terça-feira, 20 de setembro de 2011

Somos Todos Loucos


No fim do ano, gostava de meter-se nessa cabana, no Bosque das Corujas, onde ninguém mais ousava penetrar, e passava de duas a quatro semanas isolado do mundo. E dos vivos. Gostava, afinal, de provocar os limites da sanidade. Sanidade que, aliás, era um desafio à família Lupe.

O pai morrera atirando-se de um elástico à lua; a mãe ouvia os conselhos de uma rã empalhada; o irmão julgava-se invisível e; muitos parentes flertavam com a loucura de mil formas diferentes. Manoel esgotava sua sanidade a fim de treiná-la. Por isso a cabana funesta.

Seu passatempo preferido, lá no fim do mundo, era dialogar com os clássicos de Poe, Quiroga, Guy de Maupassant e os irmãos Grimm. Tratava de levar dezenas de versões traduzidas em outras dezenas de línguas e as retraduzia, livremente. Tentando orações ainda mais sombrias.

Às vezes, ousava readequar o final, na petulante crença de poder adaptá-lo à cabana, como se provocasse o oculto e o desafiasse a penetrar em sua fortaleza de autocontrole mental. Escrevia à pena, na alta madrugada e sob a luz rala das velas. Porque assim se aproximava.

Depois, despedia-se da cabana e ateava fogo em cada uma das histórias que criara. Debochava do sobrenatural e regressava à cidade, à rotina e à sanidade intacta. Ria pelo caminho e inflava profundamente os pulmões, inspirando para dentro de si, um mundo incapaz de atormentá-lo.

Assistia, ao longo do ano seguinte, mais Lupes cederem à loucura. Alguns confiavam no diagnóstico e tinham uma vida razoável nos manicômios. Outros, completamente fora de si, acabavam lobotomizados e vegetalizados. Manoel temia acabar como os mais exaltados.

Então, quando o ano se encerrava, repetia a viagem e todo o ritual. Passava outras quatro semanas (não confiava mais na quinzena prima) dividindo e boicotando histórias tenebrosas dos grandes mestres, e incendiava tudo ao final. Vitorioso, aliviado e, cada vez mais são.

Passava todo o novo ano se convencendo da liberdade à sina familiar. Casara-se, tivera seus filhos e em alguns anos era um dos poucos Lupes. Em mais alguns, a única corrente de sangue Lupe vivia sob seu teto. A família da loucura (como diziam os psiquiatras) beirava a extinção.

Manoel não tardou a educar seus filhos a vencer o carma que ceifou toda a genealogia do sobrenome. Arrastou-os para a cabana e os fazia reinventar o Chapeuzinho Vermelho, João e Maria e a Cinderela. O mais jovem ia muito bem. A menina, Cícera, discordava do método.

E isso me aproximou, finalmente, da vertente derradeira daquela família. Em um dos natais na cabana. Enquanto Roni (o mais novo) reformulava a saga da Branca de Neve, no Bosque das Corujas, Cícera rabiscava despretensiosa, golfinhos, nuvens e um arco-íris, no chão do quarto.

Assim, sorrateiro, entrei pelas frestas das tábuas da parede, como uma rajada de vento, e estacionei em seu ouvido, sussurrando Jonas, Janine, Lilli e o Bravo Cavaleiro. Minha ínfima oferta à contrariedade da sanidade. Matei todos os outros, Manoel também haveria de cair!

E enquanto Cícera vagava numa epilepsia ocular, eu babava o sucesso da minha inserção maquiavélica. “Em breve. Em breve!”. Porém, acabo atravessado no meio pelo corvo de Poe e Manoel parado à porta. A pena corria firme pelo papel e, por trás, riam Quiroga e Maupassant.

Enfiei-me nas frestas e desapareci no bosque. Porque não sou capaz de chacinar uma família abençoada pela maldição dos grandes. Porque os temo! A minha minuscularidade os teme. Rolei as colinas do bosque abaixo e regressei ao meu vale medíocre das rosas sem espinhos.

Nenhum comentário: