sábado, 27 de agosto de 2011

O Banho


A água quente atingiu o peito do pé que, de tão gelado, confundiu-se em temperatura, demorando a denunciar que as gotas já queimavam a pele. O banho quente era tudo o que precisava e as lágrimas, insustentáveis de prazer, se misturavam, difusas, às gotas ferventes.

Tinha virado o segundo mês que ela não sentia o calor do vapor aquecendo o corpo branco e (sujo, embora) meio desbotado. E aquele banho tinha um preço. Um preço alto que conhecia e tinha total indiferença sobre. Porque agora, e desde sempre, os fins justificavam os meios.

Os poros do corpo, retraídos e empoeirados, se abriam aos poucos, um a um, despertando de um sono hibernal. Essa era sua purificação. E quase feria a pele a água removendo a sujeira espessa dos últimos meses. Monóxido de carbono das ruas. Carros, cigarros e idiotas em geral.

Sentia-se nobre outra vez. Dotada de uma realeza tão única que extravasava os limites daquele cubículo, revestido de louça barata, e atingia o cômodo adendo. Onde repousava impaciente um gordo qualquer, que devia ter nome, embora isso não importasse uma vírgula para ela.

“Me traz aí o sabonete e o xampu, seu inútil” – Abandonou o papel de menina indefesa e reassumiu sua posição real à plebe. Lavava, junto com as tranqueiras que o corpo absorvera todo esse tempo, a baixa autoestima que a impregnava e a desconcertava socialmente.

Sem titubear, o gordo trouxe os produtos e os ofereceu do lado de fora do box, embaçado pelo vapor. “Deixa aí na pia e some daqui seu imprestável, não estou pronta ainda.” – Era uma posição confortável essa que revivia, depois de tanto tempo submetida a caprichos alheios.

Rita conhecia seus limites e, também, as taras mais autênticas do homem comum. O gordo virou as costas rapidamente e se ocupou da televisão, no quarto. Ela abriu o box e pegou os produtos na pia, encharcando o chão. Despejou então, todo o conteúdo do pequeno frasco.

Sentiu o cheiro demasiadamente forte do eucalipto, descendo pelo cabelo e preenchendo seu nariz. Agora que, purificada, ousou nausear-se. Depois lembrou ser esse o aroma mais limpo que sentira nos últimos meses. Reservou então, sua arrogância genética para mais tarde.

Ensaboou-se por muito tempo. Enquanto isso, a pele ia se tornando mais branca (agora limpa e perfumada). Deslizava o sabonete pelo corpo, novo em folha, se acariciando. O calor do seu corpo era o calor do chuveiro agora. Termo-híbrido. Rita passaria toda a vida ali, se pudesse.

Mas, simplesmente, não podia. Desligou o chuveiro e caminhou pela névoa morna e úmida que dominava o banheiro, transpirando a louça. Secou-se delicadamente com o par de toalhas ásperas e brancas, que arranhavam seu corpo finalmente reciclado, deixando suaves vergões.

Enquanto o denso vapor desaparecia pelas frestas frias da porta e da janela, Rita encarava o que parecia seu próprio reflexo no espelho. Turvo. Na medida em que os traços iam se tornando mais concretos, Rita ia se reconhecendo, do lado de lá do vidro. E se reencontrando.

Soltou um largo sorriso ao reflexo. Foi correspondida. Era bom, enfim, ver um rosto familiar, depois de tanto tempo sozinha. E aquele rosto refletido, sorrindo para ela, era de quem gostava de se lembrar. Voltou no tempo e se viu menina, correndo pelos bosques do palácio.

Os grandes almoços em família, os ostensivos natais na fazenda. Nunca mais. Tentou dispersar-se em pensamentos mais concretos, o banheiro e o gordo ao lado. Não conseguia. Eram ainda presentes, aquelas memórias irrecuperáveis. Reflexos de uma vida mais simples.

Agora que Rita emancipara-se, tinha os compromissos de uma mulher adulta. A total responsabilidade pelos próprios passos e o que viesse adiante. Teve o passado certo e projetado, mas, logo ele pareceu menos deslumbrante que a beleza incerta do mundo de fora.

O resultado dessa inconsequente imprudência era evidente naquele banheiro, se deu conta enquanto secava cuidadosamente o longo cabelo dourado, enfim livre dos nós. Algo não saiu como esperava no seu plano de libertação. Ou talvez não estivesse preparada ainda. Talvez.

Mesmo assim, enrolou-se no robe branco e foi até a porta. “Psiu” – para despertar o gordo. Trocaram falsos sorrisos de cumplicidade e ela foi em sua direção, com seus doze anos de idade. Em instantes estará novamente suja. E corrompida. Precisando de bom um banho.

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