domingo, 31 de janeiro de 2010

Alô boêmio! - Disse o boemista


Venho dizer: Não existe mais a boemia! Não aquela boemia destilada e pura do século passado. Não a boemia de Noel, Lago, Gonçalves e Cartola. A vida boêmia, como conhecemos, perdeu o caráter. Não há mais boêmios atuantes, apenas nostálgicos resgatando, no ócio, aquele sentimento tão digno do brasileiro. O bom brasileiro, que consagrou o ato da vida noturna como filosofia de vida, diferente do estar boêmio dos dias atuais. Nós que saímos à noite, de bar em bar, em busca das propriedades metamórficas do gole e da poesia movediça do álcool, aprendemos que naquele instante os deveres mais pragmáticos da vida se dissolvem a cada teco ingerido. E o que sobra é devaneio.

Concedemos-nos o clemente direito de perpetuar os “valdevinos”. Honramos a eles nosso torpor e oferecemos, em penitência, nossas ressacas mais agudas. Somos a representação da nova boemia, século vinte e um. Boemistas , não boêmios. Nossa disposição não é condicional, mas, sazonal. Não somos, estamos. É preciso ratificar isso! Brindamos ao momento noturno do prazer ébrio sem vivê-lo com a intensidade de quem o faz naturalmente. É um esforço ser um boemista! É preciso trabalhar duro, o dia todo, todos os dias da semana para (com a energia que resta) subverter-se entre biritas e lirismo.

Entretanto o celular está logo ali, banhando-se em gotas de cerveja e respingos de cachaça. Impondo limites. Pronto para destroçar nosso momento mais artístico e nos transportar de volta à infelicidade regrada dos afazeres mundanos. Nossas contas e responsabilidades. A vida real. As vezes tentamos, constrangidos, não dar vazão a esses sentimentos tão soturnos (patrão, esposa, filhos, emprego) e ignoramos os espasmos vibratórios do aparelho, mas, distantes da malandragem como estamos, acabamos cedendo, involuntários, ao horário, ao dia seguinte, à missa. Protelamos assim, noite após noite, a poesia.

Chico ousou reconhecer, mais de uma vez, que perdeu a viagem “naquela tal malandragem que não existe mais”. Sabia da condição temporal da sua geração, já pós-boêmia. Bebeu do néctar da primeira safra de neo-boêmios, os filhos da Bossa: Tom, Vinícius, Bôscoli, Gilberto, Lyra. Tornou-se um dos representantes do boemismo. Somos boemistas hoje, porque Chico e a Bossa foram boemistas há cinquenta anos. E só o foram, porque Noel e Cartola foram boêmios há oitenta. E seríamos todos, boêmios na essência, não fosse a evolução da parafernália tecnológica que não nos deixa desligar-se.

Bons tempos aqueles que foram, quando era possível esconder-se. Quando a tecnologia não passava de elucubrações do distante ano dois mil, e a Lapa carioca desfilava navalhas e chapéus (não, eu não estive lá, só ouvi dizer). Hoje o dia começa cedo, com o despertador do celular ditando as horas e o “re-despertador” gritando em seguida, que já se passaram dez minutos. Vinte, às vezes. É o patrão e os clientes ligando o dia todo, a esposa e os filhos à noite. Deveres e mais deveres. Não há tempo para a imersão boêmia, não há espaço para a criação espontânea de cinco dias seguidos de anestesia ébria. O mundo derrotou os boêmios. A metrópole, berço, tratou de assassiná-los.

E nós, herdeiros, os perpetuamos, esporadicamente, em caráter de louvor, não em caráter de caráter. Morreríamos de fome. É um acordo com o novo mundo essas horas de quase dedicação plena e verdadeira à arte. Não podemos sê-los, porém, devemos mantê-los. A instituição brasileira da boemia! Temos a responsabilidade social, artística e nostálgica do brinde. Mesmo eu, um quase abstenho convicto.

3 comentários:

Slope disse...

E aí? Vamos tomar duas?

Fabiano Malta disse...

Hahaha! Consider it done!

Juan disse...

perfeito!!!
bravo!!!

seguimos assim, entre o samba da praça dom josé gaspar e o paciente para atender no sabado cedo!
e a tarde jogar bola e ir pra esbórnio novamente, mas lembrando como Paulo Vanzolini diz: "Os pecado de domingo quem paga é segunda-feira"