domingo, 31 de janeiro de 2010

Costumes


Não se costuma trair os costumes. No interior agrícola onde a hierarquia familiar é um fardo perpétuo e o matrimônio uma etapa obrigatória, não há espaço para um certo alguém. Caem os costumes.

Desde jovem, o desprendimento aos valores do lar tratava involuntariamente de excentrizar aquela criança imune aos sonhos arcaicos dos pais, avós, tios e amigos. Tinha ambições, anseios transcendentes à sua condição rural. Arrastou-se inerte. A puberdade precoce se encarregou de apresentar novas formas ao corpo frágil da infância, cuidando em não sobrepor um milímetro a suavidade das curvas ou a delicadeza da pele. Aprendeu a amar. De maneira submissa e voluptuosa, atacava suas presas com a feracidade de um lobo faminto e, ao mesmo tempo, se entregava aos desejos alheios feito cordeiro indefeso. É como se o excesso de hormônios extravasasse sem rumo, à procura de norte. Era apenas uma criança.

Subversivamente inocente, corrompeu fêmea, um a um, os garotos mais promissores da sociedade. Buscava saciar-se ou descobrir-se. Virou boato. Atraiu a indesejada atenção dos pais. Tão moralistas. Nasceu em berço esplêndido e tinha competência para o baronato, mas desperdiçava cada oportunidade de manter as aparências em aventuras libidinosas com garotos ainda mais inocentemente pervertidos. Escolheu a enclausura. Segundo os pais, uma escolha.

Entre internatos e mosteiros, acumulou quase quatrocentos dias de desejo juvenil. Comportou-se castamente. Quando em casa, de volta aos costumes, no meio dos compromissos de um futuro condicionado, conheceu Luan: Homem, viril, engenheiro agrícola, sujeito da cidade, dono de posses. Homem! Luan nunca duvidou da sua competência para o sexo oposto. Galanteador, voltou dos estudos prometido à insossa Clarinha, da família Moreira. Era o destino planejado pelos costumes. Despertou a atenção coletiva. Mais que isso, despertou o talento para a lascívia naquela criança reformada sob a tutela divina. Mal sinal. Despertou e foi despertado.

E aquela experiência repentina e nova, avessa à moral e aos costumes, aguçou o desejo mútuo, permitindo-os descobrir o prazer sincero da monogamia. Homem e mulher, indistintamente. Atinaram seus hormônios em um relacionamento físico e emocional. Puro, embora ainda pernicioso. Encontravam-se às escondidas no estábulo e na praça, durante a madrugada, quando todos os olhos se fechavam. Conservaram-se proibidos por algum tempo. Desconhecidos, aos olhos alheios. Extrapolavam toda a sensualidade e desejo em longas e tórridas madrugadas. Amavam-se.

Planejaram, juntos, a fuga para a capital. Era o plano perfeito, Luan tinha amigos. Instalariam-se no centro. Debandaram de mãos dadas, duas ou três madrugadas depois. Amaram-se mais alguns meses, ludibriados pelo sucesso do plano. Mas a falta de oportunidades à engenharia agrícola naquela cidade transportou Luan de volta ao interior e à Clarinha. Abandonada e de coração partido, a segunda metade daquele romance, instintivamente convertida em líder do lar, possuía perspectivas ainda menores. Voltar para casa não era possível, fora excomungada.

Acolhida pelas meretrizes mais exóticas do centro, após os primeiros dias de fome e desamparo, entendeu na lascívia natural a possibilidade de manter-se viva. Desenvolver-se profissionalmente. Pertencia a um novo círculo social. Aprendeu sem esforços a lidar com o ofício. Estabilizava-se e enriquecia. Investia no corpo. Transfigurava-se rapidamente em mulher vistosa, desejada por maridos infelizes, velhos pervertidos e todos os tipos de curiosos. Era exuberante.

Sorriu delicadamente quando se deu conta da realização. Era quem almejou ser quando ousou romper os costumes tradicionais do distante interior. Não lhe faltava a família, não se prendia ao passado. Era feliz sozinha e administrava o próprio negócio: o corpo. Encontrava-se satisfeita.

Levou adiante sua felicidade como se fosse preciso saborear meticulosamente cada instante. Entendia a validade daquele período. O tempo é avassalador. Passaram-se vinte anos da vitoriosa emancipação e o desejo nos homens começava a escassear. Era o começo da ruína. Novas mulheres despontavam nos arredores do centro, mais formosas e versáteis. Os primeiros sinais de desprezo, ainda discretos, denunciavam o encerramento de uma Era. Fazia-se necessário encerrá-la dignamente.

Debruçou-se então no parapeito da janela da sala. Calçava seus melhores sapatos, vestia seu vestido mais elegante e maquilou-se como uma diva. Fitou suas conquistas materiais por um instante, não tinham valor. Abriu os braços convencida e, sem cerimônia, atirou-se em silêncio do vigésimo andar. Na queda, lembrou-se de Carlinhos, o menino delicado e condicionado que fora na infância. Suspirou orgulhosa por transpor os costumes. Fechou os olhos e estatelou-se no chão. Desfigurada e feliz.

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