quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O Negócio da Coisificação


Quando as palavras vão perdendo seus significados. As coisas quando perdem seus nomes e viram: Coisas! Objeto inominado designado pelo destino da ponta do dedo, pelo ruído gutural da garganta ou simplesmente renomeado “coisa”.

E todas as suas variações: Coisa negócio; coisa bagulho; coisa breguete; lance, fita; isso e aquilo. Troço! Na falta do nome verdadeiro a cada um dos objetos, uma diversidade infinita de falta de título. E título nome próprio, não mero rótulo.

“Aquela coisa, pega para mim?” – E nunca, ninguém soube que coisa era aquela. Foi pega, afinal. Entregue e assunto encerrado, mas, por falta de especificação, acabou coisa qualquer. O homem se comunica e a língua dinamiza. Necessidade moderna, capricho humano.

Já li a respeito de aprendermos não sei quantas mil palavras novas todos os anos (ok, talvez não sejam tantas), mas que diabos acontecem com as antigas? Devem ser substituídas... Há essa escolha infeliz pela coisificação, um jeitinho preguiçoso de simplificar o discurso.

Mas não sou, sem dúvida, do tipo conservador ou o tirano da língua, logo eu, que invento palavras! Mas há certa necessidade desse dinamismo na comunicação. E se expressar é tão magnífico. Às vezes peco pela timidez, mesmo munido das palavras certas.

Da mesma forma, nunca achei que fosse dizer isso, mas, se preso em um diálogo enfadonho algum dia, prefiro mil vezes a prolixidade às adivinhações aleatórias das coisas inominadas. Melhor uma história pausada que não acaba a uma pausada que não evolui!

Na verdade prefiro o bom discurso, limpo, claro, diversificado. Se pudesse, escolhia esse diálogo a ter que enfrentar esforços de compreensão de qualquer natureza, mas, como não escolho e, como bom humano pecador da coisificação, tolero quando é de tolerar.

E como simples hipócrita, reconheço algum apreço (pequeno) nas coisas coisificadas, quando cabe. Certa vez fui o próprio “Coiso” (como um nome mesmo, ou uma alcunha, pelo menos) e simpatizava! Tinha carinho pelo título desmerecido. Sinto falta inclusive, às vezes...

É uma lingua difícil essa nossa, posso admitir. Mas (me perdoem os ufanistas) pelo menos não é tupi. Ou russo (generalizando o ataque ao verbo)! Portanto, se pode ser pior, não está tão ruim assim. Facilite o discurso. Leia, dicionarize-se, descoisifique o vocabulário.

Que coisa, meu!

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Cromossomo Vinte e Um


“Volte aqui imediatamente e recolha essa bagunça, mocinha!” – Ela não se entrega, como de praxe, às intimidações do padrasto. Mostra a língua e sai forçando os passos, sem velocidade. Sabe que ele logo virá atrás e tentará mais uma vez ensinar-lhe a lição dos bons modos.

Recebe o esperado pontapé na bunda. Nádega esquerda. Bico do pé. Sempre tão previsível. Cai de joelhos e engatinha em fuga, forjando o pânico que a autoridade dele espera, fingindo a dor que já nem sente. Fica em silêncio, encenando aquela baboseira tirana, contando o tempo.

“Não interessa quem jogou a tinta no tapete. Aqui você é quem arruma! Não é a mais velha? Deveria ser responsável pelos pequenos.” – E nina no colo o guri autor da lambança que, assustado com os berros e confuso com a cena, só não chora pelo amparo caloroso do pai.

“Por isso ninguém te ama, sua ingrata! Por isso só te restou sua madrasta e eu! Nem seus irmãos são seus! – E é verdade. Do pai nem se lembra e da mãe lembra que, anos atrás, tinha tanto sono que nem saía da cama. Perdeu tanto peso que um dia desapareceu, literalmente.

E embora agora, reinserida mais uma vez no modelo tradicional de família (pai, mãe, irmãos), não pertence, ainda, à sua. E como gostava de dizer isso, aquele sádico maldito. Tudo bem, porque esse bastardo provisório logo partirá, de alguma forma, e será substituído.

Curioso, mas as pessoas ao seu redor simplesmente se vão. Morrem ou partem, e quem fica casa-se de novo. Sina. Já perdeu a conta de quantos pais e mães teve nesse rodízio maluco. Alguns irmãos, já adultos, construíram até a própria família, em algum lugar mais feliz.

Pensou nisso até o desfecho falido da lição, mais dois tapas no rosto, o sermão inútil e a expressão de ódio mútua. Sai em direção ao quintal e ancora-se na goiabeira plantada em homenagem ao nascimento de Lucinha, trinta e seis anos atrás. É seguro na goiabeira da mãe.

Não por trazer memórias de um passado mais alegre, não sente falta de passado algum. Lucinha vive apenas os prazeres do despertar e entrega todas as suas frustrações diárias aos sonhos, na hora de dormir. No dia seguinte é mulher renovada e livre de culpas e pecados.

E dos pequenos prazeres, gosta de brincar no sol, com suas bonecas, perto da goiabeira. Às vezes prefere a paquera eletrônica com os jovens galãs da TV. A fascina a programação juvenil. Passa o dia entre criança inocente e adolescente hormonal. Os dias bons.

Não gosta de como é tratada fatidicamente pelos padrastos e madrastas. Se não com arrogância e violência, apenas indiferença. Disfarça as próprias limitações e ignora o desprezo humano à sua existência. Do contrário, seria um estorvo. Apenas ser quem é. Os dias ruins.

“Menina, sua maldita, venha já aqui e acode seu pai! O que você pôs nesse frango sua assassina?” – E lá se vai mais um padrasto. Entende que terá de proteger o rosto das primeiras pancadas, as mais agressivas. E não sabe por que, não tinha nada de errado com o frango...

O dia seguinte e todo o episódio do frango foi parar nos confins do subconsciente. Lucinha, feliz, penteia e entretém suas amigas sintéticas. É só as que tem. Em breve um novo homem para chamar de pai. Outro ser qualquer para chamar-lhe a atenção, impaciente e bruto.

E leva, leve, dia por dia, um de cada vez, a difícil sina de não caber em coração nenhum. Descobrindo a felicidade das pequenezas, à sombra da goiabeira. Protegida inconscientemente pela sólida carapaça de um cromossomo vinte e um extra.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Meu Amor Pela Política


Estou em ponto morto no cruzamento de duas ruas tradicionalmente movimentadas. É sábado e o trânsito por aqui é sobrenatural. Não é certo para minha pequena cidade semi-metropolitana, tantos carros na rua com o mesmo ignóbil destino. Não é certo para mim.

O plano, aliás, não era estar aqui. E estaria perfeitamente sob controle se eu não fosse de deixar tudo para a última hora. Mas, desleixado que sou, mereço o trânsito sem fim. E sem origem também. De onde estou, o mar de carros é mar aberto e nós todos boiamos.

Nós, somos eu e os outros mil carros, cada um com sua rota traçada, poucos com a necessidade irrefutável de estarem ali, todos atados à mesma fila asfáltica sob o sol do meio dia. Eu até poderia não estar, mas, tarde demais. Alguns cartazes e bandeiras políticas, divago:

É período eleitoral, vejam só. Todos nós, do trânsito e do mundo, democratas e republicanos, cristãos e muçulmanos, temos o ódio unânime e sacramentado à campanha eleitoral. E, fato, não somos de escolher políticos por bandeiras ou santinhos. Não somos, aliás, de escolhê-los.

Dois problemas crassos, mas a campanha é algo que provoca a ira, durante essa fanfarra eleitoral. Por aqui um carro por minuto e esse sol. Partidários e panfleteiros descansam refrescados, nos bancos de Nhô Gomes. Eu não: Ponto morto, primeira marcha, ponto morto.

Mas qual o propósito da corrida à cadeira do congresso, do senado ou da câmara, afinal? Não é político. Aliás, como levar a sério um sistema político que não admite o mínimo de restrições ideológicas? Isso não é democracia é várzea! Celebridades falidas no congresso é várzea!

Não precisa ser, é evidente, se o interesse for social e não fiscal. Todo brasileiro, celebridade ou anônimo, tem direito a aspirações políticas. Pois que seja, então, obrigação, tornar-se competente e profissional. Mais que pelo dinheiro apenas. Como em qualquer outra profissão.

E profissionalização da política! Aulas de história política: Maquiavel, Marx, Hobbes, Rousseau; economia e gestão. Governo não é renda extra, afinal não é pouca a renda! E matemática simples: Não dá para ser bom em duas coisas ao mesmo tempo. Ou se dedica ou se desiste.

Isso considerando o sistema que vivemos, de administração popular, de governantes eleitos por voto massivo. O que já não parece certo, essa brecha em conceder o controle e o poder a poucos e aceitar, vendados, que no fim nós temos alguma força popular.

O golpe veio, num certo 68, e levamos, com toda nossa força popular, trinta anos para derrubá-lo! Poucos no controle é sempre excesso de poder (megalomania), e vai ser em qualquer sistema. Inclusive nessa nossa “pouquigarquia” disfarçada de democracia.

Eu devia ter estudado, nas minhas sutis pré-disposições punk da adolescência, a filosofia anarquista... Simpatizo com ela. Utopia por utopia, ela soa tão mais modesta. Uma nova visão de poder, mais diluída. Todo mundo igualmente responsável, menos responsabilidades.

E nenhuma obrigação eleitoral! Direito a voto... Abro mão, em nome de todos aqueles que lutaram pela obrigação do voto, de colocar alguém que tomará decisões em benefício próprio e partidário. Não, não abro mão, compactuo com o sistema, sou fraco e não sou mártir.

Só que não cedo à tentação circense de acatar as campanhas. Não voto em bandeiras ou santinhos. Não voto em comício ou televisão. Nem voto em intrigas conspiratórias, em podres alheios. Voto apenas no sistema, na esperança que um dia Nulo se eleja e, enfim, repensemos.

Toda essa pataquada digna de Odorico Paraguaçu, toda essa algazarra de vitória, como se tratasse disso: Vitória de um ou outro partido. Como se escolas de samba ou times de futebol. Como se não fôssemos todos brasileiros e tivéssemos interesses sociais coletivos.

Devo dizer, concluindo, que finalmente cheguei em casa. Onde precisava ir não consegui, me livrei do congestionamento tarde e as portas estavam fechadas. A razão do caos? A principal avenida da cidade interditada. Era um grande comício. A política e meu amor por ela...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Beijo Tardio

                                                                         Arte: Gustav Klimt


Eram dois e se gostavam muito. Desde o dia em que ele bateu na cabeça dela. E moravam juntos, num dos buracos da montanha. Porque precisava também, não podiam ficar sozinhos com tanto dinossauro! Era um casal das cavernas e eram felizes. Saudáveis e felizes.

Aí um dia ele ficou bastante dodói e não podia mais comer nada. Aí ela passou a caçar sozinha e a cuidar da caverninha pequenininha deles sozinha. Mas não gostava porque ficava muito cansada. Aí ela viu que ele ficava mais e mais fraco, todo dia. Não comia e mal se mexia.

Teve então a ideia de dar comida pra ele igual a passarinho.Daí então, ela foi lá e mastigou a carne de pterodátilo bastante e bastante, engoliu e pôs tudo pra fora de novo, direto na boca dele, empapadinha e quentinha. É que naquela época, ainda não tinham inventado o fogo!

Foi assim que ele curou e voltou a caçar com ela e a cuidar da caverninha deles e a proteger um ao outro. E aí, quando ela ficou indisposta, porque tava esperando um menininho da caverna dele, ele fez a mesma coisa com a comida e foi assim que surgiu, há muito muito tempo.

Foi dessa forma que contou Joana, a irmã mais velha, sobre a origem do beijo. A pequena Joaquina permanecia em choque. Esperava altas doses de romantismo na história. Logo agora que começava a se interessar pelos garotinhos. Tinha nove anos e o primeiro trauma.

Não foi nada disso, não! A primeira pessoa que inventou o beijo quando ele surgiu, era má à beça e o que ele fazia era roubar o coração e a vida das pessoas. Primeiro ele falava para uma mulher que queria casar e ter muitos filhos com ela. Mas era só para a mulher gostar dele.

Daí, quando a mulher gostava dele, ele metia a boca na boca dela e roubava o coração dela para se alimentar. E depois roubava a vida dela também. Ele era um bruxo feio e malvado que só fazia isso porque era muito feio e malvado.

Aí quando ninguém mais acreditou nele, ele enfeitiçou todo mundo das famílias das mulheres para acreditar que o que ele fazia era uma coisa boa, aí ninguém mais via quando ele tava sugando a vida das mocinhas indefesas. Minha mãe disse que esse bruxo existe até hoje!

E disse que conheceu ele uma vez e que ele enganou ela por um tempo, mas daí ele desapareceu de repente, igual bruxo faz! Aí ela falou que só não acabou com a vida dele também, porque a única coisa boa que ele fez foi eu e porque ela gosta muito de mim.

Com as mãos apertando as bochechas, Joaquina, escuta inconformada a contra-história de Marlene, sua melhor amiga. Marlene, que ouvira com desdém o causo de Joana, contado por Joaquina, disse saber, desde sempre, quando surgiu o beijo.

E a história dela era ainda pior. Ao menos havia, no primeiro causo, certo apreço. Uma grotesca, porém singela, demonstração de afeto, de certa forma. Marlene, que era puro veneno em suas palavras, nunca soube, mas presenteou a menina Joaquina com um segundo trauma.

Depois os anos passaram. Joaquina, que já não era mais pequena, agora colecionava traumas incalculáveis. Ouviu na pré-adolescência barbaridades como a das borboletas que os homens botam nas barrigas das mulheres, quando as beijam. E meses depois, a barriga fica imensa...

Também as doenças que o beijo passa. Os germes e todas as moléstias. Joaquina tentou descobrir, quando menina, a origem do gesto que deduzira o mais belo entre duas pessoas. Entretanto, hoje, o que sentia era um medo terrível e, aos vinte e sete anos, nunca havia beijado.

E era mulher de roubar olhares por onde passava, só que, nos homens via imensas borboletas venéreas que vomitavam na boca das pessoas para roubar-lhes a vida. Era uma imagem perturbadora. E embrulhava seu estômago cada novo galanteio. Quase impossível de lidar.

Mesmo assim casou-se (poucos acreditaram), aos vinte e nove anos. Celebrou em missa cristã e, do noivo, muito compreensivo, apertou as mãos para selar a comunhão nupcial. Teve suas filhas, duas, mas o trauma elas não herdaram. Foi até feliz em família, embora incompleta.

Quando fez setenta e oito anos, pela primeira vez, chorou a incompreensão do mais magnífico mistério da vida (dela). Ainda lhe dava asco o beijo, e esse foi seu martírio. O marido, pacientemente insistente, contabilizava mais de duzentas investidas frustradas.

Porém, em um doze de junho muito frio, perto das dez da noite (hora de dormir), Joaquina não fez caso da escuridão repentina, provocada pela falta de energia. Caminhou tateando o breu até o quarto e, desamparada, deslizava pela imensidão preta pensando em pouca coisa.

No caminho, dominada delicadamente pela cintura, arrepiou-se de frio e de calor, ao mesmo tempo. Seu velho marido, de volta da caixa de força, respirava a centímetros dela e sua respiração aquecia os lábios de uma forma excitante. Não enxergava um grão de luz, atordoada. Nem os próprios traumas.

Os lábios se tocaram impulsivamente e, desprevenida, permitiu a invasão carinhosa da língua dele em sua boca. E tocou a língua dele com a língua dela. E continuou naquela dança silenciosa e carnal, admitindo completa, ser aquela, enfim, a origem do beijo.

Os dias passaram, a vida. Naquela história, não havia mais passado, só o interminável presente daquele beijo tardio. Não pensava nele, o sentia. Não pensava em nada. Nem jamais se perguntou que vida teria depois daquele beijo, porque aquele beijo, magicamente, nunca terminou...

domingo, 12 de setembro de 2010

O Bocejo e outras Coisas


Tenho tido coisas demais na cabeça. Todas ao mesmo tempo e confusas. Sem base nem conteúdo. Umas e outras elucubrações e epifanias baratas. E elas, todas, instantâneas e rasas, se bastam pelo simples gesto epifânico. Tenho tido preguiça, essa é a verdade.

Uma preguiça avassaladora do ato – inevitavelmente – humano de pensar. De concluir pensamentos e tomar partido das coisas. Esse medo senso comum de ser julgado, somado à necessidade da personalidade indecifrável, embora louco para ser compreendido. Antagônico.

Conservo dentro minhas ideologias, bem dentro e, pior que isso, abro mão delas. As filosofias profundas. Essas coisas que nos determinam. Penso pouco para não enfrentá-las. Sou raso por vontade própria, concluo assim. E talento intelectual não falta, sei disso. Mas sobra preguiça.

Falta estímulo e sobra preguiça. Falta vontade própria e sobra preguiça. Sou assim: Escrevo pouco para quem pretende a escrita como meio de libertação. Leio ainda menos, para quem pretende a escrita como meio de libertação. Não vivo os louros da paixão artística que assumi.

A essência da coisa é que me interesso pelo mundo, sem rédeas nem freios. Sou um pouco de tudo e pela natureza da generalização, sou pouco em tudo. Nada me define. Um pot-pourri de introduções. Boa companhia no elevador, potencialmente constrangedora em viagens longas.

Por isso a escrita tem sido um esforço à minha preguiça, uma luta silenciosa para cima desta casca dura e mal cheirosa de ferrugem nas minhas articulações. As cinco produções que oficializo no final de cada mês, representam outra coisa além das palavrinhas (des) ordenadas.

É documento registrado em cartório e, muito mais, é golpe fulminante na auto-cegueira às minhas habilidades. Tenho preguiça, de sobra e aflitiva. Tenho talento, uma porção e dá para o gasto. Só que agora venho tendo atitude também. Coisa nova para mim. Vem de bom grado.

Com isso, vou vencendo minha depreciação fabianista, bem homeopático. Alívio aos que insistem em tentar convencer-me dos dotes artísticos. Alívio maior ao que tenta ser convencido disso. Nova fase e ainda em processo compreensivatório. Há de passar.

Mas, ainda que turbulento de coisas novas e intimistas, me pego aceitando esse texto forrado de coisas. Coisas mesmo. Palavras ocultadas e substituídas por “coisa”. E não suporto palavras convertidas em “coisa”. Coisa é coisa nenhuma, oras! Mas hoje não! Hoje não me afeta coisa alguma.

Bom domingo!