quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Benção do Novo Grande Amor


Desciam pelas bochechas, freavam no queixo e depois pingavam, sucessivamente. Eram tantas, e todas tão sinceras. As lágrimas mais sinceras que já escorreram daquele par de olhos. Entretanto, não era nobre a missão. Dar aquela notícia, naquela data, não era de fazer bem.

Mas não havia outro jeito. Tinha que ser naquela data, a mais funesta do ano. Aliás, calhou de ser. Infeliz coincidência. Continuar a enganá-lo seria um erro, tanquanto se enganar. Dali em diante haveria outro que consumiria seu tempo, seu coração e seria preciso aceitar.

Para tanto vieram os vivos, juntos. Assim se conheceriam todos e ficaria claro que o respeito estava acima. Não tratava-se de substituição mas, além disso, da vontade de viver. Não foi fácil olhar para frente na vida. Tudo tão instantâneo. Encarava a lápide e queria apenas redenção:

- Amorzinho, que difícil tarefa essa de explicar a você que não te abandono, embora assuma aqui, diante de ti, que tenho outro em minha vida. Não há premeditação ou vingança, embora esse sentimento de culpa. Não faço para punir-te mas, sabe, sozinha não dá...

Estava de joelhos, frente à estreita lápide, debulhando-se em constrangimento por, naquele momento, perante aos dois grandes amores da vida, declarar a troca de valores afetivos. O óbito pelo ávido. O passado pelo presente. Só um futuro possível, embora, só se abençoada!

E cada vez que dirigia a palavra àquele bloco inanimado de concreto, sentia o olhar afetuoso que a acolheu por todo o tempo durante a vida. Aqueles olhinhos dele. Por isso a culpa. De parecer não respeitar o sacrifício da dedicação plena. Sem troca. Altruísta e perfeita: Inumana.

E tratava-se apenas do ciclo natural da vida. A necessidade admissível de ter alguém para compartilhar as coisas daqui. Não se escolhe quem fica ou vai. E quem prefere a solidão? Ela não sentia confiança em declarar a injustiça de colocá-lo em segundo plano. Tão devoto e fiel.

Só que negar a ele, tão nobre companheiro, o reencontro da felicidade, seria como envolver todos em uma grande mentira. E então a própria felicidade viraria uma farsa sem sentido. Fazia exatamente um mês que tinha falecido e hoje era dia de finados. Infeliz coincidência.

Contou à lápide como se falasse pessoalmente que não perdeu um dia sem visitá-lo e, no fim da primeira semana descobriu, nos arredores do cemitério, aquele que seria seu novo grande amor. Não foi imediato, mas, autêntico. E ele, gentilmente, a acompanhou nos dias seguintes.

Foi um perfeito cavalheiro e jamais ousou ultrapassar os limites. Mantinha-se zelosamente em silêncio, preparado para o amparo que sabia ter de oferecer eventualmente e, quase sempre, ficava horas ali. Nunca sequer se apresentaram, mas se amavam. Ela, pela culpa, justificava-se:

- Faz uma semana que ele está comigo lá em casa. Na nossa casa. Dei boa parte do que era seu para ele. Roupas, acessórios, conforto e, o principal, meu coração. Me sinto uma cobra ingrata, às vezes. Espero que entenda que sozinha não dá. Não te deixo, mas, desejo que se aceitem.

Aproximou-os então. Duas faces do mesmo amor, complementares. O que era vivo, pela primeira vez, desviou seu olhar atento, em respeito ao pedido dela, e fitou a lápide, esperando aprovação. Foi até bem perto e levantou a pata traseira caninamente, demarcando seu território.

Um comentário:

Tati disse...

Fa do céu, sua imaginacao é muito além do que eu pensava...ahuaha!
Besos,
Eu e ela!