quarta-feira, 29 de maio de 2013

Deixo o Braço


Estendo a mão. Lá embaixo um precipício. Estico os dedos com toda a minha força, estão quase se desmembrando. Olhando de perto, bem perto, é possível ver as falanges soltas. Bobas e flácidas sob a pele. O braço formigando range e causa desconforto. Não desisto.

As veias do pescoço evidenciam a força sobre-humana que aplico para te alcançar. Desafio os limites da minha elasticidade. Desloco ombro e cotovelo. Ganho três ou quatro centímetros. Bastam. Suas mãos tocam finalmente as minhas. Unem-se com força e com liga.

Um alívio despenca, afinal, para o infinito do precipício. Você não. Você se agarra ao meu braço, morto. Inerte e bambo feito cipó. Sinto os ossos da mão se confundirem entre si. Sinto o calor do teu corpo, abraçado ao meu braço. Não tenha medo, vem! Que agora é só subir.

Escale com cuidado a corda epidérmica, antes que rompa. No alto do bíceps, sinto as fibras do músculo rompendo-se uma a uma. São poucas, tome cuidado. Não resta muito tempo, vem! O tendão supertensionado estoura e treme o corpo todo. Não solte agora, já quase no topo!

A pele pálida, feito bala de goma, reserva todos os ossos em uma grotesca bolsa, na extremidade inferior. Isso pesa e diminui o seu tempo, vem logo! O sangue, grosso e quente que emerge do ombro, provoca uma cachoeira viscosa e deslizante. Se agarre com mais força!

Pronto! Já pode relaxar. Descanse e se recomponha. Deite-se ao meu lado e desfrute da sobrevivência. Respire fundo que o pior já passou. Agora me ajuda com isso que incomoda. Arranque! Um braço, a pele necrosada e escorrida é nada, se você com vida ao meu lado.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

O Moribundo




- Boa noite, sou o doutor Amin.

- Ai... Oi doutor.

- Então, como você se sente?

- Mal, muito mal...

- Sente o quê?

- Que vou morrer!

- Hmmm... Seja mais prático, onde dói?

- No corpo todo. Uma fraqueza muito grande, calafrios profundos, mal consigo enxergar.

- Entendo...

- O que o senhor acha?

- Que não deve se preocupar!

- Ah, não é grave?

- Não sei, mas digo que não deve se preocupar com isso.

- Com qual isso?

- A morte, oras!

- Ãh?

- Você vai morrer, relaxe. Me pareceu que é isso que te preocupa!

- Não, não relaxo! Morro já?

- Talvez. Ainda não sei! De qualquer forma, cedo ou tarde!

- Mas não quero morrer, doutor!

- Acredita em Deus?

- Claro que sim!

- Ótimo! Converse com ele, talvez possa te ajudar. Eu não posso!

- Mas que desaforo, eu pago convênio!

- Paga sim. Mas não pela imortalidade.

- O que é isso? Me respeite, o senhor tem obrigações!

- Tem razão, tenho! Sua vida não é uma delas!

- Então o quê?

- Sei lá, a minha?

- Doutor, por amor em Deus, me ajuda! Preciso sair dessa! Serei uma pessoa melhor...

- É mesmo? Continue...

- Um marido melhor, um pai mais dedicado, um trabalhador mais esforçado!

- Promete?

- Tão logo melhore!

- Tenho aqui seu prontuário...

- E o que te parece?

- O que me parece?

- Sim, me diga logo de uma vez!

- Me parece gripe, meu jovem!

quarta-feira, 15 de maio de 2013

O Estigma da Idade



Tenho o hábito de observar os velhos. Não com admiração nem, tampouco, desprezo. Apenas com atenção, tentando aprender um algo qualquer sobre meu futuro próximo. E digo que são velhos porque me ensinaram na vida que existem dois tipos de gente: os novos e os velhos.

O conceito que tenho sobre a idade que têm os velhos, vem mudando a cada ano e hoje, que beiro os trinta, velhos são os bem velhinhos, como seus cabelos brancos, suas vozes roucas e seus movimentos lentos e arrastados. Penso em velho e é essa imagem que me vem à cabeça.

A ideia que faço do futuro não é lá muito animadora, sei. Gosto da pressa e do frenesi da vida. Me acostumei ao ritmo das coisas “em cima da hora”, vai ser difícil se adaptar. Quando eu era muito jovem, achava que velhos eram nossos pais. Os adultos e suas responsabilidades.

Já tenho quase a idade que tinha meu pai quando eu pensava assim, nem um terço de suas responsabilidades. E ele, hoje, rejuvenesceu. Velhos são os bem velhinhos, cansados e com sono. Cruzei um desses no trânsito hoje. Velhinho mesmo! De óculos de sol e a cem por hora.

Me ultrapassou todo esbaforido. Boné para trás, cigarro na boca e camiseta regata. Juro, mais de oitenta nas costas e costurando garotões no trânsito. Confesso que me senti ofendido, ora, ultrapassado por um velho! Um VELHO! Demorei para entender e enxergar um futuro melhor!

Um futuro onde a idade pesa menos que o pé no acelerador. Aí tentei acelerar atrás daquele velho, para agradecê-lo pela esperança de um futuro menos inválido. Mas esbarrei na pressa que tinha em levar os resultados dos meus exames ao ortopedista. Doem minhas articulações.

Aos trinta anos, velho. Desloquei o ombro e o quadril. Tornozelo luxado e artrose no joelho. Acho que nunca vou alcançar aquele velho... 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Sobre as Ideias




Não é que me escapem, não, elas estão lá! Caprichosamente escondidas em algum lugar nebuloso e turvo da minha cabeça. Não sempre, eu seria injusto. Apenas quando lhes soa conveniente. E eu costumo achar graça da conveniência coincidir com meu momento literário.

Ultimamente, basta concentrar-me à tela. Esse imenso quadro branco e luminoso diante de mim com seu cursor que pisca e me pressiona, como se contasse o tempo ocioso. Nenhum verbo ou ação. Já reparou que, enquanto a gente escreve, o maldito cursor desaparece?

Por isso meu alívio mais sincero e meu lema à digitação: Exterminar o cursor! – Mas como, quando as ideias não vêm? Especialmente sabendo que estão por aí, sorrateiras e melindrosas na grande planície baldia do meu crânio. Só de pensar fico ainda mais anuviado. E oco.

Virou obrigação! Talvez seja essa a epifania do dia: Escrever virou obrigação! Ao menos deixou de ser um simples e egocêntrico hobby. Estabeleci metas. Metas chatas e enfadonhas que sufocam a liberdade criativa. Ao mesmo tempo, metas que me mantêm ativo e responsável.

O que acontece é que minha cabeça e eu encaramos muitas coisas de forma diferente. Ela é mais lírica enquanto eu, prático. Deve ser por isso que venho enfrentando com frequência a traquinagem amnésica dela, escondendo as boas ideias do dia no submundo do consciente.

Tentando me ocupar a vida com mais lirismo. E é de se espantar como fervilho nos horários mais inoportunos e impossíveis do dia. As ideias surgem, ressurgem, se cruzam e se mesclam. É quase um baile veneziano de trinta pares, impecável. Se eu abandonasse o praticismo...

Mas, conscientemente, sacaneio minha cabeça e, enquanto ela teima em evaporar as ideias que já são, essencialmente, minhas, dissimulo o desespero da falta de assunto e escrevo, descaradamente, sobre como é estar, absolutamente, sem ideias!

domingo, 5 de maio de 2013

Alimentem-me!




Tenho fome. Uma fome ruidosa e minha barriga ronca no baixo cerebelo vibrando, impetuosamente, a caixa craniana. Como se um aparelho celular no bolso. Me alimente! Apenas com comida de cabeça que o corpo já adquiriu a flacidez segura de se manter em pé.

Quero repetir no cérebro a sustância abdominal que exibo anteumbigo. Só quero que me leiam orgulhosos: “Tá fortinho esse rapaz!” – E que irrompam a fome intelectual sem cessar o alimento que expande os ossos da testa. Cabeção, para mim, é deus grego aos acadêmios.

Prefiro o alienismo do crânio ao alienalismo da saliva viscosa no canto da boca. O sorriso estúpido emergido do capítulo final da novela, eu dispenso. Entre Lopes, Aquino, Quaresma, Paganelli, Ladeira, De Lucca, Egan, Basso e Romanini, eu só quero comer. E lamber os dedos.

Apenas lambuzar a cara no óleo do “me digam vocês, quanto vale a vida!”. Porque no alto da fome, que me aflige madrugada adentro, não encontro delivery. E se, distante do prato, num dia ou noutro, ronca a cabeça. E quando vibra a danada, apenas um jeito: Alimentando-me!

Por isso reivindico, mendigando nutrientes: Alimentem-me! Isolada ou coletivamente, banqueteiem-me com o que têm a oferecer, pois, sozinho, morro de fome! Se querem saber, confesso que, por conta, tenho mais sono que vontade de comer. Apesar da fome, claro.

Pois fome é algo que não passa. O corpo pede! Mas toda vez que, responsável pelo próprio alimento, prefiro dormir e distrair o ronco até que amanheça! Já comendo fora, abro a cabeça e mastigo as ideias que me oferecem. Saboreando com gosto um tempero que não meu.