domingo, 31 de janeiro de 2010

Alô boêmio! - Disse o boemista


Venho dizer: Não existe mais a boemia! Não aquela boemia destilada e pura do século passado. Não a boemia de Noel, Lago, Gonçalves e Cartola. A vida boêmia, como conhecemos, perdeu o caráter. Não há mais boêmios atuantes, apenas nostálgicos resgatando, no ócio, aquele sentimento tão digno do brasileiro. O bom brasileiro, que consagrou o ato da vida noturna como filosofia de vida, diferente do estar boêmio dos dias atuais. Nós que saímos à noite, de bar em bar, em busca das propriedades metamórficas do gole e da poesia movediça do álcool, aprendemos que naquele instante os deveres mais pragmáticos da vida se dissolvem a cada teco ingerido. E o que sobra é devaneio.

Concedemos-nos o clemente direito de perpetuar os “valdevinos”. Honramos a eles nosso torpor e oferecemos, em penitência, nossas ressacas mais agudas. Somos a representação da nova boemia, século vinte e um. Boemistas , não boêmios. Nossa disposição não é condicional, mas, sazonal. Não somos, estamos. É preciso ratificar isso! Brindamos ao momento noturno do prazer ébrio sem vivê-lo com a intensidade de quem o faz naturalmente. É um esforço ser um boemista! É preciso trabalhar duro, o dia todo, todos os dias da semana para (com a energia que resta) subverter-se entre biritas e lirismo.

Entretanto o celular está logo ali, banhando-se em gotas de cerveja e respingos de cachaça. Impondo limites. Pronto para destroçar nosso momento mais artístico e nos transportar de volta à infelicidade regrada dos afazeres mundanos. Nossas contas e responsabilidades. A vida real. As vezes tentamos, constrangidos, não dar vazão a esses sentimentos tão soturnos (patrão, esposa, filhos, emprego) e ignoramos os espasmos vibratórios do aparelho, mas, distantes da malandragem como estamos, acabamos cedendo, involuntários, ao horário, ao dia seguinte, à missa. Protelamos assim, noite após noite, a poesia.

Chico ousou reconhecer, mais de uma vez, que perdeu a viagem “naquela tal malandragem que não existe mais”. Sabia da condição temporal da sua geração, já pós-boêmia. Bebeu do néctar da primeira safra de neo-boêmios, os filhos da Bossa: Tom, Vinícius, Bôscoli, Gilberto, Lyra. Tornou-se um dos representantes do boemismo. Somos boemistas hoje, porque Chico e a Bossa foram boemistas há cinquenta anos. E só o foram, porque Noel e Cartola foram boêmios há oitenta. E seríamos todos, boêmios na essência, não fosse a evolução da parafernália tecnológica que não nos deixa desligar-se.

Bons tempos aqueles que foram, quando era possível esconder-se. Quando a tecnologia não passava de elucubrações do distante ano dois mil, e a Lapa carioca desfilava navalhas e chapéus (não, eu não estive lá, só ouvi dizer). Hoje o dia começa cedo, com o despertador do celular ditando as horas e o “re-despertador” gritando em seguida, que já se passaram dez minutos. Vinte, às vezes. É o patrão e os clientes ligando o dia todo, a esposa e os filhos à noite. Deveres e mais deveres. Não há tempo para a imersão boêmia, não há espaço para a criação espontânea de cinco dias seguidos de anestesia ébria. O mundo derrotou os boêmios. A metrópole, berço, tratou de assassiná-los.

E nós, herdeiros, os perpetuamos, esporadicamente, em caráter de louvor, não em caráter de caráter. Morreríamos de fome. É um acordo com o novo mundo essas horas de quase dedicação plena e verdadeira à arte. Não podemos sê-los, porém, devemos mantê-los. A instituição brasileira da boemia! Temos a responsabilidade social, artística e nostálgica do brinde. Mesmo eu, um quase abstenho convicto.

Costumes


Não se costuma trair os costumes. No interior agrícola onde a hierarquia familiar é um fardo perpétuo e o matrimônio uma etapa obrigatória, não há espaço para um certo alguém. Caem os costumes.

Desde jovem, o desprendimento aos valores do lar tratava involuntariamente de excentrizar aquela criança imune aos sonhos arcaicos dos pais, avós, tios e amigos. Tinha ambições, anseios transcendentes à sua condição rural. Arrastou-se inerte. A puberdade precoce se encarregou de apresentar novas formas ao corpo frágil da infância, cuidando em não sobrepor um milímetro a suavidade das curvas ou a delicadeza da pele. Aprendeu a amar. De maneira submissa e voluptuosa, atacava suas presas com a feracidade de um lobo faminto e, ao mesmo tempo, se entregava aos desejos alheios feito cordeiro indefeso. É como se o excesso de hormônios extravasasse sem rumo, à procura de norte. Era apenas uma criança.

Subversivamente inocente, corrompeu fêmea, um a um, os garotos mais promissores da sociedade. Buscava saciar-se ou descobrir-se. Virou boato. Atraiu a indesejada atenção dos pais. Tão moralistas. Nasceu em berço esplêndido e tinha competência para o baronato, mas desperdiçava cada oportunidade de manter as aparências em aventuras libidinosas com garotos ainda mais inocentemente pervertidos. Escolheu a enclausura. Segundo os pais, uma escolha.

Entre internatos e mosteiros, acumulou quase quatrocentos dias de desejo juvenil. Comportou-se castamente. Quando em casa, de volta aos costumes, no meio dos compromissos de um futuro condicionado, conheceu Luan: Homem, viril, engenheiro agrícola, sujeito da cidade, dono de posses. Homem! Luan nunca duvidou da sua competência para o sexo oposto. Galanteador, voltou dos estudos prometido à insossa Clarinha, da família Moreira. Era o destino planejado pelos costumes. Despertou a atenção coletiva. Mais que isso, despertou o talento para a lascívia naquela criança reformada sob a tutela divina. Mal sinal. Despertou e foi despertado.

E aquela experiência repentina e nova, avessa à moral e aos costumes, aguçou o desejo mútuo, permitindo-os descobrir o prazer sincero da monogamia. Homem e mulher, indistintamente. Atinaram seus hormônios em um relacionamento físico e emocional. Puro, embora ainda pernicioso. Encontravam-se às escondidas no estábulo e na praça, durante a madrugada, quando todos os olhos se fechavam. Conservaram-se proibidos por algum tempo. Desconhecidos, aos olhos alheios. Extrapolavam toda a sensualidade e desejo em longas e tórridas madrugadas. Amavam-se.

Planejaram, juntos, a fuga para a capital. Era o plano perfeito, Luan tinha amigos. Instalariam-se no centro. Debandaram de mãos dadas, duas ou três madrugadas depois. Amaram-se mais alguns meses, ludibriados pelo sucesso do plano. Mas a falta de oportunidades à engenharia agrícola naquela cidade transportou Luan de volta ao interior e à Clarinha. Abandonada e de coração partido, a segunda metade daquele romance, instintivamente convertida em líder do lar, possuía perspectivas ainda menores. Voltar para casa não era possível, fora excomungada.

Acolhida pelas meretrizes mais exóticas do centro, após os primeiros dias de fome e desamparo, entendeu na lascívia natural a possibilidade de manter-se viva. Desenvolver-se profissionalmente. Pertencia a um novo círculo social. Aprendeu sem esforços a lidar com o ofício. Estabilizava-se e enriquecia. Investia no corpo. Transfigurava-se rapidamente em mulher vistosa, desejada por maridos infelizes, velhos pervertidos e todos os tipos de curiosos. Era exuberante.

Sorriu delicadamente quando se deu conta da realização. Era quem almejou ser quando ousou romper os costumes tradicionais do distante interior. Não lhe faltava a família, não se prendia ao passado. Era feliz sozinha e administrava o próprio negócio: o corpo. Encontrava-se satisfeita.

Levou adiante sua felicidade como se fosse preciso saborear meticulosamente cada instante. Entendia a validade daquele período. O tempo é avassalador. Passaram-se vinte anos da vitoriosa emancipação e o desejo nos homens começava a escassear. Era o começo da ruína. Novas mulheres despontavam nos arredores do centro, mais formosas e versáteis. Os primeiros sinais de desprezo, ainda discretos, denunciavam o encerramento de uma Era. Fazia-se necessário encerrá-la dignamente.

Debruçou-se então no parapeito da janela da sala. Calçava seus melhores sapatos, vestia seu vestido mais elegante e maquilou-se como uma diva. Fitou suas conquistas materiais por um instante, não tinham valor. Abriu os braços convencida e, sem cerimônia, atirou-se em silêncio do vigésimo andar. Na queda, lembrou-se de Carlinhos, o menino delicado e condicionado que fora na infância. Suspirou orgulhosa por transpor os costumes. Fechou os olhos e estatelou-se no chão. Desfigurada e feliz.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Day-Lewis em: O garanhão Italiano



Começa uma covardia, como pedir ao papa que fale sobre o aborto. Não gosto de musicais. Quando me convidaram para ver Nine de Rob Marshall, aceitei no escuro, o convite era idôneo. O elenco feminino de peso anulou o interesse pela sinopse e, o protagonista masculino, bem, um elenco por si só.

Para ser breve em descrições, trate-se de um diretor de cinema em crise após uma sucessão de fracassos, agora consumido pela pressão da nova obra. Entregue a mil amantes, Daniel Day-Lewis é o maestro Contini que, mesmo casado com sua antiga musa Luiza (a Piaf, Marion Cotillard), passeia pelos corpos de tantas outras divas. Um perfeito garanhão italiano. Penélope Cruz é, mais uma vez, a Femme Fatale dissimulada e cínica. Mas agora com ares de loba. Nicole Kidman é a nova musa de Contini, Kate Hudson a jornalista de moda que acompanha de perto a carreira do ídolo e, Fergie, canta. Há também Sophia Loren que, com a simples obrigação de ser a instituição italiana do filme, poderia facilmente ser substituída por Zambrotta ou Buffon. A relevância do papel e a atuação seriam compatíveis.

As músicas, chupadas fielmente da peça original na Broadway, são todas insossas e de rimas previsíveis. Devem causar um impacto positivo no palco. Na tela de cinema, simplesmente não. Exceto pelas performances da Marion, duas vezes, ambas carregadas de emoção, nenhuma canção se salva. Lewis é discreto, não deve pintar na telinha do Oscar esse ano, não com o “italian stallion” de Nine. Mas ainda me surpreende a facilidade com que qualquer pestana seja capaz de convertê-lo em uma pessoa completamente diferente. Aqui ele atua de cara limpa quase todo o filme e, me comprou como italiano, mas, se torna outro homem quando de barba e chapéu, quase um húngaro. Além do texano exato em Sangue Negro.

Nine é um musical, pessoas saem pelo mundo cantando e dançando, contagiam meia cidade em coreografias mirabolantes e milimetricamente cadenciadas, difícil dar coisa boa. No caso de Nine, não dá. Um filme onde o elenco não sustenta a falta de roteiro; onde a falta de roteiro (talvez proposital, há um sentido nisso) cede à pieguice e onde a última cena, linda, confunde pela beleza em sua construção com o alívio de fim.

Sherlock Holmes, o homem morcego

 

Nem Richie, nem Downey, tampouco Holmes. Quem procura referências evidentes aos principais elementos dessa película, talvez se surpreenda. O novo filme de Guy Ritchie, a mim, soa pura “desconstrução” – como ouvi num ligeiro devaneio em grupo há poucos dias – “É tempo de desconstrução”, emendo parafraseando o inebriado autor da frase do dito devaneio. E boas desconstruções, rebato a nós dois!

O novo Holmes, absorvido por meus olhos e delírios há poucas horas, apresenta um detetive sujo e jocoso, embora preciso e mordaz, ágil e violento. Não há qualquer fragmento dos costumes britânicos, da elegância e virtude do detetive oferecido a nós por Sir Arthur Conan Doyle no final do século dezenove. Há densos conflitos pessoais e o menor interesse nos bons modos.

Para Ritchie – e agora tomo a liberdade de estender minha bizarra analogia a vocês – Holmes é um perspicaz Batman, sem a motivação ou a fantasia, mas, munido de uma infalível arma: Robin, ou Watson, elementar. Há qualquer quê de sombrio em ambos, mais em Holmes que em Watson, como mais em Batman que em Robin. Há um mútuo interesse na dissimulação do místico, na incredulidade do sobrenatural. Há um desejo compulsivo em provar a ciência nos crimes, mais em Batman que em Robin, digo, em Holmes que em Watson. Há cumplicidade e há sintonia. Uma dupla dinâmica muito melhor construída que aquela fracassada do Joel Schumacher. Watson aqui é tão astuto e agressivo quanto seu parceiro de aventuras. Ambos se completam na resolução dos casos, tanto mentalmente quanto fisicamente. E a ruína da dupla parece iminente com um casamento em vista, mas, a perspicácia de ambos em dissolver ou consolidar esse matrimônio é um duelo a parte à intriga do filme.

Sim, há amor em Ritchie. Pouco comum ao seu estilo, muito comum nos blockbusters, indiferente à trama. Eu me privaria de qualquer comentário, não fosse por Rachel McAdams. Linda! E, comentário feito, prossigo com o mistério que se constrói ao longo das duas horas de filme.

Há, naturalmente, algo místico e maquiavélico acontecendo naquela Londres da revolução industrial. O fervoroso ceticismo de Holmes é posto em xeque a cada cena e, enquanto torna-se mais e mais difícil aplicar ciência naquilo que o rodeia, o detetive recorre à própria magia para alcançar a origem de todo o mistério.

Então, quando estamos tentados a aceitar a solução mais óbvia – no melhor estilo Scooby-doo – Ritchie entrega evidências bastante esclarecedoras, e convincentes, porque não? Com isso, o filme Sherlock Holmes não se apresenta um thriller excepcional (sequer tenta), entretanto nem é um filme evidente e, embora seja mesmo possível compreender a solução do mistério antes de inserida na tela, não vale a pena.

Mais vale manter a atenção no forjado inglês britânico dos diálogos astutos; no tom quase sombrio (um tanto Gothanense) dos dias e noites londrinos; na pontual trilha sonora de Hans Zimmer (confesso que ousei sugerir Flogging Molly ao longo do filme, indiscutível a influência irlandesa nesse trabalho de Zimmer) e; principalmente, vale focar toda a atenção na cena do cais. A explosão. Tão poética... Mas, não seria honesto quaisquer detalhes a respeito. É preciso contemplar a cena e conceber a pureza dela no contexto de um filme de ação.

O filme como um todo, entretenimento puro, belo, desconstruído e remontado. Adoro reformas...

As relevâncias de um dia de Rock sozinho e uma madrugada entre vampiros



Foi uma noite diferente de outras noites já vividas, um dia inteiro, na verdade. Mas a história começa antes, dois ou três meses atrás, quando o anúncio da vinda do Faith no More – uma das maiores bandas de uma geração – era gritado aos meus ouvidos pelos meios de comunicação. Não havia dúvida, eu estaria nesse show por bem ou mal, um festival exatamente. Alguns dias de êxtase e, o nome de Jane’s Addiction também estava envolvido. Pronto, nada mais faltava de estímulo, dali para frente o resto todo seria irrelevante: Preço, local, as outras bandas, tudo. Aliás, pela proporção particular do evento, outras coisas também se tornariam irrelevantes.

Como a ocasião da aquisição do ingresso ou a decisão de ir sozinho. No começo até insisti algumas confortáveis companhias, mas, diante da impossibilidade de umas e má vontade de outras, passei a contemplar o prazer de uma experiência solo. Iniciei então a busca por uma condução. Não importa como, descobri uma Van fretada que nos deixaria na porta do local das apresentações e nos traria de volta tão logo as luzes do palco se apagassem. O atraso de quase duas horas para partir sequer afetou o resultado final do dia, ou seja, a primeira intempérie se fez irrelevante, tamanha era a ansiedade. Aqui, aliás, abro parênteses para congratular tardiamente o competente organizador da “caravana da alegria” que, infelizmente, evaporou quando ancoramos de volta e, assim, não pude agradecer como merecia.

Bem, transportados para dentro do exuberante espaço da Chácara do Jockey – o nada irrelevante local que escolheram para o Maquinária – me afastei involuntariamente do grupo e, apenas por isso, pude vivenciar uma curiosa experiência de introspecção em meio à multidão. No início estava deslocado e aflito, entretanto, durou pouco até que eu começasse a gostar da ideia. Das quatro horas da tarde até a meia noite, dividi apenas comigo as experiências que vou relatar aqui, nada profundamente sobrenatural ou excitante, já adianto!

O primeiro show para mim no grande palco foi o do Sepultura. Perdemos, pelo atraso, a Nação Zumbi, mas, para minhas expectativas do dia: simplesmente irrelevante. O fato é que, durante o Sepultura, os latidos graves de Derek Green soaram bem menos irrelevantes do que eu esperava. Acompanhei boas cinco músicas de pé e, todas as outras, estirado na grama com ouvidos atentos. Continuo acreditando no não significado de um disco do Sepultura na minha coleção, mas, me carregariam para outro show, sem nenhum receio. São Pedro ameaçou até uma garoa nesse meio tempo, insignificante.

Enquanto os shows do grande palco eram desmontados e remontados, um palco menor, na outra extremidade da Chácara, servia a bandas menores, para se apresentarem (literalmente) ao público temporariamente ocioso. Bem irrelevante, aliás. Perambulei pelo gramado e entre os palcos; também caminhei entre os sempre higiênicos banheiros químicos e a econômica e nutritiva praça de alimentação, onde os preços e cardápio são irrelevantes, portanto, tirem suas próprias conclusões. Agradeci à minha mochila pelos clandestinos pacotes de bolacha e água que carregava, naturalmente tive de disfarçá-los para que me permitissem entrar “acompanhado”.

Quando o show do Deftones começou, avistei ao longe um espaço destinado à exposição de grafitagem em tempo real. Compreendam que eu sou daqueles que acreditam mesmo na fomentação da arte a partir da agregação e fusão entre todas as frentes artísticas, mas, para se ter uma ideia, “espaço destinado à exposição de grafitagem em tempo real” é uma livre tradução do que se via! E o que se via era um painel branco com ilustrações amazônicas ainda frescas e algumas latas de tinta spray, sob uma tenda com o logotipo de um fabricante de tintas. Não havia sequer um expectador ao meu lado.

O show do Deftones, pela segunda vez, foi irrelevante a mim. Os assisti no Rock in Rio anos atrás e, de lá pra cá foi a primeira vez que ouvia a voz sintetizada de Chino Moreno novamente. Não me interpretem mal, especialmente os companheiros de aventura da Van, que pareciam grandes devotos de Chino e sua patota, mas não fui com clima de anos 2000, estava lá pelos anos 90. Simples assim! Não calculei o tempo de duração, mas pareceu um show bem longo, bom para os fãs. Eu, do meu lado, aproveitei para conhecer os quatro cantos da chácara.

Fui ao lago, bem na entrada, lá longe onde mal se ouvia as caixas de som. Voltando, cheguei ao que imaginei serem estábulos abandonados. Passei então, por construções grandes que me lembraram usinas açucareiras de antigamente. Pensei em como o espaço era excepcional e como suportaria muito bem essas disputadas festas rave e, careta que sou, ri sozinho lembrando que nunca estive em uma festa rave da menor que fosse! Sentei distante do palco, em uma dessas construções e, enquanto almoçava algumas bolachas, gravei uma poesia em parceria com Drummond em meu celular. Seu conteúdo é veementemente irrelevante, o divertido foi criá-la na voz à ausência de papel.

Quando a noite começou a invadir o céu, estava indicando que o show do Jane’s iria começar. Caminhei sem pressa ao melhor lugar possível e, sem qualquer tumulto, me alojei a duas pessoas da grade. A mochila foi posicionada de forma que me transformava em uma gestante barbada. Talvez por isso me tenham dado preferência, tão prestativos. Quando a banda entrou, senti um arrepio que há muito não sentia musicalmente. Era a presença física de um elemento importante daquela geração já anterior, a qual eu, angustiadamente, me encaixo. Perry Farrell estava ensandecido em seu traje e porte físico de Ney Matogrosso, caiu entre os fios e degraus por duas vezes durante a apresentação e ainda assim não se acalmou! Entre um clássico e outro proferiu sentenças apaixonadas, tanto para a platéia quanto ao colega Dave Navarro, em um inglês simples, lento e quase didático. Foi um gesto singelo, verdadeiramente bonito. Depois nos aconchegou com palavras de afeto ao dizer que até os mais afortunados, como Dave, sofrem e que precisávamos ser gentis com ele. O ponto alto foi a inserção no telão, de uma cena de filme onde o ator Kevin Bacon usa um boné do Jane’s e dialoga com um garoto, também fã. Em seguida vários fragmentos de clipes antigos. Nostalgia pura. Do início ao fim, foi lindo.

A essa hora, o tempo se estreitava para nosso encontro com Mike Patton. Quando o palco novamente estivesse iluminado, Patton estaria lá cantando hinos ainda maiores. Eu continuava pregado ao meu estratégico ponto. O tempo instável de calor e garoa havia dado trégua até então, o relógio marcava nove horas da noite e, enquanto os assistentes de palco finalizavam a passagem de som, algumas gotas espessas e avulsas caíram do céu. Mal deu tempo de se afligir com a possibilidade de chuva, desceu a torrente pesada sob nossas cabeças. Todo o palco começou a ser coberto por lonas, mas, vinte minutos depois, antes da chuva atingir nossos pés, o palco já estava sendo drenado pela equipe. Pelo que deduzimos em seguida, a chuva servira apenas para ilustrar a alegoria de Patton que entrou elegantemente de terno vermelho, bengala e guarda-chuva, claro! Após a calorosa recepção e o arrepio ainda mais profundo – afinal era Mike Patton e toda a minha adolescência se colidindo em um transe interno – o show começou com um cover, providencial, de “Reunited” do Peaches and Herb. Típico do Faith no More, após 11 anos separados.

Ameacei uma lágrima, mas, por falta de amparo, preferi poupá-la. De qualquer forma, a economia sentimental se transformou em inevitável no momento seguinte, pois, da segunda música em diante o que se passou foi um duelo paralelo ao show, entre meu momento individual de realização juvenil e a realização individual de um menos jovem obeso exaltado. Ele pertencia a um bando de exaltados e, todos eles sem camisa, besuntados de chuva e suor, deslizavam saltitantes entre o público pressionando-nos contra a grade. É evidente que o ponto de parada da trupe foi logo às minhas costas, onde eles pulariam e chacoalhariam suas camisetas durante todo o espetáculo. No início fiquei irritado, natural, estava incomodado em ser atirado involuntariamente à grade a cada cinco segundos. Em seguida fiquei decepcionado, porque aquilo estava tirando minha concentração. Imediatamente convertido em rancor, armei meu cotovelo e, ao som da bateria incessante de Mike Bordin, desferi golpes contra ele, sem ver onde o atingia. Legítima defesa.

Ficamos nesse embate particular por duas ou três canções, até que, nos primeiros acordes do clássico-mor “Epíc”, ainda mais exaltados, nos acertamos com violência excessiva, simultaneamente. Minha cabeça tremeu e por instinto olhei para trás, ele estava com as mãos no meio do peito e, mesmo demonstrando visível dor, apertou meus ombros e, realizado cantava: “you want It all, but you can’t have it”. Foi justamente assim que, complacentemente decidimos sem acordo que aquele show seria dolorosamente inesquecível. Não contei mais quantas pancadas levei ou quantas devolvi, não foram poucas. Até o fim nós nos deliciamos com cada uma das canções, cada interação com a platéia (em bom português) de Patton e a cada despedida e retorno da banda. Foram duas, quase três! Quando a banda realmente partiu, sem tocar “Falling to Pieces”, embora tocando boa parte do set list de qualquer um que os conheça bem, nos encontramos de frente, o besuntão e eu, e sem apresentações, num vigoroso toque de mão gritamos largamente: “Faith no Mooooore”! – Era nossa congratulação por ter dividido aquele episódio épico e, ao mesmo tempo, um pedido mútuo de desculpas. Vale mesmo a pena ser fã, cada um do seu jeito...

Na volta, ainda atordoado com o turbilhão de sensações que esse fatídico dia me proporcionou, me vi freneticamente ativo, inspirado e sem sono. Resolvi, já em casa, acatar a especial indicação fílmica de “Dança dos Vampiros”, do Polanski. Teria sido irrelevante, dado os avisos cautelosos de tantos amigos sobre essa película, mas, a verdade é que o filme puro e nada transcendental (como eu, descriteriosamente, o imaginei) me surpreendeu e me manteve acordado até quase cinco horas da manhã. É uma comédia satírica, quase pastelona em alguns momentos, com algumas belas cenas e suave, sem grandes exigências intelectuais, ideal para qualquer madrugada. Me pergunto, inclusive, a qual sessão de locadora deve pertencer! De todo modo, eu poderia dizer mais, com maiores detalhes e apelo, mas agora que o dia começa a despontar no céu, sinto que é chegada a irrelevante hora de dormir.