terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cem Velas


Luzes apagadas e todos que estavam ali presentes, feito romeiros velavam mudos a pequena Eulália, que era frágil mas, ao mesmo tempo, imponente. Estava no meio, o invisível centro das atenções. Autora ou “co” de cada ser naquela ampla sala branca, enegrecida pela falta de luz.

Velas acesas, cem delas. A meia-luz que delineava os corpos inertes na penumbra da tardia homenagem àquela que deu a vida por todos eles. Discípula da imaginária Santa Úrsula de Macondo (capricho de Márquez, não canoniza-la!), sempre viveu a vida dos outros. A família...

O incômodo ofício matriarcal mas, o prazeroso e autossuficiente sacrifício de ceder às manhas das crianças ingenuamente cruéis, dos adolescentes intransigentemente brutos e dos adultos inconsequentemente infantis. Eulália suportou seus cem anos sem um sorriso de gratidão.

Ainda assim lá estava, finalmente celebrada. Havia quem duvidasse que tantos familiares pudessem ser reunidos. Especialmente em uma família tão grande e tumultuada, conhecida pelas desavenças e as picuinhas. Bem diferente das outras famílias (a minha e a sua).

E mantinham-se em um fúnebre e desagradável silêncio desde que chegaram, todos os desaventes. As crianças, que entendiam muito pouco da vida, corriam e gritavam com seus carrinhos e bonecas. Curioso, mas eram os mais afinados com a proposta da reunião: Alegria.

Não havia mais alegria que remorso naquela sala. Não se sabia o sentimento exato, mas a cena provocava uma atmosfera melancólica, fundida a uma súbita complacência. Todos se entreolharam e, mesmo as endiabradas crianças entraram, confusas, na culpa dos adultos.

Depositaram seus brinquedos voluntariamente dentro de um velho baú, esquecido em um canto do quarto, e juntaram-se aos pais e avós, no maior e mais sincero abraço coletivo. Ainda que fora de tempo. Era tão sincero que ninguém confundiu com amor. Apenas homenagem.

E até Eulália, com seu jeitinho inexpressivo de se expressar, dissimulava de olhos fechados a total satisfação daquele gesto. Como se cem anos inglórios valessem de repente a pena. Houve um profundo suspiro que tomou a sala e selou a paz provisória daquela noite sem desafetos.

Alguns arriscaram uns sorrisos, correspondidos. Outros ofereceram lágrimas arrependidas que, acatadas, transcenderam o pacto da noite para as próximas noites e, até que se fizesse o próximo desafeto. As crianças riam e se divertiam na pequena ciranda que formaram ao redor.

Do alto do seu lugar de destaque, no meio da festa, no centro dos olhos, a matriarca permanecia estática e inexpressiva. Talvez poupasse esforços para sentir a energia nova que contagiava sua prole. Talvez qualquer esforço acabaria ruindo aquele improvável cenário.

Do lado do velho baú, enfeitado com dezenas de tulipas e orquídeas coloridas, surgiram delicadas notas de uma flauta doce. Da penumbra, alguns identificaram Manoel que assoprava, espontâneo, a música preferida da bisavó. Ela então sorriu, irresistivelmente.

Delineadamente, seu rosto tomou outra forma. Angelical. Nunca foi de expor suas emoções abertamente. Embora as reconhecesse. E não houve espanto. Porque era bonito de ver. Sua afetuosidade, maior que a de todos, estava enfim evidenciada ali, para sempre.

As velas queimavam abundantemente e, antes que a beleza das notas de Manoel se dissipassem, os convidados entoaram, em uníssono, uma sessão de aplausos. Cadenciada. Clichearam um cântico de felicidades e longa vida, exaltando Eulália no final.

Quando o silêncio invadiu (bem menos pesado) a sala novamente, Eulália abriu os olhos. Inflou os pulmões e os esvaziou em seguida, apagando bravamente as velas. Luzes acesas e a vida então retomou seu rumo, bem menos rancorosa e egoísta que nos últimos cem anos.

Um comentário:

Diva disse...

Oi Fabiano, fiquei feliz por você continuar postando seus contos. Adorei esse, me lembrou um pouco do Saura e, naturalmente, Machado. Adorei.