sábado, 30 de abril de 2011

Hora do Banho



Mais de cinquenta dias à deriva. As águas tempestuosas do pacífico finalmente deram uma trégua. Mas não sem antes quebrar o nosso mastro. Estamos estacionados no oceano. Há dias que esperamos uma aproximação de resgate ou, pelo menos, o ataque final dos corsários.

Estamos quase sem mantimentos e a tripulação começa a apresentar sinais de delírio. Tubarões rodeiam nossa embarcação pacientemente, alguns marujos acenam simpáticos, esperando serem os primeiros escolhidos no mar. O sol do meio dia é impiedoso no convés.

De repente, os grandes predadores desaparecem rapidamente dos arredores e uma leve oscilação agita o barco. O dia subitamente vira noite. “Vejam é o Kraken, estamos perdidos!” – Às nossas costas surge uma imensa criatura serpentesca, do tamanho de uma grande ilha.

Urra em tom grave e macabro, nos fazendo levar as mãos às orelhas. Os menos corajosos atiram-se as águas, se entregando à criatura. Num golpe rápido, o monstro salta para dentro das profundezas, levantando uma onda da altura do céu. Tive que agir com eximia destreza.

Direcionei a quilha de forma que a popa encaixasse perfeitamente na progressão da onda e alavancamos para frente, surfando em sua crista. Era uma onda tão grande que passamos dias em seu topo, com vento nos cabelos, cortando com velocidade as águas salgadas do oceano.

Devagarinho a caravela foi voltando ao nível do mar e assim navegamos por mais uns dois dias, apenas com o impulso inicial. Aportamos muito próximo de uma ilhota tropical. Lá poderíamos consertar nossas velas e, finalmente, retomar a tão esperada rota que nos levaria para casa.

“Comandante, vamos fazer a inspeção da ilha!” – “Perfeitamente, Imediato Pedrinho, vamos!” – a braçadas, nadamos rumo à terra firme e, uma vez lá, fomos abordados pela tribo de guerreiras amazonas, que disseram poder reparar os danos ao nosso mastro e velas.

Retribuímos a gentileza oferecendo alguns de nossos homens para festivais de música e dança. Foram bons dias de festa com muito rum e javali. No inicio da segunda semana notei que a nau continuava intocada e só então percebemos ser uma emboscada. Eram sereias carnívoras!

“Imediato Pedrinho, elas estão se alimentando dos nossos tripulantes! Quase todos se foram, corra, atire-se ao mar e não olhe para trás ou poderá ser enfeitiçado” – Mergulhamos nas profundezas e batemos os braços incansavelmente, tentando despista-las de uma vez.

Sabíamos que não resistiríamos muito tempo sob a água e, quando estávamos prestes a desistir fomos abocanhados por uma gigantesca baleia branca. Ela navegou conosco na sua boca e nos expeliu bem longe dali, perto de um navio preto e com uma bandeira de caveira.

“Comandante, são piratas o que faremos?” – Não tinha muito o que fazer, acenamos torcendo que por um ímpeto humanitário, nos resgatassem. Assim foi, mas não como prevíamos. Por puro sadismo, nos levaram até a caverna dos tubarões e nos forçaram à prancha.

“Veja Imediato, um repelente de tubarões, besunte seu corpo com isso e seremos invisíveis!” – Caímos no mar e, enquanto o navio sumia no horizonte, sentimos o repelente diluir-se na água, nos deixando novamente vulneráveis aos ataques. Seria esse nosso triste fim? Uma barbatana!

“Comandante são golfinhos!” – “Finalmente, estamos salvos!” – Grudamos às barbatanas dos simpáticos amiguinhos e navegamos com seu bando muitos dias até finalmente ancorar nas águas pacatas do atlântico. Onde a esposa do Comandante o aguardava impaciente.


- Agora deixa eu te enxugar filho, a aventura acabou!

- Ah pai, eu quero de novo!

- Tudo bem, mas não hoje, papai tá cansado!

- Tá bom, vai...


- Artur querido, você não vem?

- Em um minuto, amor!

- Pronto, missão cumprida!

- Não sei como você faz para esse menino gostar tanto da hora do banho!

domingo, 17 de abril de 2011

A História do Bravo e Destemido Cavaleiro Que Era Também Corajoso e Valente


Eis que um bravo e destemido cavaleiro avança em direção à porta da grande Casa das Sensações. É abordado pelo guardião da casa: “Bom dia senhor, seja bem-vindo à Casa das Sensações. Você que é tão destemido, queira, por favor, avançar à primeira porta!”.

Reconhecendo sua bravura, avançou dois passos e, com a mão na maçaneta, ousou perguntar: “Mas caro guardião da casa, como funciona isso?” – “Você entrará e terá que escolher entre duas portas. Não importa a situação, deverá respeitar seus sentimentos”.

O cavaleiro irrompeu a porta que não tinha nome e, na primeira sala, compreendeu a dinâmica do jogo. Havia lá duas portas: Medo e Honra. “Não tenho medo!” – disse, empurrando a Honra. Ajoelhou-se, diante do sagrado livro de conduta dos cavaleiros.

Na extremidade oposta outras duas portas o esperavam: Medo e Benevolência. Saudou, benévolo, seus inimigos e traidores. Cumprimentou-os com absoluto respeito e avançou. Na outra ponta, teve de escolher entre Medo e Paixão. Sem titubear, correu apaixonado.

Encontrou lá o grande amor da adolescência e, após um longo e molhado beijo, caminharam de mãos dadas até que, entre choros e abraços despediram-se, ao pé das novas portas: Medo e Admiração. “Não tenho medo!” – gabou-se à jovem donzela.

Encontrou o pai de costas, forjando uma bela espada dourada. A beleza com que manejava aquele objeto volátil e incandescente, enchia os olhos do cavaleiro de luz. O pai, obstinado, não podia vê-lo, mesmo assim acenou até cruzar a sala às novas portas.

Mal deu bola à porta Medo dessa vez, penetrou imponente à porta da Confiança. Pisava firme sobre a ponte velha e quebradiça que se estendia pela sala. No fim, abriu devagar e entrou muito delicadamente na porta do Amor, deixando o Medo novamente para trás.

Meteu o dedo no creme que a mãe preparava na cozinha e beijou sua testa. Gastou um bom tempo acariciando seus cabelos até que a torta ficasse pronta. Comeu duas porções e despediu-se depois de um abraço forte e caloroso. Caminhou leve e preenchido.

Empurrou sem esforços a porta da Felicidade e correu, feito menino inocente, pelo campo com seus irmãos e amigos de infância, todos meninos, aquém das mazelas do mundo. De trás de uma das macieiras do campo, brotavam do chão outras duas portas.

Entrou pensativo à Sabedoria e, pela primeira vez franziu a testa, dando-se conta de ter deixado uma nova porta Medo às costas. Coçou o queixo e chocou-se com o volume da sua barba. Era agora um homem velho e cansado. Entendia finalmente o truque.

O que tinha para encontrar ali, na Casa das Sensações, era o medo. De todas as sensações do mundo, de todos os sentimentos que podia sentir, desconhecia o medo. Não sabia o que encontraria na porta e, francamente, não tinha medo. Mas tinha o dever.

No fim da sala, sucumbiu novamente às artimanhas do jogo. A casa, traiçoeira, brincava com as sensações de seus jogadores. As portas que surgiram eram: Medo e Curiosidade. Tinha que entrar em Medo, sabia, mas por pura curiosidade. Respeitou os sentimentos.

Curiosidade adentro, arrepiou-se pela primeira vez em vida. Despiu-se das armaduras. Espelhos por todos os lados e mil portas em fila. Todas com os mesmos dizeres: Medo, Medo, Medo... Não tinha escolha e não soube o que fazer. Tantos medos diferentes.

“Não tenho medo!” – Insistiu. Fitou os espelhos e hipnotizou-se com seu aspecto. Tempo demais sendo corajoso, jamais conheceria o medo. Respirou fundo e, bravamente, atirou-se contra os espelhos, deixando que o sangue quente esvaísse do corpo.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O Cartão


- Senhor, desculpe, mas o cartão não está passando.

- Pro diabo esse cartão, libere a catraca!

- Sinto muito senhor, mas não tenho permissão para fazer isso!

- Estou te dizendo jovem, libere essa catraca!

- Sinto muito senhor, mas não tenho permissão para fazer isso!

- Escute garoto, e escute bem, não estou com paciência hoje...

- Senhor, preciso que o senhor solicite uma autorização de entrada, justificando o mal funcionamento do cartão do senhor.

- Tudo bem, então vamos recomeçar: Você é novo aqui, não é garoto?

- Sim senhor!

- Primeiro emprego?

- Sim senhor!

- Pois está fazendo muito bem o seu trabalho...

- Obrigado senhor!

- Mas meu dia não está bom, eu preciso passar e você está me atrapalhando.

- Senhor, o cartão do senhor não está passando!

- Já entendi! Agora libere a catraca...

- Sinto muito senhor, mas não tenho permissão para fazer isso!

- Certo, certo... Não pode liberar?

- Sinto muito senhor, mas não tenho permissão para fazer isso!

- Então olha só: Eu sou o dono dessa bosta toda, por isso abre essa merda dessa catraca logo, antes que eu tenha que forçá-la através do seu esfíncter!

- Senhor, por favor, mantenha a calma. Preciso que solicite uma autorização formal, junto do setor de recursos humanos, afim de comprovar a participação do senhor no quadro de funcionários da empresa.

- Moleque, eu sou o dono dessa bosta!

- Senhor, eu entendo, mas preciso de um documento que comprove a participação do senhor no quadro de funcionários da empresa.

- O-DO-NO-DES-SA-BOS-TA!

- Senhor, queira se dirigir ao recursos humanos, no outro prédio da companhia.

- No prédio administrativo?

- Sim senhor!

- Você só pode estar brincando! Estou a vinte minutos de lá!

- Isso mesmo senhor! Procure por Norma.

- Ok, e é só isso?

- Não exatamente senhor!

- ...

- Com a autorização será preciso que o senhor se dirija ao 3º cartório civil para reconhecer firma.

- É gozação...

- Senhor...

- O que foi?

- Tem mais!

- Claro que tem...

- Com a firma reconhecida, será preciso dirigir-se novamente ao prédio administrativo, no setor de TI, para habilitar o novo cartão.

- E finalmente poderei entrar na porra da minha própria empresa?

- Não exatamente senhor!

- Imaginei...

- A liberação do cartão demora um dia útil.

- ...

- Desculpe senhor!

- Não!

- Sinto muito, senhor!

- Sente porra nenhuma!

- ...

- ?

- ...

- ??

- Senhor, não sei o que dizer!

- Então toda vez que der pane no meu cartão tenho que ir até o RH, depois ao cartório, em seguida ao TI, e ainda esperar um dia útil para poder trabalhar?

- Sim senhor!

- E quem foi o filho da puta que teve essa ideia estúpida?

- Senhor?

- O que foi agora?

- Deve ser coisa do dono da companhia...

- Já disse que eu sou o dono dessa companhia! Chega! Chama o Ronald, vice-presidente, e diz que o Tobias precisa falar imediatamente com ele aqui!

- Pois não senhor!




- Seu Tobias? O que faz aí fora?

- Ronald, meu camarada, imagine você que esse insolente aí na portaria não quer me deixar entrar! Logo eu que fundei essa merda!

- O quê? Mas isso é um absurdo! Garoto venha cá!

- Sim senhor!

- Posso saber que petulância é essa de vetar a entrada do presidente da companhia?

- Mas senhor...

- E é bom que tenha uma explicação bastante razoável!

- Senhor, o cartão dele não está passando!

- Seu Tobias, o que houve com o seu cartão?

- Sei lá, não quis funcionar nem por decreto! E esse pirralho me deixou plantado aqui todo esse tempo.

- Seu Tobias...

- O que foi?

- Desculpe, mas o senhor terá que se dirigir ao RH, no prédio administrativo...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Dores da Nova Média


Tanta coisa ruim no mundo, né? Essas pragas todas, que acontecem cada vez mais com mais frequência. Cruzes! Anteontem um assalto na porta de casa, na minha calçada! Um garoto puxava a bolsa de uma senhorinha e gritava com ela, muito contrariado. Ela aterrorizada.

Não achei que estivesse reagindo nem nada, só congelada de medo pelas coisas que ele falava pra ela. Que ia matar e tal! Não era nem sete da manhã e o moleque não tinha mais de treze anos. Limpinho, com uniforme de colégio e tudo! Quem que desconfiaria? Ô raça!

Eu tava indo para minha massagem no meio daquele furdunço e, para não sobrar pra mim, fingi que não tava acontecendo nada, dei as costas mesmo! Só corri em disparada quando ouvi os tiros. Menina, era gritaria para todo lado. A velhinha morreu ali mesmo, tadinha. Deu até no jornal.

Ai, e o meu cabelo? Tá cheio de ponta dupla, todo ressecado... Mês passado vi na TV, um creme para as pontas que prometia os fios num brilho só. Comprei! Tinha lido que até aquela atriz loirinha usa, sabe? Nossa, foi pior que rasgar dinheiro, me senti roubada. Isso não se faz!

E aqueles carinhas que atearam fogo no ônibus lá no centro, você ficou sabendo? Foi em frente à boutique de Lu! Ela falou que invadiram a condução, nem esperaram o pessoal descer e saíram jogando bomba para todo lado, teve um senhor que queimou feio o braço, coitado!

E sabe a Leila manicure? Saiu do salão! Juro! Brigou com a Renée na frente de todo mundo. Agora vai abrir o próprio negócio! Disse que vai ser um ateliê de beleza, todo chique! Pior que minha unha tá um fiasco, preciso dela e não faço ideia de quem vai tirar minha cutícula até lá.

E já tô doida porque troquei de empregada, né? O filho da Dirce se meteu em encrenca lá no interior. Foi preso. Aí ela foi acudir. Dei uma semana e nada de voltar. Já dei as contas logo. Pensa que sou palhaça! Agora entrou uma nova, tenho que ficar de olho se some alguma coisa.

Mas o mundo tá perdido mesmo! Uma família inteira assassinada afogada dentro da piscina de casa! Absurdo! Parece que entraram para assaltar e um dos filhos (lutava jiu-jitsu) tentou reagir. Os caras amarraram todo mundo e jogaram na piscina. Uma barbaridade sem tamanho!

Tá tudo uma loucura, só atrocidade! Não dá mais para sair de casa sem ter uma notícia ruim. Credo! Aquela mulher que foi atropelada e arrastada vários quilômetros debaixo do carro. O sujeito que matou a avó para tentar ganhar o seguro. O estuprador do banheiro da rodoviária.

E o Maurício que não sabe onde guardou nossos passaportes! Ai, só dor de cabeça! A gente viaja para Paris semana que vem e estamos sem passaporte. Acredita num absurdo desses? Quero só ver como ele vai fazer! Não aguento mais problema na minha vida, sabe?

Fico pensando em como era mais fácil quando a gente não tinha dinheiro. Os problemas eram tão pequenos e raros. Acho até que a gente era mais feliz! Não tinha tanta violência, tanta desigualdade. As pessoas se respeitavam mais naquele tempo, se gostavam e ajudavam!

Ai Cris, deixa eu fechar o vidro que tá vindo um trombadinha pedir dinheiro. Já vou aproveitar e desligar que tô chegando no clube. Vou reservar nossa mesa lá no restaurante e te espero, mas vê se não demora, hein? Tenho pilates às três e meia. Beijo, tchau!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Saudações à Broadway, Marujo


Tive finalmente uma folga. Depois de meses no mar, em treinamento, quase doze horas de recesso para recobrar os sentidos e rememorar momentos de sanidade em terra firme. As águas salgadas e inesgotáveis do Atlântico podem acabar com a cabeça de qualquer homem.

Deixei o porto sozinho, em direção ao bar mais afastado e mais cheio de prostitutas que encontrasse pelo caminho. Queria apenas distância do mar, do navio e daquela tripulação suja e alienada. Eram mais de cem homens, todos sedentos por sangue inimigo. Eu, sem escolha.

Caí na marinha para não apodrecer numa penitenciária agrícola. Eu era um agricultor dos mais preguiçosos. Quando descobri que podia fazer grana com as maçãs do senhorio, tratei de desviá-las muito discretamente, até ser descoberto. Fui entregue à polícia aos dezoito anos.

Tive duas opções muito claras: Cadeia ou marinha. O país se preparava para a guerra e precisavam de recrutas, o maior número possível. Na semana seguinte lá estava eu, de uniforme, em posição de sentido, jurando a bandeira. Dissimulei abraçar a causa, e embarquei.

Agora, finalmente, caminhava em direção à algazarra dos bares portuários. Não tirei o uniforme para não perder tempo e, naturalmente, por conhecer o efeito que os trajes marítimos causam nas mulheres. E Deus sabe o quanto eu precisava de uma mulher, ou duas.

Vaguei com meu cubano queimando na boca, e encontrei uma biboca silenciosa à meia-luz. Já era a última esquina do porto. Se não tivessem álcool ali, teriam que me dizer onde conseguir. Empurrei a portinhola e após o longo rangido, havia uns trinta pares de olhos me encarando.

Os saudei aliviado porque, sim, era exatamente o que procurava, um bar sujo e barato, repleto de mulheres dispostas a se deitar comigo sem nenhum galanteio maior que umas notas de dólar e, talvez, um drink. De repente, de lugar nenhum e em toda a parte, subiu o tom do jazz:

“Bem-vindo a birosca do Araújo, marujo.” – As pessoas todas levantaram dos seus acentos e se reuniam em passos organizadíssimos. “Venha e se entregue. Extravase, descarregue.” – Cantavam e dançavam alinhados, olhando para mim com sorrisos assustadoramente felizes.

“Bem-vindo a sua casa, somos todos irmãos. Abra suas asas, role pelo chão.” – Até aí um convite honesto. “Beba, se embebeda, está em terra e não em guerra.” – Estavam certos. “Amanhã é outro dia e você deve lutar, entupa-se de álcool até desmaiar.” – Ali eu já dançava.

A música cessou da mesma forma que surgiu, e cada um retomou seu lugar. Silêncio, apenas os ruídos dos tacos nas bolas de bilhar, e copos tilintando involuntariamente. Agora já não pareciam tão felizes ou animados. Só bêbados. Cheguei no balcão e pedi um Bourbon. Duplo.

Admirava a prateleira de bebidas e só pensava em quantos porres aquela parede poderia me fornecer até o fim da vida. Provavelmente todos. Então, um som sinfônico, como um bando de passarinhos, irrompeu meu devaneio deliciosamente. Encontrei, enfim o que queria ter:

“Marinheiro, procurando companhia? Eu sou a Maria.” – Virei para ela, sedento e babão, mas, antes que pudesse responder, uma fila de mulheres brotou de trás dela, melodiosamente se identificando. Queria entender de onde diabos vinha aquele blues, mas optei pelo brinde:

“Querendo carinho? Sou Candy, seu docinho”; “Atrás de uma dama? Eu sou a Suzanna”; “Sou a perdição, prazer, Sue Furacão”; “Procurando problema? É o meu sobrenome, me chamo Helena”; “Ou uma puta? Eu sou a Sandy!” – Sem rima? “Relaxa, é nova aqui, a minha prima!”.

Rimos e aplaudimos todos juntos. Subitamente, mais uma vez, evaporou no ar a música e o vazio melancólico redominou o bar. Na quarta ou quinta dose, levei Maria e Sue para os fundos. Não tinham o mesmo entusiasmo do ato anterior. Foi uma foda bem burocrática, aliás.

Comecei a ficar deprimido. O ambiente todo parecia oco, em silêncio. Mas me dispersou, quando, do canto escuro do bar, um velho vaqueiro entoou glórias e fracassos pessoais. Um country triste, mas bonito. Ninguém cantava, só estalávamos os dedos, lentos e cadentes.

A música parou sem nem me confundir mais, já estava inserido naquela maluquice musical de corpo, alma e álcool. Apreciava e participava. Mas, antes da tristeza voltar a nos assombrar, dois bêbados iniciaram o próximo ato, reivindicando Sandy que, assustada, rodopiava no meio.

Cada um a puxava por um braço e enquanto o rockabilly ficava mais e mais alto, eles despejavam seus argumentos com rimas fortes e precisas. Helena pausou a cena se atirando no meio da confusão: “Ei, seus otários, saiam de cima. Mato vocês, se ferirem minha prima!”.

No instante seguinte a música recomeçou e logo o bar todo estava envolvido. Mesas voavam, garrafas quebravam nas cabeças, mulheres rodopiavam e saltavam por cima e por baixo dos homens. Não demorou até sermos expulsos. Rindo, dançando, quebrando e cantando.

A farra continuou do lado fora, casais repetiam os passos um do outro, todos rimavam as maravilhas da noite e do álcool. Uns mais exaltados rodavam nos postes e davam piruetas. Em seguida as luzes se apagaram em fade out, e cada bêbado e cada puta foi tomando seu rumo para casa.

Começava a amanhecer e o Destroier berrava sua buzina ruidosa. Os marinheiros se aglomeravam na prancha para embarcar. Cada um de nós saudou o comandante e desapareceu no convés, rumo à guerra. Eu tinha apenas vinte anos, e acreditava em fantasias.