cada orquestra se rege com uma única batuta. Auto. Aceitarão, juntos, essa condição. E dissimularão, também juntos, a aflição.

Afastam-se sutilmente e admitem, pela primeira vez e para si, os protocolos da relação. Como se obrigados e admitir desaforos e intolerâncias que inexistiam naquela fortaleza. Aí tomam rumos paralelos, mas, não distantes que deixem de se encontrar à altura dos braços. Logo ali.

E apenas até descobrirem, simultaneamente, que não há sismo que abale o amor legítimo. Quiseram se amar desde o início porque se aceitaram. E, por consequência dessa escolha, se entregam ao abraço mais apertado e singelo que podem oferecer. A legitimidade familiar.

E finalmente confirmam, mutuamente e em silêncio, sob a irrelevância das diferenças biológicas, que o amor não tem ventre, preço, tamanho ou consanguinidade. E que o amor deles, como todos os outros, é nada mais que uma simples questão de escolha.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Um Dia Você se Dá Conta de que Eles Cresceram e Nada Mais Será Como Antes



Pois é, e logo vai acontecer de novo. Um dia terei de enfrentar essa constatação outra vez e, muito provavelmente numa causa mais nobre e íntima. Mesmo assim, a relação familiar, de encanto paternal e absoluto, que dediquei a esses “meninos”, é algo que... Findou-se, então.

Estive, depois de muita, mas muita expectativa, na Arena Anhembi, no último dia vinte e um de setembro, para prestigiar pela terceira vez, aquela que é a melhor banda de todos os tempos (no que posso medir). Não filhos meus, mas, em sentimento, a mesma clareza de afeto.

Explico: Conheci-os aos dez anos, enquanto debutavam no showbizz, enfiando em meus tímpanos seus primeiros sucessos mundiais (Give it Away e Under the Bridge). O rock era novo em mim. Suas doidices audiovisuais e a postura enérgica ferviam meu sangue pré-adolescente.

Era a abertura para o estilo que trilhou as fases mais marcantes da minha vida. E eles eram os responsáveis. E o vórtice musical que se abriu diante de mim depois deles! Acompanhei com a distância inocente e dispersa da infância a evolução deles e, no próximo álbum eu estava lá.

A essa altura eu já era tão fã quanto qualquer outro e compartilhei das mesmas impressões que todos eles, ao mesmo tempo, quando comprei aquele álbum vermelho, de capa perturbadoramente meiga na semana do lançamento. Foi meu primeiro álbum, meu xodó.

Alguns meses depois, fundido ao CD como uma espécie de walkman literal, me orgulhava ser reconhecido na rua pela devoção. Na extinta e saudosa CD-Way, bastava eu entrar para que o simpático proprietário me introduzisse às novidades musicais e souvinéricas da banda. Eu!

Acabei crescendo e as necessidades foram se modificando e se preenchendo. Eu, agora, também me interessava por filmes, garotas, futebol e já ensaiava uma vida noturna (também conhecida como matinê). Mesmo assim havia espaço de sobra em meu santuário sociocultural.

No álbum a seguir, predominantemente azul, a popularidade da banda atingiu níveis pópicos e, pela primeira vez eu precisei justificar meu apreço Caxias. “Isso não é rock, os caras se venderam!” – Me diziam. “Vão vocês à merda!” – Era minha resposta, embasada e clara.

Em 2001, caiu do céu a informação que eles encerrariam o maior festival de rock desse país. Frase polêmica, entretanto, lá estavam eles no último dia do Rock in Rio e lá estavam eu, desde o meio dia em pé, só para vê-los de perto, pela primeira vez na vida. E também me veriam!

O evento divertidíssimo teve muitos altos e baixos. Uma infinidade de bandas, boas e ruins, e me rendeu boas e inesquecíveis memórias. Mas o show, aquele que deveria ter sido o show da minha vida, acabou uma apresentação apática e curta, quase dispensável, não fossem deuses.

Veio um novo disco e, novamente as críticas ao estilo cada vez mais subvertido ao pop. Foi nessa época que eu comecei a entender o que eu sentia por eles. Essa sensação paternal que é tão nítida para mim hoje. Os discos realmente não melhoravam, mas, tampouco pioravam.

O que acontecia era uma evolução natural. Inevitável. Como acontece com todos os filhos, que deixam a beleza pueril e maravilhosa da infância para se tornarem adolescentes problemáticos e histéricos. Amor de pai, dos pais, consegue tolerar com o mesmo carinho, esse martírio.

Um novo show me convidou, um ano e meio depois, a reencontra-los em São Paulo. O comportamento foi outro, como se minha agonia e ansiedade em uma apresentação digna de quem eles eram para mim. E, salvo todos os percalços, o melhor show da minha vida até ali!

Agora nada mais tinha que ser provado, nosso pacto estava concretizado. Enfim toda minha entrega havia sido recompensada. Depois, nossa relação atingiu uma fase estável, de confiança e cumplicidade. Eu não precisava ser surpreendido e eles quase não ousavam. Palco ou discos.

A última surpresa que tive veio na semana passada, no show. Aliás, desde aquele show de São Paulo, dois discos surgiram, um deles há poucas semanas. Nada de novo, embora nada daquilo que me encantou há dezoito anos. O som, por fim, acabou me fazendo entender e aceitar algo.

Mas, para explicar, volto ainda mais no tempo. Quando os conheci, já havia dez anos de banda e muita história boa. Muita música (ainda melhor) em três discos ousados e primorosos. Muito funk, psicodelia, energia, amor e Rock’n Roll. Nunca pretendi aquela fase para mim, e não era.

Meu momento com eles veio do encantamento de 1993 em diante. O resto foi só uma boa surpresa, descoberta pelo caminho. Como saber que o filho, ainda no ventre, é um pequeno gênio em seja lá o que for! Portanto, considerando uma banda com minha idade, só uma coisa:

Eu cheguei no meio do caminho e a história dos Chili Peppers, até agora, é dividida em três momentos: Primeira Fase, Período Clássico e Contemporâneo. Sou feliz de tê-los conhecido no Período Clássico, o mais bem sucedido deles. Mas hoje não pertenço mais a isso, ao futuro.

Por uma série de fatores sociais, naturais e temporais. Mas ter estado no último show. Mais do que a experiência introspectiva da solitariedade, percebi a quantidade de jovens que não tinham ouvidos enquanto eu já ouvia Blood Sugar Sex Magik. O momento, agora, é todo deles.

E não há turbulência. Ou crise. Só o que posso, é aceitar que os filhos crescem e não precisam mais da gente. Estão bem encaminhados na vida e têm, analogicamente, uma nova família para cuidar. O amor aqui continuará o mesmo, incondicional, mas, avô, na cadeira de balanço.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Somos Todos Loucos


No fim do ano, gostava de meter-se nessa cabana, no Bosque das Corujas, onde ninguém mais ousava penetrar, e passava de duas a quatro semanas isolado do mundo. E dos vivos. Gostava, afinal, de provocar os limites da sanidade. Sanidade que, aliás, era um desafio à família Lupe.

O pai morrera atirando-se de um elástico à lua; a mãe ouvia os conselhos de uma rã empalhada; o irmão julgava-se invisível e; muitos parentes flertavam com a loucura de mil formas diferentes. Manoel esgotava sua sanidade a fim de treiná-la. Por isso a cabana funesta.

Seu passatempo preferido, lá no fim do mundo, era dialogar com os clássicos de Poe, Quiroga, Guy de Maupassant e os irmãos Grimm. Tratava de levar dezenas de versões traduzidas em outras dezenas de línguas e as retraduzia, livremente. Tentando orações ainda mais sombrias.

Às vezes, ousava readequar o final, na petulante crença de poder adaptá-lo à cabana, como se provocasse o oculto e o desafiasse a penetrar em sua fortaleza de autocontrole mental. Escrevia à pena, na alta madrugada e sob a luz rala das velas. Porque assim se aproximava.

Depois, despedia-se da cabana e ateava fogo em cada uma das histórias que criara. Debochava do sobrenatural e regressava à cidade, à rotina e à sanidade intacta. Ria pelo caminho e inflava profundamente os pulmões, inspirando para dentro de si, um mundo incapaz de atormentá-lo.

Assistia, ao longo do ano seguinte, mais Lupes cederem à loucura. Alguns confiavam no diagnóstico e tinham uma vida razoável nos manicômios. Outros, completamente fora de si, acabavam lobotomizados e vegetalizados. Manoel temia acabar como os mais exaltados.

Então, quando o ano se encerrava, repetia a viagem e todo o ritual. Passava outras quatro semanas (não confiava mais na quinzena prima) dividindo e boicotando histórias tenebrosas dos grandes mestres, e incendiava tudo ao final. Vitorioso, aliviado e, cada vez mais são.

Passava todo o novo ano se convencendo da liberdade à sina familiar. Casara-se, tivera seus filhos e em alguns anos era um dos poucos Lupes. Em mais alguns, a única corrente de sangue Lupe vivia sob seu teto. A família da loucura (como diziam os psiquiatras) beirava a extinção.

Manoel não tardou a educar seus filhos a vencer o carma que ceifou toda a genealogia do sobrenome. Arrastou-os para a cabana e os fazia reinventar o Chapeuzinho Vermelho, João e Maria e a Cinderela. O mais jovem ia muito bem. A menina, Cícera, discordava do método.

E isso me aproximou, finalmente, da vertente derradeira daquela família. Em um dos natais na cabana. Enquanto Roni (o mais novo) reformulava a saga da Branca de Neve, no Bosque das Corujas, Cícera rabiscava despretensiosa, golfinhos, nuvens e um arco-íris, no chão do quarto.

Assim, sorrateiro, entrei pelas frestas das tábuas da parede, como uma rajada de vento, e estacionei em seu ouvido, sussurrando Jonas, Janine, Lilli e o Bravo Cavaleiro. Minha ínfima oferta à contrariedade da sanidade. Matei todos os outros, Manoel também haveria de cair!

E enquanto Cícera vagava numa epilepsia ocular, eu babava o sucesso da minha inserção maquiavélica. “Em breve. Em breve!”. Porém, acabo atravessado no meio pelo corvo de Poe e Manoel parado à porta. A pena corria firme pelo papel e, por trás, riam Quiroga e Maupassant.

Enfiei-me nas frestas e desapareci no bosque. Porque não sou capaz de chacinar uma família abençoada pela maldição dos grandes. Porque os temo! A minha minuscularidade os teme. Rolei as colinas do bosque abaixo e regressei ao meu vale medíocre das rosas sem espinhos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O Beco da Perdição

Começou em pensamento. Discreto. Inocente. Sazonal. Ouvia por alto como era aquela região oculta da cidade, e imaginava o que o submundo escondia, madrugada adentro. Levou um pouco tempo até que virasse curiosidade. Tinha dezoito anos e total liberdade automobilística.

Na primeira noite, esperou que a cidade toda se pusesse a dormir e foi de vidros fechados, em alta velocidade, mal vendo o que se tinha para ver. Era um medo incontrolável de, por descuido, se expor a olhares familiares e prejudicar uma reputação que ainda se formava.

Esperou mais duas semanas, numa aflição sufocante, por uma abordagem que nunca aconteceu. Em alívio, estimulou-se em retornar com mais calma, numa segunda vez, ao Beco da Perdição. Mas dessa vez, ainda de vidros fechados, reduziu a marcha e fez questão de olhar.

Corpos torneados (quase todos), ousados, provocantes. Achava belo e, ao mesmo tempo, grotesco. Apetitosos pedaços de carne, expostos num leilão obscuro e anônimo. Mudo. Lançou olhares nas partes e também nos olhos, sob a recíproca lasciva que a profissão demandava.

Voltou para casa sabendo que aquela curiosidade já não era menos que uma necessidade iminente de compreender o valor daquele prazer mercantil. Tentou, por um tempo, desocupar-se desse crescente desejo. Faculdade, trabalho, relacionamentos convencionais.

Aos vinte e muitos, sobrava-lhe um buraco, alguma inconsequência qualquer, que só a juventude é capaz de permitir e perdoar. Voltou a frequentar o beco, num ritmo crescente. Aquele pensamento inicial, fugaz, era agora um objetivo. Programou-se a saciar a vontade.

Alugou um carro. Preto, de vidros filmados. Bebeu um vinho barato, toda a garrafa. Mesmo em alta embriaguez, tremia. Rodeou o beco por uma hora até que conseguisse escolher quem abordaria. Procurou um rosto, mais que um corpo, que fosse simpático, e não intimidador.

Quando encostou o carro, gostou da recepção. Um sorriso largo e confiante, como quem sabe lidar com esse tipo de situação. As palavras mal saíram da sua boca porque, também, não sabia o que deveria dizer. Num segundo, estavam ambos no carro, atracados em um drive in.

Na manhã seguinte o sorriso não disfarçava o êxtase da noite anterior. Mesmo com a clareza da relação superficial e comercial, sentia que atingira orgasmos mil vezes mais intensos que em seu relacionamento padrão, piamente adequado aos moldes conservadores da sociedade.

Entendeu, daquele dia em diante, que não abriria mão do Beco. Nunca na vida. Casou-se e estabilizou-se financeiramente. Teve seus dois filhos. Homens. Edificou a vida que lhe projetavam, sem deixar de consolidar, também, uma vida paralela. Promíscua e invisível.

Nesses dias, mantinha uma rotina semanal ao Beco. Alugara um apartamento e tinha também um carro, que só fazia esse itinerário. Não levantava nenhuma suspeita em casa ou no alto escalão do banco onde trabalhava. Nem repetia suas companhias. Era nada mais que sexo.

O vício aumentava e, gradualmente, foi tornando-se uma obsessão. As vezes tinham quatro, até cinco pessoas no carro. Já não sabia mais qual era sua vida paralela. A do Beco ou a do banco. Despertou uma curiosidade ainda mais marginal. O risco era a parte mais excitante.

Adentrou o fim do Beco, onde nunca tinha ido. A última rua, os transexuais. Já não tinha o mesmo medo da juventude e, de alguma forma, sentia falta. No flerta com o homossexual, tinha seus limites, mas, genuinamente, descobriu toques que, simplesmente, desconhecia.

Exalava sexualidade em cada um dos poros e se aprimorava quebrando tabus sociais, realizando fantasias dentro daquele apartamento. Tinha orgulho do requinte vanguardista nas suas tórridas orgias. E ainda mais orgulho do cuidado minucioso ao corpo. Exames bimestrais.

Foram quarenta e cinco anos levando duas vidas incompatíveis. Acima de qualquer suspeita e abaixo de qualquer moral. Faltava fôlego para conservar tantas aparências. Decidira que não levaria adiante. Os filhos já crescidos, a aposentadoria. Pela prostituidade do sangue, viveria!

Anunciou o divórcio e saiu de casa, sem maiores pretensões que poder dormir e acordar no apartamento da luxúria, com quem ou quens quisesse. Celebrou a liberdade em seu harém, com oito homens e dois travestis. Aos setenta anos, era já uma senhora e não devia satisfações.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Uma Casualidade

                                                                  Arte: John Malta (Rá!)

Usava um vestido preto, bem justo, que evidenciava as curvas enxutas do corpo de meia idade, além de um belo decote e uma generosa visão das pernas desnudas. Entrou no bar ignorando os olhares famintos dos pervertidos e o descobriu, sozinho no balcão, com um copo de vodka.

Sentou-se na banqueta mais próxima e arriscou contato visual. Parecia irritado com a vida e isso a provocava. Ele não percebeu sua presença. Se aproximou mais e curvou-se para o garçon: “O mesmo que ele está tomando, e traga uma nova dose para o cavalheiro”. Sorriu.

Ele a fitou sem muito entusiasmo e voltou para sua vodka, encerrando a sexta dose em um só gole. Instaurou-se algum tempo de silêncio até que novos copos chegassem. Ela ofereceu um brinde e bateu seu copo no dele, antes que concordasse, ou discordasse da oferta. Beberam.

O modo como a tratava teria feito qualquer um perder o interesse. Mas ela não parecia desmotivada. Aquele homem, já embriagado, tinha tudo o que ela procurava. O aspecto bruto, amargo e desinteressado, era o que a excitava. Naquele homem. Tinha que ser aquele homem.

Sem pestanejar, despejou: “Você é um homem bonito, porque está sozinho?” –“Porque eu quero estar sozinho.” – “Talvez você só precise da companhia certa.” – “Me deixe em paz”. – “Então olhe nos meus olhos e diga que me quer longe.” – “O que você quer comigo, afinal?”.

Essa era a abertura que ela precisava para conquista-lo finalmente. Depositou a mão sobre sua coxa esquerda e inventou qualquer besteira sobre destino e magnetismo. Ele sorriu desinteressado. Então ela jogou os cabelos por cima dos ombros e ele, enfim, entrou no jogo.

Perguntou sobre a obsessão por homens casados e ela fingiu não saber se tratar de um homem comprometido. Então ela perguntou sobre o matrimônio e ele respondeu não estar nos melhores dias. O confortou dizendo que qualquer mulher amaria um homem como ele.

Perguntou se também era uma mulher casada e ela, categoricamente, respondeu: “Acho que hoje não...” – Um novo sorriso, menos defensivo, destacou-se nos lábios do homem. Mãos se tocaram sobre o balcão. “Você o ama?” – Ele perguntou como se realmente se importasse.

“Sim, o amo.” – “Então porque isso?” – “Justamente porque o amo, você não entende?” – Modo estranho de demonstrar, não acha?” – “O amor é uma coisa estranha, eu poderia estar sozinha em casa agora, mas aqui estou.” – “E o que imagina que vai acontecer conosco?”.

Ela pensou por um instante e brincou com os dedos no gelo da dose de vodka pura. Olhou no fundo dos olhos dele e aproximou a boca de seu ouvido: “Só duas coisas podem acontecer conosco, nos despedimos aqui e nossa vida continua a mesma, ou saímos juntos pela porta.”.

Talvez fosse o álcool, talvez fosse uma conjunção de fatores, mas, pela primeira vez naquela noite ele quis chorar. Porque não entendia a vida tão fora de rumo, e porque queria, sinceramente, sair com aquela mulher dali. “Você não entende o que está me oferecendo.”.

“Vamos dar essa chance a nós dois?” – “É o que mais quero.” – “Vou te fazer o homem mais feliz do mundo!” – “É só o que espero de você.” – “Eu te amo” – “Eu também...” – Envolveram-se em um beijo apaixonado e, reconciliados, acordaram felizes, em um motel perto dali.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Repelindo a Perfeição


                                                           Arte: Pablo Picasso

Era quando eu olhava para o lado de lá, procurando a perfeição projetada idiotamente em mim, que eu me frustrava mais. Aquela perfeição idealizada e burra que passei a vida tentando encontrar. Vasculhei, inquieto, todo o perímetro do espelho e só encontrei olhos perdidos.

Os mesmos olhos vagos da minha infância, tão inocentes. Como se tentasse descobrir o erro, para não repeti-lo.  Porque “errar uma vez é humano, insistir no erro, é burrice” – Era o que eu ouvia o tempo todo. Então não podia errar. Muito. Anos de asco à incompetência, aqueles.

Foi que, no meio da minha adolescência, a grande epifania! Se perfeição é não errar, sequer tentarei! Perfeito! Não é fácil assumir, mas, por mais de uma década, fiz absolutamente nada. Não ousei nem tentei. Errei nada. Pode apostar, havia por aí uma sincera admiração por mim.

Que eu não sabia de onde vinha e, ainda, fazia vista grossa. A perfeição maquiada que eu exalava. Mas, como toda maquiagem acaba borrando, logo essa admiração se auto sepultava. E, digo, uma vez que você assume a preguiça da vida, difícil voltar atrás e arriscar-se ao êxito.

Mesmo assim, tentei resgatar em mim algum talento oculto e adormecido, lá nos confins do corpo. Assumi a escrita e, pela primeira vez em muito tempo, entreguei-me sem ressalvas a alguns julgadores em potencial, conhecidos e desconhecidos. Meu perfeitômetro particular.

Aí gozei de um curto período no Olimpo. A surpresa que meus textos provocavam, o carinho. Que talento! A admiração, finalmente, fundamentada e o caminho da perfeição. Aí, subitamente, me vi julgado pelo pior dos julgadores: Eu. Claro. Os textos? Não tão bons assim.

Então eu desisti de uma vez por todas dessa obsessão quase natural pela perfeição. Porque o prazer deve estar no desejo da produção e não na obtenção do resultado. O que qualquer um (incluo-me) acha do que produzo, importa menos que a total satisfação de estar produzindo.

Mas, paralelo a mim, vem você tentando a mesma perfeição, tapada e inalcançável. Pensando que o êxito, na vida, está no êxito das coisas. Nas linhas retas e pele lisa, sem cicatrizes. Esquecendo que toda falha tem sua graça tragicômica. E uma carga de modéstia impagável.

E você pensa que é sua impecabilidade que te aproxima dos outros e que os conservam por perto. Mas não vê que é justamente ela que afasta. Que é ela quem despeja uma avenida de ovos de distância. Porque enquanto você melhor que todos nós, que temos a oferecer?

E, veja, todos nós dormimos sem escovar os dentes, de vez em quando. Todos nós peidamos no elevador, às vezes. E nosso cocô fede! Já falamos coisas sem pensar e não fomos bons cidadãos em algum momento. Mas é por isso que nos aceitamos iguais. Perfeitamente iguais!

sábado, 27 de agosto de 2011

O Banho


A água quente atingiu o peito do pé que, de tão gelado, confundiu-se em temperatura, demorando a denunciar que as gotas já queimavam a pele. O banho quente era tudo o que precisava e as lágrimas, insustentáveis de prazer, se misturavam, difusas, às gotas ferventes.

Tinha virado o segundo mês que ela não sentia o calor do vapor aquecendo o corpo branco e (sujo, embora) meio desbotado. E aquele banho tinha um preço. Um preço alto que conhecia e tinha total indiferença sobre. Porque agora, e desde sempre, os fins justificavam os meios.

Os poros do corpo, retraídos e empoeirados, se abriam aos poucos, um a um, despertando de um sono hibernal. Essa era sua purificação. E quase feria a pele a água removendo a sujeira espessa dos últimos meses. Monóxido de carbono das ruas. Carros, cigarros e idiotas em geral.

Sentia-se nobre outra vez. Dotada de uma realeza tão única que extravasava os limites daquele cubículo, revestido de louça barata, e atingia o cômodo adendo. Onde repousava impaciente um gordo qualquer, que devia ter nome, embora isso não importasse uma vírgula para ela.

“Me traz aí o sabonete e o xampu, seu inútil” – Abandonou o papel de menina indefesa e reassumiu sua posição real à plebe. Lavava, junto com as tranqueiras que o corpo absorvera todo esse tempo, a baixa autoestima que a impregnava e a desconcertava socialmente.

Sem titubear, o gordo trouxe os produtos e os ofereceu do lado de fora do box, embaçado pelo vapor. “Deixa aí na pia e some daqui seu imprestável, não estou pronta ainda.” – Era uma posição confortável essa que revivia, depois de tanto tempo submetida a caprichos alheios.

Rita conhecia seus limites e, também, as taras mais autênticas do homem comum. O gordo virou as costas rapidamente e se ocupou da televisão, no quarto. Ela abriu o box e pegou os produtos na pia, encharcando o chão. Despejou então, todo o conteúdo do pequeno frasco.

Sentiu o cheiro demasiadamente forte do eucalipto, descendo pelo cabelo e preenchendo seu nariz. Agora que, purificada, ousou nausear-se. Depois lembrou ser esse o aroma mais limpo que sentira nos últimos meses. Reservou então, sua arrogância genética para mais tarde.

Ensaboou-se por muito tempo. Enquanto isso, a pele ia se tornando mais branca (agora limpa e perfumada). Deslizava o sabonete pelo corpo, novo em folha, se acariciando. O calor do seu corpo era o calor do chuveiro agora. Termo-híbrido. Rita passaria toda a vida ali, se pudesse.

Mas, simplesmente, não podia. Desligou o chuveiro e caminhou pela névoa morna e úmida que dominava o banheiro, transpirando a louça. Secou-se delicadamente com o par de toalhas ásperas e brancas, que arranhavam seu corpo finalmente reciclado, deixando suaves vergões.

Enquanto o denso vapor desaparecia pelas frestas frias da porta e da janela, Rita encarava o que parecia seu próprio reflexo no espelho. Turvo. Na medida em que os traços iam se tornando mais concretos, Rita ia se reconhecendo, do lado de lá do vidro. E se reencontrando.

Soltou um largo sorriso ao reflexo. Foi correspondida. Era bom, enfim, ver um rosto familiar, depois de tanto tempo sozinha. E aquele rosto refletido, sorrindo para ela, era de quem gostava de se lembrar. Voltou no tempo e se viu menina, correndo pelos bosques do palácio.

Os grandes almoços em família, os ostensivos natais na fazenda. Nunca mais. Tentou dispersar-se em pensamentos mais concretos, o banheiro e o gordo ao lado. Não conseguia. Eram ainda presentes, aquelas memórias irrecuperáveis. Reflexos de uma vida mais simples.

Agora que Rita emancipara-se, tinha os compromissos de uma mulher adulta. A total responsabilidade pelos próprios passos e o que viesse adiante. Teve o passado certo e projetado, mas, logo ele pareceu menos deslumbrante que a beleza incerta do mundo de fora.

O resultado dessa inconsequente imprudência era evidente naquele banheiro, se deu conta enquanto secava cuidadosamente o longo cabelo dourado, enfim livre dos nós. Algo não saiu como esperava no seu plano de libertação. Ou talvez não estivesse preparada ainda. Talvez.

Mesmo assim, enrolou-se no robe branco e foi até a porta. “Psiu” – para despertar o gordo. Trocaram falsos sorrisos de cumplicidade e ela foi em sua direção, com seus doze anos de idade. Em instantes estará novamente suja. E corrompida. Precisando de bom um banho.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Um Problema Nominal



- Nome?

- Patrício!

- Nome completo, por favor!

- Patrício Fezes...

- Pois não, senhor Patrício, em que posso ajudar?

- Preciso trocar de nome.

- Entendo, e porque quer trocar de nome?

- Não te parece óbvio?

- Talvez senhor, mas não tenho liberdade de presumir nada, na minha posição.

- Não suporto mais ser gozado nas ruas, em todo lugar.

- Mas senhor, você tem certeza disso? Mudar de nome é irreversível, não se pode fazer duas vezes!

- Acha que é um capricho? Que só quero “mudar” de nome? Eu quero é me livrar desse carma que está preso à minha família por gerações!

- Entendo... Mas não te preocupa abrir mão assim das suas origens, sua personalidade?

- Minha senhora, eu preciso mudar de nome, pode ser? Porque tantas perguntas?

- É meu dever, senhor, como tabeliã...

- Não é fácil a vida que levo, lidando com todo tipo de provocação! Ainda acabo fazendo uma besteira!

- Mas porque isso agora? Porque não mudou de nome antes de chegar a esse ponto?

- Venho tentando desde que tenho dezoito anos.

- O que deu errado?

- Quando completei dezoito, meu pai ainda era vivo. E um defensor mordaz do nosso nome. Tive receio de decepcioná-lo.

- E depois?

- Depois eu me casei. O tabelião julgou improcedente minha queixa e disse que mexer no meu nome só atrasaria as papeladas do casamento.

- Havia certa razão no argumento dele, devo dizer.

- Aí, finalmente, quando vi a certidão de nascimento do meu filho, entrei em parafusos...

- Então o senhor já é pai? E como é o nome dele?

- Como assim?

- Como se chama a criança?

- Patrício Fezes, ora...

- Ah, deram o mesmo nome...

- Sim, Patrício Fezes Neto!

- Mas isso não poderia ser evitado?

- Coisas da minha mulher. Aprontou essa maldita surpresa para mim e disse que meu amor pela criança superaria o trauma!

- Claro...

- Não dá mais para suportar isso, preciso me livrar dessa sina imediatamente!

- E seu filho?

- Volto aqui semana que vem!

- Ok, senhor Fezes, vamos ver o que podemos fazer.

- Gostei de você. Finalmente alguém capaz de entender minha aflição!

- Claro, senhor, entendo perfeitamente, já estive em situações muito parecidas com a sua! Agora preciso que assine essa papelada e que me diga seu novo nome, para a certidão.

- João!

 - O que tem?

- Meu novo nome: João!

- Mas e o Fezes?

- O que tem?

- Ãhn... Nada não! Eu pensei que...

- Não sou capaz de aguentar nem mais um “Paty” na minha direção!

- Claro, claro! Bem, aqui está! Considere-se, de agora em diante, oficialmente João Fezes.

- Muito obrigado! Que satisfação! Esse é o dia mais feliz da minha vida!

- Por nada,estou apenas cumprindo com o meu dever!

- Posso perguntar o seu nome?

- Pois não, é Maria... Maria Vagina!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Presidiológioco


Amanheceu. Esse sol lá de fora que não me esquenta nem as palmas. Melhor ir para o quintal. Não é grande coisa mas, ao menos me permite esticar os membros um pouco. Acho que vou dar uma cagada. É isso, uma bela e demorada cagada do alto de alguma pedra. Nào, melhor esperar o pessoal chegar. Eles sempre riem das minhas cagadas. Me diverte, a estupidez deles.

Eu fico perambulando por esse pequeno espaço, dissimulando um exibicionismo que me encheu a paciência. E já não tenho mais nenhuma vocação para o entretenimento. Aliás, vocação para porra nenhuma. É cabana, quintal, quintal, cabana. Puta tédio dos infernos! Principalmente depois que vetaram as visitas da Francisca. Naquela época eu me divertia.

Trepava nela como um louco. Montava na megera e babava, e gritava, e lhe dava uns sopapos. Ela gostava disso. Gostava da minha virilidade. Devolvia alguns socos no ar, outros na minha cara, mas, no fim da contas, gostava dos encontros que tínhamos. Era quando eu dispunha da melhor plateia. Fãs, arrisco dizer. Vibravam e nos atiravam pipocas, até que caíssemos de lado.

Os anos dourados! Mas a vadia deu de dizer que eu estava a matando aos poucos e então trataram de reduzir nossos encontros até que, finalmente, proibiram-na de vez de entrar na minha cela. "Pior para ela", foi o que pensei no início. Vagabundas se tem aos montes por aí. Mas sabe que depois de um tempo descobri que só existe uma vagabunda para cada cafajeste.

Aí a situação ficou insustentável. Tédio, remorso, raiva e uma carência tão forte quanto ridícula. Não restava em mim mais nenhum resquício daquela virilidade e auto-confiança do tempo da Francisca. Minha vida sem minha vagabunda era só uma vida vagabunda. Maldita hora para conhecer o amor. Eu já estava perdido para o mundo e corrompido nos sentimentos.

Mas ficava lá, dependurado no galho mais alto do meu cercado, olhando para minha selva, do outro lado do muro. A selva que um dia foi minha e que poderia ter sido minha e da Francisca, se tivéssemos feito as coisas direito. Direito o suficiente para não termos sido capturados, pelo menos. Acabaram me dizendo que ela tinha sido libertada. Nem se despediu de mim, ingrata!

Com certeza já estava trepando com algum almofada da sociedade, dando-se ao luxo de se considerar um deles. E eu nessa vida de merda. Servindo de atração para crianças e velhos desocupados. Vontade de voltar para as ruas e para o crime. Tomar a Francisca das mãos bem lavadas do idiota que estiver cuidando dela para mim e corrompê-la novamente.

Aliás, aí está minha única motivação nessa vida: Francisca! Bom, por um lado. Me dá esperança ao abrir os olhos, de manhã. Por outro lado, uma bosta de motivação. Jamais conseguirei sair daqui sendo uma das atrações. Por isso atiro meus excrementos na tela da jaula, para tentar satisfazer e dissipar meus espectadores. E ter um pouco de privacidade solitária, nesse fim de mundo.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O Último Primeiro Beijo

                                                         Arte: Steven Thomaz VanOeveren


Vinham de estações diferentes e não se conheciam. Ele da Primavera, ela da General Bodegas. Viviam seus próprios devaneios, todos os dias, a sessenta metros de distância sem, sequer, cruzar olhares. Não se buscavam no mundo, mas, naquele dia trocariam o último primeiro beijo.

Mathias tinha uma carreira promissora e extasiava-se com o ofício da lei. Desde que aprovado na Ordem, passava mais da metade do dia no escritório onde estagiava e, aos poucos vinha sendo reconhecido. Sentia prazer e sabia que, algum dia, se tornaria um dos associados.

Glória deixara a família aristocrática do interior do centro-oeste para conquistar o mundo sozinha, na capital do mundo. Estudava arte e frequentava festas vanguardistas. Tornara-se respeitada no universo artistico e diziam que, por personalidade, seria a próxima Frida Khalo.

Ambos talentosos e prodígios. Cada um em sua área. Como um par de planetas perfeitamente diferentes rodopiando na mesma órbita. Era desproposital que, voluntariamente, viessem a tocar os lábios com tanta fúria e voluptuosidade. Mas lhes digo, aconteceu e eu vi!

Aqueles dois tinham pressa na vida porque tinham paixão por ela. E moviam-se por essa paixão. Que era o trabalho, mas que, na verdade, não era trabalho, porque aquilo não lhes dava trabalho algum, só prazer. E tinham ambição. E era só o que buscavam, naquele momento.

Àquela época, passeavam pelos vinte anos. Ela quase lá, ele pouco mais. Vão dizer que, pelas adversidades e coincidências, se aproximariam como se ela de "Mutantes, Caetano e Rimbaut", e ele de "novela e futebol de botão com seu avô". Mas, sabemos, as histórias são singulares.

O beijo se deu perto das seis da tarde, eu estava lá, no meio da histeria coletiva. E durou até que nascesse o sol na manhã seguinte. Que espetáculo! Duraria a vida inteira, se não fossem desgrudados abruptamente pelos paramédicos e bombeiros. Tão insensíveis...

Mas antes disso, pouco antes das seis, ele adentrou ao vagão, na Primavera. Esbarrou em mim e, cordialmente, se desculpou. Mais à frente, duas estações, ela se juntou a nós, na General Bodegas. Uma faísca mais forte se propagou nos trilhos bem naquela hora, posso garantir!

A paixão! A inexplicabilidade concreta da paixão. Foi tudo tão rápido e, ao mesmo tempo, tão genuíno que mal consigo explicar. Mas tento: O beijo do século! Nada mais que o beijo do século! A comoção unânime, as explosões, os gritos, a luz una, sobre o casal desconhecido.

Eu já sabia de seus destinos e, por isso lá, naquele trem lotado. Preparei tudo com a minúncia da paixão que tenho pelo meu ofício mas, que desfecho supreendente, devo dizer! Um segundo antes da suave curva para a estação Boa Vista, estalei os dedos. O descarrilamento.

Os trens se atropelaram provocando uma fusão de metal e plástico. Glória permaneceu no meio do vagão, atordoada. Uma barra daquilo que costumava ser o trilho, cortou a fuselagem do vagão e atravessou-a pelo tórax, empurrando-a e diminuindo a distância universal entre eles.

Os trens continuavam a se invadir, retorcendo o metal e comprimindo os passageiros em montanhas humanas. Sufocantes, mas seguras. Glória seguia flutuando em nossa direção, inconsciente, mas como se mirasse Mathias, agora a menos de vinte metros de distância.

Antes de se grudarem no beijo apaixonado (e nefasto, agora posso dizer), ele olhou na minha direção e, enquanto se expremia na parede do último vagão aterrorizado, franziu a testa, me reconhecendo. Aí deixou o corpo, num forte colapso cardíaco. O beijo veio no instante a seguir.

A barra de ferro encontrou Mathias cedendo à gravidade e, antes que o deixasse tocar o solo, pescou-o na mesma altura de Glória. Os lábios então se tocaram. Enquanto isso, a violëncia do impacto tratava de expulsar os corpos do vagão, deixando-os suspensos no túnel escuro.

Por um breve momento decepcionei-me com as labaredas e as faíscas que não chegavam lá fora. Mas em seguida subiram as luzes de emergência, vermelhas e quentes, rodeando aqueles corpos, funestamente atracados, no tom que a ocasião merecia. A paixão. A Minha e a deles.

Não tardei a busca-los, desorientados caminhando pelo túnel, já fora dos corpos. Tomei-os pelas mãos e os conduzi desconhecidos, cada um a seu destino.

domingo, 31 de julho de 2011

Notas do Último Concerto


Empurrou a pesada cortina vermelha e atravessou o palco escuro. Caminhando lentamente e tateando o ar, alcançando o microfone. Pigarreou com certa sutileza e um par de luzes anunciou sua presença: “Boa noite senhoras e senhores! E bem-vindos à minha despedida”.

Uns poucos (talvez seis ou sete) pares de palmas se dissiparam no ar, em claro sinal de consentimento melancólico. “Façamos dessa noite a mais marcante de todas as noites, que seja minha e, principalmente, de vocês. Porque um dia seus filhos perguntarão sobre ela”.

Os violinos soaram os primeiros acordes e puxaram as batidas da bateria. Clarinetes e flautas transversais sopraram agudas, antecedendo o violão. O cravo e o acordeom surgiram para acompanhar o tom grave e entristecido do despedinte, que entoou os clássicos de todos ali.

Com os olhos marejados, fitou o horizonte negro à sua frente e, sem interromper a melodia, solicitou que a plateia se levantasse e dançasse com ele aquela última dança. Logo se ouviu o atrito discreto dos poucos pés presentes, no assoalho frio daquele salão gigantesco e oco.

O vazio da pista ecoava furtivamente as fungadas profundas do choro irreparável na plateia convalescida. A dança era bela, mas sofrível como a cadência de um funeral. Alguns ombros se tocaram e os pares se trocaram. Porque não havia tabu, naquela que era a última das noites.

O concerto se estendeu desapressado. Porque quando acabasse, ninguém mais teria compromisso. Não tinham urgência em sair porque também não teriam aonde ir. As músicas se reiniciaram, fora de ordem, pelo menos duas vezes, dissimulando um novo começo.

E mesmo dissimulado, não houve desertor naquela noite. Os mais fiéis adeptos das canções que seriam esquecidas para sempre, dali em diante. Cada nota era a última nota. Cada acorde, o derradeiro. Definitivamente. Respiraram fundo, todos, e cessaram o choro, admitindo o fim.

Um longo silêncio se instaurou e alguém começou a mesma discreta salva de palmas que abriu o evento. Por algum tempo ela resistiu até que, contrariando as expectativas, o som de dez bilhões de palmas ensurdeceu o salão. Como se o mundo, voyeurista, deixasse se reconquistar.

Alguns sucumbiram ao choro novamente, outros gargalharam e pularam de alegria. “O recomeço! O recomeço!”. Mas ele já não estava lá. O palco novamente escuro, estava apenas vazio. As palmas se interromperam num súbito e, na plateia, também já não havia ninguém.

A vida, logo, retomou seu rumo. Sem danos, outros objetivos. O inconfundível poder de adaptação. E muito tempo depois, quando o primeiro filho perguntou sobre ele, e, sobre a inesquecível e derradeira noite, os pais, tapados, não lembravam, e não souberam responder.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Descontrolado



Começa pelas mãos. Antes de me dominar o corpo todo, é nas mãos que surge, poderosa e irrefutável. É no toque suave, da ponta dos dedos, que sinto a troca sincera e pura entre a temperatura do recipiente e as listras tênues da minha impressão digital. Sinto o arrepio.

Percorre o braço e atinge a nuca. Cada pelo. Proporcionando um prazer delicadamente orgásmico e, então, alcança meus olhos. Não! São eles que te alcançam. Sinuosa, excitante, vigorosa e provocante. As papilas umedecem. Os músculos enrijecem. Tenho você nas mãos.

E nessa torpe noção de controle, no domínio falso que exerço sobre você, te levo à boca, num beijo caloroso e envolvente. Somos praticamente um só corpo. Fundidos. Arremesso seu conteúdo depravado para dentro de mim. Todo meu bom senso se deprava. Sou o que você é.

Libidinoso, impuro, livre. O anti-puritano! Baixo a guarda do moralismo. Tiro a roupa. Aquela que a sociedade veste, não o pano metade por cento algodão que me aquece. Tiro a roupa moral dos costumes fajutos que os pais dos pais, dos pais dos meus pais embutiram em mim.

Eu danço. Enquanto você desliza, esôfago abaixo, danço como se gostasse disso. Corre no meu sistema digestivo e doma meu fígado. Se espalha por minha corrente sanguínea. Perco o controle. Sorrio. Quem disse que intenciono o controle? Assuma você! Já abri mão de mim.

Metade do meu corpo sou eu. A outra metade é, exclusivamente, você. Equilíbrio volátil. Quero mais de você que de mim. Desiquilibrado. E cada vez mais, menos de mim. E mais de você. Para o meu fôlego. O meu fígado. A minha incansável disposição. Adorável tendência.

Os músculos então relaxam. Os olhos, a mente, a vida. Apenas relaxo. Porque agora sou, definitivamente, você. Abro passagem para o resgate daquele eu que a moral jamais deixaria vir à tona. Meu eu essencial. Porém, insisto em dizer, meu verdadeiro eu, é mais você que eu.

Aliás, por isso você em mim. Coordenando, libertando. Assumindo o controle. Fique à vontade, sinta-se em casa! É bom alguma liderança, pra variar. Não me gerencio das oito às seis. Delego, displicente, à rotina. Não me gerencio após, mas respeito cego, sua infalível administração.

Não por muito tempo. Você dilui. Evapora. Dissimula essa famigerada liberdade que, num piscar de olhos, se converte em dor de cabeça e remorso. Quase abro mão, mais uma vez, a cada dia seguinte. Mas a satisfação, da insatisfação turva, alimenta meu fascínio físico.

Não por menos, quando a dor da cabeça se dissipa, o dia se esvai e os inconvenientes pesam, você toma novamente seu lugar. Minhas mãos anseiam, os pelos encrespam, o boca saliva e os músculos enrijecem. Me acalmo, finalmente, com você bem dentro de mim. Perco o controle.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Cinquenta e Sete anos de Amor e o Medo de Sempre


 Eu deveria tomar minhas pílulas, mas prefiro escondê-las sob o travesseiro. E deveria ser mais cuidadoso com meu esconderijo, ela sempre acaba as achando e enfiando na minha goela enquanto durmo. “Resmungando e roncado”, ela diz. No fundo, sei que só quer cuidar de mim.

É uma velha tremendamente chata, mas o que se pode fazer? Gosta de mim. E hipocrisia à parte, gosto muito da minha velha. Não! Amo ela, a única mulher que existe. Mas chegar a essa idade juntos, nas nossas condições, tira qualquer um do sério. Quaisquer dois, nesse caso.

Pela manhã ela me obriga a caminhar. Minhas pernas doem e eu tenho uma preguiça desgraçada de sair por aí. E o calor do sol matutino já não é mais forte que as rajadas frias de vento na minha cabeça desnuda. E não importa a estação. Mesmo assim, lá pelas seis, saímos.

“Endireita esse tronco”; “Levanta essas pernas e pare de se rastejar como um lagarto velho”; “O doutor disse que tem que se exercitar mais”. “Se não tivesse passado a vida sentado àquela televisão, fazendo nada, hoje gozaria de um pouco mais de saúde”. “Você me esgota, sabia?”.

Ela diz todas essas atrocidades porque me quer bem. E vivo, ao lado dela. Não chega a me magoar, apenas irrita. Mas também, sou um velho rabugento e me irrito fácil. Às vezes, aliás, entorto as costas, arrasto os pés e dissimulo uma tosse carregada, apenas para tirá-la do sério.

Uma vez por semana, religiosamente, ela me deixa comer uma cocada na praça. Eu digo que minha diabetes está mandando beijos de agradecimento e ela ri. Adoro cocadas. Nessas horas ela sai para fumar. Longe de mim. Tive um enfisema e perdi um pulmão há vinte e dois anos.

Por isso, aliás, ela fuma longe de mim. Fumamos juntos por muitos anos, fui obrigado a abandonar, ela não. É uma troca justa, a cocada pelo cigarro. Aí, nos observamos à distância, cúmplices dos nossos vícios deliciosamente proibidos. Eu digo que ela fede à fumaça.

E é verdade! Mas não me incomoda. Toda vez que ela tosse profundamente, quase sem ar, eu grito: “Isso, fuma!” – Minhas maneiras sutis de demonstrar que ver ela mal, também não me faz bem. Nunca fui bom em demonstrar sentimentos. Por sorte, ela sempre me compreendeu.

Quando voltamos dessas caminhadas e ela está insuportável, repassando todas as orientações do fisioterapeuta, eu desvio a atenção dizendo qualquer besteira sobre seu cabelo. Ela tem um cuidado especial com o cabelo, desde que a conheci, cinquenta e sete anos atrás. Tão vaidosa.

Cinquenta e sete anos! Toda uma vida. É de noite que me dou conta. Passamos o dia inteiro nos provocando. Controlando cada gesto e nos ofendendo. Somos mesmo um par de chatos. Mas o que teria sido de nós por todos esses anos? E o que será do outro quando um se for?

É que esse amor é tão cúmplice e tão assustador que, quando nos deitamos e nos abraçamos, rezamos em silêncio, e com a alma, pela saúde do outro. Porque um amor como o nosso, covarde como todos, não é capaz de suportar o sofrimento alheio. Então, que seja eu primeiro.