sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Quando o Mundo Acaba


Fim do dia era como se o mundo inteiro acabasse. Um poderoso e sísmico cessar da vida. Indigesto. Voltar para casa, a casa de todos os dias, há muito tornou-se um desafio à sanidade. Nada havia mudado no cotidiano daqueles dois, mas, agora, tinha idade para compreender.

E por se dar conta da sujeira silenciosa que envolvia aquela relação, arrepiava a pele e enojava-se toda vez que tomava o rumo do casebre azul e branco na Vila Genésio. Morar era uma necessidade, porém, livrar-se daquilo, uma realidade muito distante. Uma menina ainda...

Quando deixava o colégio da Vila, fim da manhã, Amelinha partia para o roçado, mas não sem antes empilhar todos os gravetos e palha que encontrava pelo caminho. Era a segurança de, no começo da noite, postergar seu regresso ao maculado lar e, com sorte, dormir em paz.

Carregava nas costas a pesada pilha de galhos e folhas secas e, as vezes junto, um ou outro escorpião. Não se abalava. Era a única forma de garantir que a fogueira queimasse alta e levasse junto os desejos impuros do seu algoz. Ali, estaria entre amigos, até o fim do fogo.

Só quando o calor e a brasa se dissipavam, ela voltava ao casebre azul, sorrateira e alerta, rezando para encontrar Romualdo vencido no sofá. Como de geral, sentia o cheiro forte de cachaça. Corria para o quarto e se cobria. Amélia aprendera a dormir de pronto. Sua anestesia.

Desde que descobriu e entendeu as carícias noturnas do homem da casa, a pequena Amélia desenvolveu (e aprimorou-se) na técnica de sono absoluto, para não ter que lidar com a desconfortável sensação daquela mão áspera e suja tocando seu corpo indefeso. E funcionava.

Muitas vezes, dava-se conta apenas no dia seguinte do cheiro asqueroso de suor e álcool, impregnado em seu cabelo. Limpava-se das secreções pegajosas que, sabia de onde vinham, pois nem sempre estava dormindo enquanto Romualdo cumpria seu rito imoral e covarde.

Girava no alto o mundo. Tão irrenovável e cíclico que nem sentia. Tão sádico que, cada sol que se punha, no fim de um dia atarefado, era um grão a menos no pequeno castelo de areia que protegia a integridade da menina Amélia. Uma insubstancial fortaleza, desintegrada no vento.

E cultivava o ódio por aquele sujeito deplorável, também comprometido com sua criação. Romualdo não era pai. Amigo do pai. Os verdadeiros jaziam no cemitério desde muito tempo. Um acidente banal. Mas não se mexia na morte na Vila Genésio. Tocavam para frente a vida.

Por isso Romualdo, na ocasião funesta, apadrinhou a bebezinha sob a admiração dos vizinhos. Sozinho no mundo, creditavam a ele méritos de bom homem. Pacífico e solidário. E prestativo, religioso e trabalhador. Só bebia um pouco, mas, quem não por ali? Muito nobre, porta afora.

E quem desconfiaria? Outro homem porta adentro! Pela ambiguidade, Amelinha culpava-se de sentir nojo. Pois era moço impecável na Vila. E ela não tinha lembranças dos pais, este fora seu pai desde sempre. Um forçoso dilema que ainda a levava para debaixo daquele teto podre.

Só por isso suportava (maneira, inerte e a contragosto) os afagos indesejados. Quando amanhecia, sentia-se menos confiante na libertação e mais absorta. Rezava ao mundo que um dia terminasse. Mirava Jocácio que, aos brados, previa o fim dos tempos na Vila Genésio.

Jocácio dizia, com convicta aspiração profética, que o cataclisma global viria devagar, mas avassalador. Levaria primeiro tudo e, por último, todos, deixando-nos sofrer um algo na abstinência do tátil. O menino de sanidade duvidosa gritava toda semana a ruína da Terra.

Mas era, como sempre foi, conversa fiada de jovem desmiolado. Passou muito tempo na vila, até que passou Jocácio, envolto em um manto negro de asas de baratas, à intenção de protegê-lo da devastação. Parecia sério e Amélia gostava de acreditar naquele maldito pirado.

Passou a acompanha-lo mais de perto, todos os dias. A coleta dos gravetos foi abandonada pela perseguição ao garoto profeta. Percebia que, mesmo sem saber para onde ia o menino, era quando voltava que o sentimento apocalíptico estava aflorado. Tinha algo em sua rota.

Talvez viesse de lá o fim do mundo. Quem sabe poderia guiar finalmente o caos às vielas da Vila Genésio. Também à Romualdo e àquela vidinha insossa. A perseguição ao menino, longa demais para o tempo que tinha, acabava sem sucesso. Amélia e o medo de não dar em nada.

De outro lado, sem os gravetos, não tinha fogueira. E Romualdo gostava. Mais tempo para brincar. Amelinha, coitada, na ansiedade de interromper de uma vez aquele martírio, perdia o sono. Não teve mais uma noite tranquila, sem ser corrompida pelas taras do velho padrinho.

Noite violenta quando decidiu, pela manhã e após se limpar, que naquele dia traria o fim do mundo ao vilarejo, custasse-lhe a vida! A falta de pudor de Romualdo não tinha limites. Apanhou duas maçãs, uma penca de bananas e pôs-se a procurar Jocácio, o menino barata.

De trás de uma pedra, engoliu a respiração para não ser descoberta. Teria apenas uma chance e Jocácio, paranoico que só, poderia ser medroso ou violento se a descobrisse. Imprevisível. Para não arriscar, caprichou como pode sua invisibilidade, crente da redenção no fim do dia.

Jocácio caminhava incansável e em ritmo acelerado para fora das cercanias da Vila. Tomava trilhas estreitas e sem pico. Pulava por cima das pedras e driblava riachos, banhando-se as vezes. Amélia continuava em seu encalço, como uma sombra. Longe demais para voltar.

Percebendo que o menino tinha mais olhos para o que vinha à frente, que ao que estava às costas, permitiu-se aproximar (não muito) para entender o que ele balbuciava, acelerado e ansioso, para ninguém, há algum tempo. Mesmo entendendo parecia confuso e perturbador.

“Não está mais lá, não está!” – “Já foi embora, eu sei, está tudo bem!” – “É o fim, não para mim, mas é o fim, vai todo mundo morrer!” – “Eu não! Tenho minha capa, não vou morrer!” – Repetia meticulosamente em ordem essas frases, de olhos fechados e mãos nas orelhas.

Amelinha fixada no transe do profeta redentor, não tirou os olhos dele quando percebeu que parou, no alto de uma rocha, e disparou o olhar para o horizonte. Fracassado, amoleceu todos os membros sobre a estrutura do corpo e chorou copiosamente. Estava ali o fim, ela arrepiou.

Em seguida Jocácio enrijeceu o tronco e correu apavorado, gritando: “É o fim, é o fim!” – Esbarrou em Amélia como se nem a notasse. Com uma dose de receio, ela caminhou, pé após pé, até o cume da rocha. Tremia e teve medo de olhar. O garoto parecia mesmo assustado!

Lá do alto, sem poder voltar atrás, arremessou os olhos ao fim do mundo, fosse o que fosse. Ao vê-lo, diante de si, deu um passo atrás. Não assustada, mas como quem tenta entender uma instalação abstrata. Suspirou confusa e sentou-se na pedra, buscando compreensão.

O que se via lá para baixo era um largo cercado de madeira nobre, infinito para os dois lados. O pasto baixo e verde que acompanhava a cerca, se interrompia no limite das vigas altas, cravadas perfeitamente no chão e atravessadas por tábuas brilhantes de verniz.

Mas era o além-cerca que, provavelmente, perturbava Jocácio. Embora também não fosse nada particularmente assustador. Apenas um interminável vazio que ocupava todo o terreno daquela propriedade em diante. Olhando à frente não se via fim para o fundo ou para os lados.

Mas sim uma imensa cortina branca que se confundia com névoa, embora espessa e sólida. Amélia pensou em como faria para trazer o fim para o lado de cá da cerca. O dia logo anoiteceu e, antes que sono ou fome, amanheceu outra vez. Nada mudou no vazio.

Quando completou dois dias naquela observação ininterrupta, percebeu a presença de Jocácio novamente. Tudo se repetiu como da última vez: As frases, o fracasso, a moleza, o pavor e a correria. Tratava-se de um louco, sim. Mas dava-lhe certo desconto, pela visão confusa.

Era como se o mundo acabasse ali e, subitamente, entendeu. O fim do mundo não era algo que engoliria sua vida mas, exatamente, o limite geográfico da Terra. Constatou sua descoberta ao atirar uma pedra branco adentro. Resvalou e voltou, parando diante do seu pé.

Tocou a superfície aveludada e macia do fim. Era confortável. Mas suspirou frustrada com a geografia rotacional e translacional da Terra. Nada estava certo. A única coisa que se repetia no universo era sua sina maldita, e estava de novo presa a ela. Enclausurada neste planeta.

Reparou como tudo no mundo anda em círculos. Sua rotina. O colégio, os gravetos, Jocácio, Romualdo, a Vila. Menos o mundo. O mundo sim é ponderado, tem começo e fim. E Amélia chegou ao fim. Baixou a cabeça e aceitou a Vila Genésio como seu infalível destino.

No caminho de volta, bem mais longo e penoso que na ida, pensou mais uma vez na coerência do mundo. Começo e fim. À porta da Vila, reconheceu algumas facetas vizinhas, aliviadas com o regresso (menos ela), e Romualdo. Manteve o passo firme e pegou firme Jocácio pela mão.

Atravessou a rua principal e atingiu a extremidade oposta da Vila, deixando os moradores novamente confusos. Desapareceu logo no horizonte e, inspirando seu perturbado redentor, disse: “Chegamos ao fim Jocácio. Agora falta encontrar o começo, e é lá que tudo muda...”.

Um comentário:

Ruiz Aquino disse...

Malta,

Eu concordo. O fim não chegará.
Nem isso irá nos salvar.
Nesta redundância maldita que nos consome, só nos resta mesmo dar mãos à loucura. Bater em retirada desta nossa zona de "conforto" e buscar em outros caminhos aquela alguma desejada mudança.
E nesta direção, irei sempre contigo.

Não está incompleto.

Obrigado e um abraço, amigo.