domingo, 21 de março de 2010

Ambição Detida


Cada ser vivo no planeta cultiva pequenas ou grandes ambições. Ambições que motivam o prazer pela existência individual. E as dimensões atribuídas a elas são pessoais e não se transferem em intensidade. Tida, por exemplo, tinha a intenção exclusiva de provocar medo nos que a cercava. Gostava da ideia de adquirir o respeito coletivo aterrorizando quem cruzasse seu caminho.

Mas todos sabem – Tida também sabia – que os beagles não metem medo. E Tida era uma beagle. Das mais fofas que já nasceram, capaz de aquecer o coração do mais ranzinza dos velhos solitários. E como se não fosse o bastante, vivia com um velho solitário, o mais ranzinza que já se teve notícia. E o velho sim, carrancudo e de voz rouca, afastava qualquer forma de vida apenas raspando a garganta. Menos Tida. Para ele aquela bolinha felpuda de quatro cores era a coisa mais doce do universo.

A pequena canina incomodava-se de ver os olhos cansados daquele velho brilharem quando ela se aproximava. Por isso tentava não se aproximar. Mas a comida era boa. Nada de ração seca e cheia de nutrientes para Tida. Comida de panela, quentinha e feita na hora. Estar acima do peso era uma satisfação naquela relação unilateral, para ambos. O barulho da colher batendo no pratinho, ferro com ferro, era a sinfonia mais apreciada do dia. Se repetia sete ou oito vezes e, em nenhuma outra situação, tolerava os agrados físicos do velho.

É que nos outros momentos praticava gestos que fossem capazes de subverter suas expressões dóceis em demoníacas. Latia para as árvores, pássaros e insetos. Esperava pelo carteiro, vizinhos e outros cachorros que passavam na rua. Infelizmente todos sorriam afetuosamente ao vê-la esgoelando em suas direções. Mesmo os outros cachorros. Era cansativa essa vida, mas nunca considerou desistir. Sabia não ser a única a ambicionar o impossível. Tomava sempre o exemplo do velho e inspirava-se no seu êxito. Correu quando a colher bateu no pratinho mais uma vez.

Admirava aquele velho sozinho no mundo, impressionava-a o empenho e a ortodoxia em ser tão inviolável na personalidade. Só ela sabia quão amável ele podia ser e esse era o segredo que guardava, por gratidão gastronômica. A vizinhança, os parentes, filhos e ex-mulher. Ninguém o atazanava, nunca. Tida, que só tinha o velho, não era capaz do mesmo. Se tivesse nascido Rottweiller... De qualquer forma mantinha-se firme na obsessão de amedrontar o velho e o mundo, mas, delatava-se carinhosa com a cauda que abanava involuntária para todas as direções enquanto comia. Odiava aquela cauda.

E gastava horas do seu dia esperando para abocanhá-la com toda voracidade, especialmente nos momentos em que a encontrava retraída e distraída. Mas, pela falta de condicionamento físico, nessa perseguição, se mantinham sempre a dois focinhos de distância. Era impossível. Jamais cessou a fixação pela cauda. Toda vez que chacoalhava por conta própria, Tida girava e rodopiava atrás daquela infeliz serpente peluda parasitada ao seu corpo.

E embora incapaz de atingir seus objetivos, tinha de ser respeitada pela obstinação. Aquela beagle nasceu com metas absolutas e, enquanto houve a possibilidade de alcançá-las, tentou. E sentiu inveja depois que o velho subitamente morreu e apodreceu em casa sem nenhum auxílio ou atenção. Afinal, tinha conquistado o que sonhou e resistido até o fim.

Os dias correram e a cadelinha, que agora não tinha mais motivação e, a esta altura, morava com a gentil legista do IML que removeu o corpo do velho da casa, não abanava mais a cauda involuntariamente quando comia suas porções balanceadas de ração para cães obesos.

2 comentários:

Danilo. disse...

Bem. Sou suspeito quando se trata de textos relacionados a cães. Mas gostei bastante. Grande abraço.

Danilo. disse...

Meu comentário anterior ficou sem sentido. Seguinte: eu sempre me agrado em textos que se relacionam a cães, logo, é fácil que eu goste do texto. Porém, apesar disso, o texto é bom. Tida é simpática apesar de sua ambição pela rabugice.