quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O Último Primeiro Beijo

                                                         Arte: Steven Thomaz VanOeveren


Vinham de estações diferentes e não se conheciam. Ele da Primavera, ela da General Bodegas. Viviam seus próprios devaneios, todos os dias, a sessenta metros de distância sem, sequer, cruzar olhares. Não se buscavam no mundo, mas, naquele dia trocariam o último primeiro beijo.

Mathias tinha uma carreira promissora e extasiava-se com o ofício da lei. Desde que aprovado na Ordem, passava mais da metade do dia no escritório onde estagiava e, aos poucos vinha sendo reconhecido. Sentia prazer e sabia que, algum dia, se tornaria um dos associados.

Glória deixara a família aristocrática do interior do centro-oeste para conquistar o mundo sozinha, na capital do mundo. Estudava arte e frequentava festas vanguardistas. Tornara-se respeitada no universo artistico e diziam que, por personalidade, seria a próxima Frida Khalo.

Ambos talentosos e prodígios. Cada um em sua área. Como um par de planetas perfeitamente diferentes rodopiando na mesma órbita. Era desproposital que, voluntariamente, viessem a tocar os lábios com tanta fúria e voluptuosidade. Mas lhes digo, aconteceu e eu vi!

Aqueles dois tinham pressa na vida porque tinham paixão por ela. E moviam-se por essa paixão. Que era o trabalho, mas que, na verdade, não era trabalho, porque aquilo não lhes dava trabalho algum, só prazer. E tinham ambição. E era só o que buscavam, naquele momento.

Àquela época, passeavam pelos vinte anos. Ela quase lá, ele pouco mais. Vão dizer que, pelas adversidades e coincidências, se aproximariam como se ela de "Mutantes, Caetano e Rimbaut", e ele de "novela e futebol de botão com seu avô". Mas, sabemos, as histórias são singulares.

O beijo se deu perto das seis da tarde, eu estava lá, no meio da histeria coletiva. E durou até que nascesse o sol na manhã seguinte. Que espetáculo! Duraria a vida inteira, se não fossem desgrudados abruptamente pelos paramédicos e bombeiros. Tão insensíveis...

Mas antes disso, pouco antes das seis, ele adentrou ao vagão, na Primavera. Esbarrou em mim e, cordialmente, se desculpou. Mais à frente, duas estações, ela se juntou a nós, na General Bodegas. Uma faísca mais forte se propagou nos trilhos bem naquela hora, posso garantir!

A paixão! A inexplicabilidade concreta da paixão. Foi tudo tão rápido e, ao mesmo tempo, tão genuíno que mal consigo explicar. Mas tento: O beijo do século! Nada mais que o beijo do século! A comoção unânime, as explosões, os gritos, a luz una, sobre o casal desconhecido.

Eu já sabia de seus destinos e, por isso lá, naquele trem lotado. Preparei tudo com a minúncia da paixão que tenho pelo meu ofício mas, que desfecho supreendente, devo dizer! Um segundo antes da suave curva para a estação Boa Vista, estalei os dedos. O descarrilamento.

Os trens se atropelaram provocando uma fusão de metal e plástico. Glória permaneceu no meio do vagão, atordoada. Uma barra daquilo que costumava ser o trilho, cortou a fuselagem do vagão e atravessou-a pelo tórax, empurrando-a e diminuindo a distância universal entre eles.

Os trens continuavam a se invadir, retorcendo o metal e comprimindo os passageiros em montanhas humanas. Sufocantes, mas seguras. Glória seguia flutuando em nossa direção, inconsciente, mas como se mirasse Mathias, agora a menos de vinte metros de distância.

Antes de se grudarem no beijo apaixonado (e nefasto, agora posso dizer), ele olhou na minha direção e, enquanto se expremia na parede do último vagão aterrorizado, franziu a testa, me reconhecendo. Aí deixou o corpo, num forte colapso cardíaco. O beijo veio no instante a seguir.

A barra de ferro encontrou Mathias cedendo à gravidade e, antes que o deixasse tocar o solo, pescou-o na mesma altura de Glória. Os lábios então se tocaram. Enquanto isso, a violëncia do impacto tratava de expulsar os corpos do vagão, deixando-os suspensos no túnel escuro.

Por um breve momento decepcionei-me com as labaredas e as faíscas que não chegavam lá fora. Mas em seguida subiram as luzes de emergência, vermelhas e quentes, rodeando aqueles corpos, funestamente atracados, no tom que a ocasião merecia. A paixão. A Minha e a deles.

Não tardei a busca-los, desorientados caminhando pelo túnel, já fora dos corpos. Tomei-os pelas mãos e os conduzi desconhecidos, cada um a seu destino.

Um comentário:

Gran hermano disse...

Yo hermano pequeño, desde Desalmados, acho que estou me identificando mais seus contos funestos... ¡Muy bien!