terça-feira, 26 de julho de 2011

Cinquenta e Sete anos de Amor e o Medo de Sempre


 Eu deveria tomar minhas pílulas, mas prefiro escondê-las sob o travesseiro. E deveria ser mais cuidadoso com meu esconderijo, ela sempre acaba as achando e enfiando na minha goela enquanto durmo. “Resmungando e roncado”, ela diz. No fundo, sei que só quer cuidar de mim.

É uma velha tremendamente chata, mas o que se pode fazer? Gosta de mim. E hipocrisia à parte, gosto muito da minha velha. Não! Amo ela, a única mulher que existe. Mas chegar a essa idade juntos, nas nossas condições, tira qualquer um do sério. Quaisquer dois, nesse caso.

Pela manhã ela me obriga a caminhar. Minhas pernas doem e eu tenho uma preguiça desgraçada de sair por aí. E o calor do sol matutino já não é mais forte que as rajadas frias de vento na minha cabeça desnuda. E não importa a estação. Mesmo assim, lá pelas seis, saímos.

“Endireita esse tronco”; “Levanta essas pernas e pare de se rastejar como um lagarto velho”; “O doutor disse que tem que se exercitar mais”. “Se não tivesse passado a vida sentado àquela televisão, fazendo nada, hoje gozaria de um pouco mais de saúde”. “Você me esgota, sabia?”.

Ela diz todas essas atrocidades porque me quer bem. E vivo, ao lado dela. Não chega a me magoar, apenas irrita. Mas também, sou um velho rabugento e me irrito fácil. Às vezes, aliás, entorto as costas, arrasto os pés e dissimulo uma tosse carregada, apenas para tirá-la do sério.

Uma vez por semana, religiosamente, ela me deixa comer uma cocada na praça. Eu digo que minha diabetes está mandando beijos de agradecimento e ela ri. Adoro cocadas. Nessas horas ela sai para fumar. Longe de mim. Tive um enfisema e perdi um pulmão há vinte e dois anos.

Por isso, aliás, ela fuma longe de mim. Fumamos juntos por muitos anos, fui obrigado a abandonar, ela não. É uma troca justa, a cocada pelo cigarro. Aí, nos observamos à distância, cúmplices dos nossos vícios deliciosamente proibidos. Eu digo que ela fede à fumaça.

E é verdade! Mas não me incomoda. Toda vez que ela tosse profundamente, quase sem ar, eu grito: “Isso, fuma!” – Minhas maneiras sutis de demonstrar que ver ela mal, também não me faz bem. Nunca fui bom em demonstrar sentimentos. Por sorte, ela sempre me compreendeu.

Quando voltamos dessas caminhadas e ela está insuportável, repassando todas as orientações do fisioterapeuta, eu desvio a atenção dizendo qualquer besteira sobre seu cabelo. Ela tem um cuidado especial com o cabelo, desde que a conheci, cinquenta e sete anos atrás. Tão vaidosa.

Cinquenta e sete anos! Toda uma vida. É de noite que me dou conta. Passamos o dia inteiro nos provocando. Controlando cada gesto e nos ofendendo. Somos mesmo um par de chatos. Mas o que teria sido de nós por todos esses anos? E o que será do outro quando um se for?

É que esse amor é tão cúmplice e tão assustador que, quando nos deitamos e nos abraçamos, rezamos em silêncio, e com a alma, pela saúde do outro. Porque um amor como o nosso, covarde como todos, não é capaz de suportar o sofrimento alheio. Então, que seja eu primeiro.

2 comentários:

Fabiana Vitale disse...

Simplesmente natural e belo. Adorei de novo!

Anônimo disse...

Não fosse um tal de "a dona do pedaço", postado há alguns meses, eu arriscaria dizer que esse foi o mais belo, emocionante e lindo texto escrito por você que meus olhos já tiveram o privilégio de ler!