segunda-feira, 31 de maio de 2010

Par de Luzes


“Eis minha senhora e meu senhor. Eis aqui em minhas mãos o início da tua salvação! O começo de uma nova vida, plena em Deus, pai da misericórdia. Eis aqui a chave para a redenção de todos os seus pecados: Os Versos da Fé!” – E apontava para o pequeno livro que levava o título das últimas palavras proferidas.

“Qual o tamanho da sua fé, irmã? Me diga o tamanho da sua fé, irmão? Deus mora mesmo ai dentro da tua casa, do teu coração? Você honra com seus compromissos cristãos? E você acha que tem problemas, não? Que a vida é injusta. Pois seu único problema é a falta da fé! Te falta fé, irmã! Você sabe que sim, irmão!” – E pela primeira vez despertou a atenção de Rita, inerte no sofá.

“Tem enfrentado dificuldades financeiras? Deus sabe que sim! Deus testa você, irmã! Ele vem te testando há muito tempo, irmão! E você falha! Por quanto tempo mais falhará, irmã? Por quanto tempo, irmão? Aquela doença que não cura, é só um teste. Deus cuida de você, Deus ama você. – E atingiu-a desprevenida no rosto, com a descrição de boa parte dos seus problemas.

“Você pensa que o casamento tem estado complicado, com muitas brigas? Avante, irmã! Enfrente, irmão! Deus pode te ajudar, Deus quer te ajudar e vai! O pai, nosso Senhor, tem pensado em você! Tem estado preocupado e por isso, por isso, minha senhora e meu senhor, eu estou na sua casa hoje!” – E Rita se convencia cautelosamente do destino celestial invadindo sua casa.

“Te parece impossível, não? Te parece humanamente impossível se livrar das moléstias que rodeiam sua vida. Pois Deus não é humano! Pois para Deus nada é impossível! Mas ele precisa de você tanto quando você dele. Este livro, minha senhora, meu senhor, é a chave para tua salvação! Ele já é seu! Está aqui, na nossa sede, disponível e totalmente grátis.” – Era um rapaz idôneo, o Apóstolo Moacir, afinal.

“Mas eu digo, e escute com atenção porque é preciso ficar claro: Deus não pede esmola para ninguém! Quando você vier, traga uma oferta, em nome de Deus, para sustentar a obra divina. Minha palavra chegando a sua casa, no seu televisor, custa dinheiro. A impressão dos livros, custa dinheiro. E Deus te deu saúde nos olhos para ver televisão e para ler, sem nenhum custo. Agora você não pode retribuir?” – Parecia uma troca justa, nenhuma exploração.

“Compareça agora, venha imediatamente à nossa sede, participe do nosso culto da Salvação. Retire o seu exemplar dos Versos da Fé. Não se acanhe. Traga sua oferta. Venha a pé se te restar apenas o valor da condução. Não se apegue a coisas tão pequenas e eu te dou minha palavra, em nome do Pai, que você será recompensado. Você terá sua redenção, irmã!”

Rita, reencontrada para a vida num súbito quase miraculoso, disparou a pé do apertado cômodo em que vivia, na periferia central, com todo o valor que dispunha: cerca de nove reais em moedas e um relógio de parede semi-novo. Andava desiludida depois que o marido a deixou por outra, onze meses após o matrimônio.

O marido, alcoólatra desempregado, voltou para o interior prometido a uma prima, quatorze aninhos. Rita, aos dezesseis, começara a dar trabalho na medida em que a barriga crescia. O pai de Rita, renegara a menina que fugiu de casa para viver o amor do homem que fez dela mulher, pela primeira vez. A mãe, tão materna, acatava as decisões do pai.

No caminho, Rita deslumbrava-se com as possibilidades futuras. Com Deus ao seu lado, que forças mais poderiam fazer mal àquelas duas crianças: Rita e Lucas, seu filho intra-uterino? A duas esquinas do destino, um par de luzes, fascinantes e fortes, crescia em direção aos indefesos fiéis.

Em menos de um segundo, atravessou-os tão irreversivelmente que sequer viram quando as moedas dançaram no ar sem dono e o relógio voou como um disco. Alcançaram o asfalto sem vida, trinta metros à frente. Não entenderam, afinal, o chamado de Deus, arrebatados pelo par de luzes. E o Apóstolo Moacir jamais pode desfrutar do milagre que ajudou a construir.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Acorde Real



Eram cordas afiadas feito lâminas de um fino fio de navalha. Esticadas e centimétricamente enfileiradas em riste, prontas para o ataque. Preparadas para golpes mortais embora, suas investidas, não fossem mais que a pura composição de notas limpas e harmoniosas. E resultavam nas mais doces melodias.

A executava com maestria o músico real. Satisfatoriamente calejado pelo martelar inesgotável das trinta e seis cordas desproporcionais do instrumento. Dono de uma leveza artesã, com aquelas mãos rudes. O único, entre aqueles muros, capaz de amansar o patrono. Era ele, afinal, o pupilo real. O artista.

O rei, devoto das boas trovas e canções, emocionava-se facilmente com as notas produzidas por aquelas cordas e aquelas mãos. Em especial nos desfechos em tons menores. Era apaixonado pela melancolia nostálgica. E pelo bucolismo tão próprio do seu reinado.

E os tons menores traziam recordações precoces de um tempo glorioso, do período de expansão territorial, da época em que acompanhava o pai nas aventuras homéricas pelos feudos e condados que um dia seriam seus.

O músico, incansável, tocava enquanto durava o transe memorial do rei. Emanoela, a harpa, proprietária e progenitora da melodia que penetrava os tímpanos reais e atingia abruptamente o coração do patriarca, assistia desgostosa à glória entregue ao dedilhar parasitário do músico.

De tão mesquinha, forçava enrijecer-se a fim de desafinar suas notas àquelas mãos mágicas. Mas sua birra continha-se na leveza de dedos tão delicados que, verdadeiramente, acariciavam-na como alguém que brinca com os fios de cabelo da mulher amada.

Por isso, e nada mais além disso, concedia a honra a tão distinto homem, o artista. Não que concordasse com os louros injustos dessa fama usurpada, mas concedia. Entretanto, o pupilo real, já era músico há muito. Muito antes de ser pupilo. Antes até da cerimônia de entrega da coroa.

Então, numa noite como outra qualquer, a natureza tratou de levá-lo. Sem dores. Apenas adormeceu naquela que acabou se tornando a noite da sua última apresentação, e não voltou a acordar. A notícia correu pela manhã, desolando o rei e afligindo a corte. Algumas flores murcharam, por compaixão.

Emanoela, por ser quem era, não se abalou. Respeitosa, conservou-se em silêncio enquanto durou o luto real. Por outro lado reconhecia a iminência do que seria, enfim, o reconhecimento por tantos acordes precisos. Protagonizaria as sonatas reais. Mérito tardio, mas justo.

Algum tempo se passou até que as coisas voltassem a reocupar seus lugares. Antes disso, o silêncio triste e cadavérico assumiu a coroa por uma eternidade naquele castelo e, nem o mais irônico dos trovadores, previu que era tarefa exclusiva do músico espantar a tristeza daquele lugar.

A harpa, já angustiada, implorava estática pela glória. Arriscava, de dentro do seu próprio corpo, um arranjo qualquer. Sentia-se estranha, como se incompleta e muda. Atada das próprias virtudes.

O silêncio real rompeu-se apenas quando importaram um jovem músico da megalópole romana. Promissor. Emanoela suspirou quando desabrochou do casco, enfim, após tanto tempo. Mas resmungou em desafinação quando percebeu o papel coadjuvante que iria desempenhar mais uma vez.

Por capricho dos deuses, o promissor artista era um fracasso e fora decapitado semanas depois. Mais alguns vieram e tiveram suas cabeças igualmente decepadas. Outros conseguiram fugir aos berros, apenas sem as mãos.

As melodias há muito não contagiavam aquele palácio e Emanoela caprichava em conquistar lentamente sua exclusividade, garantindo o despacho funesto a todos os pretensos artistas.

Ora desafinava, ora embolava notas e constantemente rompia cordas durante os acordes mais simples.

Orgulhou-se do seu êxito homicida por mais três ou quatro músicos. Dissimulou um apreço saudoso ao primeiro deles. Ninguém a tocou, antes ou depois, como aquelas mãos tocavam. Estava carente e começou a compreender a unidade que existia entre as mãos e as cordas. Instrumento e músico eram um só.

Quando aceitou a nova personalidade, solidária, ansiou pela chegada do novo artista, que veio. Jovem e talentoso. Centrado, passou por ela sem percebê-la, cumprimentou o envelhecido rei e voltou alguns passos. Na volta, tomou Emanoela nas mãos – arrepiada – e afastou-a para o lado, abrindo passagem para que entrasse triunfal o onipotente cravo com teclas de marfim.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Campanha de Desintoxicação




Por conta da espécie que confina minha alma, coleciono vícios. Três deles mais latentes: o primeiro imoral, o segundo ilegal e o outro, banal; mas chamarei involuntário. Não são maiores nem menores que os vícios dos outros. Mas estes são meus.

Não os evidencio porque, obviamente, me constrangem. O involuntário nem tanto, pois, “toczinho” comum. Já para o imoral e o ilegal prefiro a forca a descrevê-los com todas as letras.

De qualquer maneira trato de expô-los veladamente aqui, em público, na tentativa de esconjurá-los da minha rotina simultaneamente. Sim, todos os três de uma só vez. Campanha que nasce tendendo ao fracasso, considerando experiências anteriores.

Boa parte das minhas investidas até hoje, buscou sanar cada um dos vícios isolando-os individualmente, para que eu me concentrasse em sua total erradicação. O que acontecia, afinal, era o exacerbado consumo de qualquer um dos outros dois. Especialmente o involuntário, sempre menosprezado. Exercício à ansiedade.

Dessa vez, a empreitada sugere a dedicação absoluta. Isso significa ocupar meu ócio com outra coisa que não o desperdício moral e social das atividades escusas às quais venho me dedicando. Sem mencionar todo o tempo consumido.

Por isso travei um pacto comigo mesmo, no 1º de maio de 2010 (dia simbólico), de jamais repetir uma única vez nenhum dos três tormentos psicopatológicos da minha vida. Psico, pois são inconscientes e alienantes; patológicos porque são mais fortes que eu. E me ferem.

Bem, da data em diante, é válido mencionar que dois desses vícios foram fáceis no primeiro dia. Concentração maior no involuntário. É que crise de abstinência surge com mais tempo, já a ansiedade é imediata!

E ainda, pela perspectiva indeterminada da cessação dos vícios, a ansiedade é total. Por isso, logo perdi o controle do involuntário, na primeira oportunidade. Me dei conta já com a mão na boca. Aliás, declarações metafóricas à parte, este eu posso sim declarar: Rôo as unhas! E com uma compulsão de me tirar do ar.

Foi assim que passei os dias subsequentes: Enfrentando os dois primeiros vícios, consumindo o terceiro. Eis minha indiscreta compensação. Honestamente, pareceu funcionar. Até que sucumbi ao ilegal. Pouco menos de uma semana depois do início da campanha. Delinquente...

Horas depois, recaí no imoral. Mentira! Minutos depois, em seguida. A campanha, “natifalida”, tinha perdido o propósito. Eu estava convencido disso. E derrotado, fisicamente. Sem cruzar sequer um final de semana “limpo”, já tinha me poluído novamente.

E hoje, 21 de maio de 2010, com menos de um mês, já sucumbi e retomei a campanha outras duas vezes. Estou no meio dela, aliás. Quatro dias inteiros livre dos vícios. Dois deles. Nada é tão pleno assim nessa crônica desvirtuosa.

Mas, pelo satisfatório e pelo incompetente, encerro escrevendo devagar, uma tecla de cada vez, só a mão esquerda. Habilidade adquirida com esmero, para roer a ansiedade saborosamente, dedo por dedo.

Vício invencível! Antes fosse só ele, vício público, declarado. Esconjurado ainda que encalacrado a mim, como o pecado original ou a dívida externa. Maldição transcendental, muito maior que minha pequeneza humana.

Por outro lado resisto aos outros dois. Bravamente! Resisto em aceitá-los e também em abnegá-los. E sigo administrando, com os dedos superficialmente dilacerados, enquanto não descubro o meio de aceitar, desculpado, algumas das minhas fraquezas.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Família Malta e Wildner


Me manda uma mensagem na quarta-feira, bem no meio da lua, no meio da semana, o meu digníssimo irmão: “Sexta-feira eh nois no Wander Wildner no zeh?” – e lá se foi minha programação oficial de sexta: Inscrever um conto ainda não escrito no meu primeiro concurso literário. Porém, se aprendi algo com Don Corleone é que “um homem que não se dedica a familia nunca será um homem de verdade”. Oferta, ou melhor, compromisso irrecusável.


Preparei-me para a fatídica noite, dormindo tarde (e pouco) nas outras duas noites que antecederam o evento. Tentativa frustrada de antecipar a concepção do conto e, não interromper meu cronograma inicial. Não só patinei por duas madrugadas, como consumi parte da energia estocada para sexta. Mas nada que um sábado sem despertadores não resolvesse.

E na manhã da tal noite, tive a ideia mais que brilhante de confeccionar uma camiseta básica, branca, com os dizeres: “Eu te amo” – Mas interrompo com o parêntese de que é preciso estar a par de Wander Wildner para entender a doce brincadeira. Meus bons companheiros Parada e Kaminsky sabem bem, meu irmão e eu também!

Infelizmente, pela mais displicente falta de disposição, abortei da missão ao longo do dia, mesmo que temendo, em paralelo, o remorso posterior. Enfim, o dia passou, as lojas fecharam e o projeto “Eu te amo” parecia ruir. A noite chegou e, poucas horas me dividiam de um terceiro reencontro com o Sr. Wanderley Luis Wildner.

Solicitei então, em clima de última esperança, os dotes artesanais da dona Suely (minha mãe) e, às pressas apareci agitando uma velha camiseta branca: “Mãe, escreve ‘eu te amo’ com alguma das suas tintas?” – Saí de cena para não pressionar a arte e, quando voltei, me deparei com a esperada frase em letras psicodélicas. Veio a explicação: “Seu pai achou que ficaria melhor, escrito desse jeito. Daí ele desenhou o contorno” – Brilhante!

O evento Wildner acabou se tornando, discretamente, uma ocasião familiar. Corleone é que tinha razão, família é tudo! Parti inspirado (e bem trajado) para o tradicional Bar do Zé e durante a pausa para a janta, sem família, mas, igualmente bem acompanhado, refleti sobre como os gestos familiares são executados em prazeres gratuitos, apenas pelo bem alheio e, ainda que nem tudo esteja exatamente bem.

O show decorreu perfeito, diversão à parte estar às doses com meu irmão. Não me fez falta a falta de percepção do ídolo para a homenagem estampada em mim. Nem fez falta, a impossibilidade de uma foto depois do show. A noite havia sido consagrada antes, horas antes e, também, dois dias antes, quando a oferta veio à tona.

No sábado pela tarde, ainda em recuperação, os preparativos para a viagem do dia das mães. Filhos com a mãe e pai com a avó, separação tradicional da data, indolor. Às sete horas da noite, durante o passeio em trio pelo supermercado, para os ingredientes da janta e sobremesa, liga zeloso, meu pai: “Chegaram bem?”; “Chegamos, esquecemos de ligar, desculpa.”; “Tudo bem, divirtam-se aí. Manda beijo para todo mundo.”; “Um beijo pai!” – Família...

domingo, 9 de maio de 2010

Entre as Flores e a Vida


Descem suaves as rosas céu abaixo, contrastando na paisagem metropolitana. Deslizam lentas e vermelhas pela cortina infinita do azul turquesa no horizonte, como se caíssem sobressalentes do Éden. E giram sinuosamente o caule e agitam as pétalas como pequenos pássaros aprendizes. É a mais deslumbrante visão, jamais vista antes e jamais revisitada depois. Única: A chuva de rosas.

Em todas as direções pontos vermelhos surgem, uniformes no início, infestando o céu rigorosamente em linha, como em desfile militar. Em seguida, pelo volume que aumenta, o moderado contraste das cores começa a se transformar em fusão. Azul e vermelho são agora roxo, um roxo incandescente. Já não mais duas cores mescladas, mas, uma unidade, vívida e brilhante.

Ao mesmo tempo, a particularidade do evento provoca um zumbido cadenciado e melodioso. Uma música selvagem. Primitiva, pois, é a sucessão de tons, maiores e menores, de uma mesma nota. Aguda e contínua. E tão bonita executada à perfeição pelas flores, em uníssono. Sutil e marcante, aos ouvidos delicados daquela jovem, predisposta a passar o resto da vida nessa exata condição: observando o que vê e ouvindo o que escuta.

As rosas, distintamente caprichosas, aproveitam a situação para disseminar seu cheiro pelo ar. O tempero olfativo, suave e silvestre. Inebriam aromáticas toda a extensão das coisas que alcançam os olhos e os narizes. E, provavelmente, o além, mas ninguém poderia dizer, naquele cenário quase inabitado. Todo o ar, misturado à umidade, é contaminado pelo perfume das pétalas agitadas e, todo o roxo exala, agora, a orvalho matinal.

Setenta metros abaixo corre o Tamisa, majestoso. Toneladas de litros de água pura e translúcida evidenciam a abundante diversidade aquática submersa naquele carpete líquido. O rio abraça com minucioso zelo cada uma das rosas que interrompem a dança em sua superfície. Lá elas pousam delicadamente e se entregam, alimentando as trutas e as arraias. Mas, incansáveis na queda, as flores aladas cobrem o rio em um rubro fulguroso.

Janine paira no topo da Tower Bridge, absorta e catártica, não desequilibra porque não há brisa para lhe atingir a face desprotegida e desabrigada. Não sente o rosto ou os braços. Nem o tronco ou as pernas. É apenas sentidos. Embriaga-se com o conjunto todo, todos os sentidos alinhados, alienados.

Sua visão panorâmica foca todos os ângulos ao mesmo tempo. Trezentos e sessenta graus da Londres contemporânea. A cidade toda em preto e branco, escondida ao fundo do ofuscante painel roxo, não chama a atenção. Sem brilho, serve de aparador à chuva rósea. A moldura discreta para a grande obra de arte. Não há vida nessa Londres, apenas silêncio. Não há carros ou motos, nem ônibus, metrôs e balsas. As ruas inóspitas convidam Janine a se manter no topo da torre, segura e longe de problemas.

Como foi parar lá? Simplesmente acordou. Despertada de um pesadelo que já não se recorda da origem ou essência, quando abriu os olhos estava onde está. Feliz. Não se lembra das próprias angústias, ainda que não sejam poucas nem amenas. Mas aflições ali, não importam mais. A visão é entorpecente. E há muito tempo Janine não ocupa a cabeça com um pensamento apenas. E belo.

Quando sente a brisa invadindo forçosamente no íntimo, Janine se deixa impulsionar para fora da ponte, sem solavancos, em câmera lenta, aliás. Bóia inerte com as rosas, no meio delas, uma delas, despencando muito calmamente. Se aproxima do rio, toca a água e continua flutuando a caminho da cidade em preto em branco. Desliza pelo Tamisa se despedindo dos novos amigos que não fez, peixes e arraias. As rosas escasseiam e as cores voltam a se dissociar, vermelho e azul, só azul, preto e branco apenas.

Pelas ruas, segue flutuando, tão leve que não percebe a distância próxima do chão, mas sente não encostar. Vagueia, ainda absorta, pelas ruas vazias, sem vida nem cor. Reconhece vilas do passado, lugarejos de bons tempos, quando não existiam problemas. Ouve as vozes da infância, as gargalhadas e as cantigas de roda. Passa por praças do presente, momentos menos frequentes de felicidade, mas a felicidade adulta, moderada e provisória.

Mais adiante, lá no fim da rua, a porta de casa – verde oliva – se destaca no meio da cidade desbotada em tons cinzentos. Começa a se aproximar, sabe que não pode. A felicidade não mora lá, apenas Janine. E ao tentar frear o caminho involuntário que faz em direção à própria casa (à própria vida), Janine percebe a falta de controle dos membros. Não há força nas pernas porque não há pernas. Não há resistência nas mãos porque não há mãos, ou braços.

Janine é apenas sentidos, sem massa ou matéria. Serpenteia pela rua a caminho da porta verde oliva. Para em frente e resiste à realidade. O mundo agora pulsa à sua volta e este pulsar, vigoroso e ritmado, a tira dos eixos. Gritaria se dotasse de cordas vocais neste instante.

Porta adentro, angustia-se mais e mais a cada cômodo percorrido. Chega à cozinha e observa seu corpo, no chão, sofrendo espasmos violentos enquanto expele uma espuma branca e viscosa da boca. Começa a retomar a vida real, os problemas reais. Choraria, se fosse biologicamente capaz. Ao seu lado a seringa usada se perde no chão, ao pé da mesa. Uma colher de cabo longo descansa ao lado do isqueiro, no canto da mesa de jantar.

Lembra-se então,de como foi parar na ponte: A ordem de despejo ao lado da colher, os classificados de emprego, a despensa vazia, a cama vazia, a casa vazia, a vida... vazia. Aproxima-se do corpo, que vai perdendo os sinais vitais a cada instante.

Fecha os olhos e os torna a abrir, agora dentro do corpo, ofegante. Levanta ainda zonza e reconhece cada um dos itens maquiavélicos do seu suplício. Caminha o corpo pesado até o banheiro e contempla no espelho a expressão do seu rosto, pela vida e pela morte: fracasso.