domingo, 30 de março de 2014

Do que me Alimento



Estou todo lambuzado e estufo o peito para dizer! Sabe aquele bolo de mãe que você espera babando, sem nem deixar a cozinha, até que o bicho esfrie ao ponto de ser, categoricamente, devorado? Era assim que me sentia até ontem, pois hoje, sujo, saciado e todo lambuzado!

E que delícia! São só palavras, mas, analogamente, são também só raspas de chocolates... Me esbaldei! Tenho agora letras grudadas no rosto todo. Escorrem pelo pescoço e pousam na altura do coração. Sinto-me sinceramente alimentado. Cada um com seus nutrientes. Eu como letras!

Letras que se integram e se agororobam, que formam um bolo de palavras, indescritível e saborosíssimo. Um bolo de palavras que têm no topo, a cereja da personalidade. Não como-leio, necessariamente, quem deva ser comido-lido, mas, apenas quem me sacia na pança e no peito.

Vamos falar de amor! De sonhos e de todas as nossas angústias. Vamos desabafar como se confessássemos ao espelho nossos temores que, isso, me abre o apetite a ponto de roncar o músculo. Conta para mim o que se passa porquê, assim, outorgo o tempero da minha alma.

A fome se mistura a falta de apetite quando me alimento de porcarias, mas, quando como o nutriente certo, me sinto com as energias recompostas. Chego a arrotar, ruidosamente, o alfabeto inteiro. Pois eis o endereço, no topo da página, para garantir a veracidade do dito!

São só palavras, eu sei. Mas as palavras certas. Decidi (há pouco) mudar minha dieta e comer quase só o que me faz bem, apenas palavras, não conta lá em casa. Vou ao mercado sempre que a dispensa ocaliza, se atentem estimados, pois, quando eu chegar, por favor me alimentem!

domingo, 23 de março de 2014

Anoiteceu Dentro


É desesperador, mas, constato: está ficando tarde. Lá fora escureceu e, aqui dentro, também. Uma luz turva e fraca é o que me resta e não serve. Já não consigo ver e creio que a cegueira natal teria sido menos cruel, pois, olhos sadios no breu, são nada mais que falsa esperança!

E para quê diabos me servem as falsas esperanças já que, até mesmo as esperanças verdadeiras são perigosas? E que tremenda violência conviver com a memória dos dias claros. Os detalhes e a clareza do sol batendo na alma. A nitidez da auto-estima. Tão alta! As palavras que fluiam...

Hoje não. Olhos cerrados e veias saltadas em um esforço feio e medíocre para encontrar um qualquer enredo que mantenha os olhos iluminados. Agora é tarde, caros amigos. Está escuro e não há mais nada que possa ser feito. Talvez amanhã. Quando amanhecer amanhã, talvez...

Por enquanto noite! Uma longa e interminável noite. Fria e sem lua. Suaves tropeços e pequenos passos rastejantes no escuro me mantêm vivo. Mas não muito. De todos os sentidos, o que mais faz falta é o que me falta. Nenhum dos cinco perceptivos, mas, aquele etimológico e original.

Porém, reforço que enxergo! Envolto na completa ausência de luz, enxergo. Mesmo assim, é como se cego. Surdo, anósmico, ageunésico e anestésico. É como se morto, companheiros, se isso facilita a compreensão! Defino agora, do alto da minha derrota, que os dias claros se foram!

Bons. Mas extintos. Até que, quem sabe um dia, amanheça...

domingo, 16 de março de 2014

Suco de Banana


 Encaixo no lugar, toda a parafernália do meu espremedor de laranjas e separo uma penca de bananas. É um esforço dos diabos extrair suco de banana! Talvez, tivesse sido mais fácil espremê-las com os punhos, e claro, teria sido mais fácil ainda espremer laranjas. Mas não hoje!

Hoje tenho apenas bananas e uma sede que me resseca a goela e raspa a saliva de ponta a ponta na garganta. Acho que o nó que dizem que dá, não é figura de linguagem, afinal de contas. A sede exagerada e a falta do que beber criam uma espécie de caroço que trava até o oxigênio.

E cérebro mal oxigenado dá um barato estranho... Uma coisa muito louca, porque oca. No fim, deve ser isso, o fluído certo na boca, que empurre o caroço para baixo e desobstrua os pulmões. Fluído certo é laranja, eu sei, mas, que faço eu se apenas uma duzia de bananas nas mãos?

Espremo! Aperto e empurro. Pronto! Abaixo do espremedor, meia caneca de um creme esbranquiçado e feio. Em volta, vestígios do mesmo creme, espalhados por toda a cozinha. Meto o copo na boca, torcendo para que o pseudo-suco surta algum efeito positivo nessa sede súbita.


Mas a droga da papa de banana entala na garganta e corta de vez o tráfego de ar. Agora é tarde, em pouco tempo cairei roxo no chão frio da minha cozinha. Morto. De Sede e frustrado. Bananas? Que ideia! Que ideia? Como eu queria ser do tipo de cara que espreme laranjas...

sexta-feira, 7 de março de 2014

Odara


Odara costuma se gabar que fora Caetano quem a batizara! O próprio Caetano Veloso! Odara é filha única de Maria do Carmo e Maria do Carmo é fã de Caetano. Caetano não conhece Maria do Carmo, mas é fã de Talking Heads. E David Byrne, da tropicália. E ele conhece Caetano!

Mas Byrne não conhece Odara, a filha da Maria do Carmo. Caetano também não. Odara vive no Rio Grande do Sul e, Caetano, no Rio. Odara gosta de conversar e sempre se anuncia como afilhada de Caetano, porque todo mundo já ouviu Odara. Mas Odara não sai muito de casa.

Nessas férias, para variar, comprou passagens para o Rio. Não tinha nenhuma intenção de conhecer Caetano, mas, disse a todo e qualquer um que cruzasse seu caminho, que viajava para encontrar o “dindo” na cidade maravilhosa. Depois contava que fora Caetano quem a batizara!

No voo, sentou-se ao lado de um sujeito grisalho, que falava coisas que ela não entendia. Odara é péssima em línguas e o sujeito entendia muito pouco do português. Odara ainda tentou se apresentar por duas ou três vezes, antes de desistir do sujeito e se apresentar à comissária.

O homem aproveitou para pedir uma dose de vinho. Byrne, fizera um show em Porto Alegre na noite anterior e estava cansado. Agora, voava ao Rio para encontrar o velho amigo Caetano e, Odara, que distraía-se com a TV interativa do avião, não fazia ideia de quem era David Byrne!

sábado, 1 de março de 2014

Tobias e o Sonho de Sete Centímetros


Tobias era um cara simples, desses que são sinceros por pura inocência. Costumavam pensar que Tobias tirara a sorte grande em um concurso público, pois, batia ponto no Banco do Povo.  Só não sabiam que Tobias tinha um sonho e que, apodrecer num cargo estúpido, era sua punição.

Arquivista! Tobias era o arquivista da unidade em que trabalhava. O único arquivista de uma pequena agência na região periférica. Um cargo que exigia pouco e pagava para que ficasse sozinho a maior parte do tempo, como gostava. Tobias era simples, com um sonho apenas.

E já tinha, pelo menos, dez anos que Tobias metia-se por oito horas ininterruptas nos fundos daquela pequena agência, todos os dias de sua vida (exceto os dias santos), buscando apenas solidão. Nesse tempo descobrira que, solidão demais atrai atenção, e prezava pelo anonimato.

Por isso, todo ano, no fim do ano, os funcionários da agência organizavam uma típica confraternização que, a Tobias, parecia nada mais que um sádico ritual, necessário para determinar a paz ao longo do ano seguinte. Portanto, ali, socializa com seus colegas!

Uma vez por ano e só. Cerveja, amigo secreto, karaokê e toda a algazarra prevista para uma festa de fim de ano. Tudo o que abominava. “Como se o ano que vem estivesse a milhas de distância e como se fôssemos esquecer toda a merda dita aqui amanhã!” – Ele pensava.

Mas sorria e acenava positivamente. Definitivamente não entendia o ser humano. Toda vez, no alto álcool da festa, alguém o chamava para proclamar seu sonho. Enfaticamente dizia: “Queria ser ator pornô!” – “E o que te falta?” – Replicavam – “Cerca de sete centímetros” – Treplicava.

As pessoas riam. Quem o conhecia e quem não. E garantiam, todos, entre aplausos e acenos positivos, que Tobias era gente boa! Tobias, atônito, contribuía com um sorriso incrédulo, capaz de dissimular as lágrimas de uma imensidão inatingível, de apenas sete centímetros...