sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Pecado e Redenção


Mordeu profundamente o fruto lustroso e tenro da árvore proibida. Cravou os dentes como se fosse a própria carne daquele velho tirano. Mastigou junto meia semente (pretendeu o osso do velho). Em seguida cuspiu a papa adocicada que formou na boca. Só queria provar seu ódio.

O velho observou incrédulo o gesto cruel e decidiu, definitivamente, expulsar aquela megera ingrata do seu pequeno paraíso, projetado com tanto amor para os dois seres mais medíocres que o universo tinha tido notícia: Ana e seu tapado irmão, que nunca teve nome.

A menina, ao menos justificava-se pela personalidade impossível. Absolutamente intolerável, mas respeitável. Já o irmão não passava de um robozinho estúpido, programado para repetir cada um dos desafetos da irmã com a mesma intensidade, ainda que sem saber o porquê!

Abriu-se o portão principal e, pela primeira vez desde que tinham lembrança, alcançaram o lado de fora do mundo. Ana suspirou a liberdade enfim conquistada, o moleque olhou para todos os lados e suspirou junto, fingindo entender do que se tratava aquela densa respiração.

Lá dentro da fortaleza, suspirou profundo o velho também. Fraco e derrotado. Teve um sonho muito tempo atrás e construiu aquele magnífico calabouço ao ar livre. Confeccionou dois serezinhos desde o nada, como se seus próprios filhos. Deu-lhes conforto, instrução e amor.

Não tinha grandes expectativas, só achou por bem oferecer amor a um mundo corrompido por tantos sentimentos vis. Recrutou dois jovenzinhos puros e os apadrinhou. No começo Ana era uma explosão de curiosidade, interessava-se por tudo e respeitava o velho. Para ela: Papai.

Tinham muito tempo livre e muito espaço. Também tinham lições de botânica, geografia e história. Aprenderam que só duas coisas eram proibidas: Desejar o mundo de fora e alimentar-se da árvore proibida. Nunca quiseram os motivos. “Só uma questão genesial”, dizia o velho.

O tempo passou e Ana foi tornando-se mais inquieta, já não aceitava as imposições à sua condição naquele território. “Ou a plena liberdade ou a tirania declarada”, inquiria ela. Estava cansada da pasmaceira e daqueles muros, precisava expandir-se...

O tapadinho, no começo, afastou-se da rebelde com medo de perder as regalias. Algum tempo depois foi trazido de volta ao bando dos revoltados, sob algumas sinceras ameaças à sua integridade física. Ficou instituído desde esse dia, que repetiria cada um dos gestos da irmã.

Culminou na mordida do fruto. Outro fruto, mesma árvore. No momento seguinte ao desaforo da Ana. No momento anterior à abertura dos portões. Tinham agora a liberdade almejada e, também, a não necessidade de retribuir amor ao repugnante velho. Não mais a mesma cama.

Porque era esse o amor do velho. Físico, tátil, rude, sujo. Um amor obscuro e velado, que imaginou incorruptível, se a educação não transpassasse seus domínios. Que moral teriam as crianças se educadas por ele? Como discerniriam o certo do errado? Não poderiam...

Mas de alguma forma aquela pequena insolente pesquisou o mundo de fora. Assassinou o sonho hedonista do homem que conquistara quase tudo o que cobiçou. Agora viviam livres, os dois. Livre de correntes, de violência consentida e falso amor. Livres do amor, essencialmente.

Tinham liberdade e fome. Liberdade e desamparo. Frio, medo, impotência. Tinham certeza que estavam melhor dentro do portão. Até o irmão, em um surto de vontade própria reconheceu os benefícios do mundo de dentro. A comida, o conforto, a outra liberdade.

Ana finalmente assumiu seu pecado: Vaidade. Quis ser maior que o velho e agora aceitava que jamais seria. Deitou-se com o homem da quitanda por uma maçã, tenra e vermelha. Era o símbolo da sua redenção. Ajoelhou-se ao velho e, no dia seguinte, o universo harmonizou-se.

2 comentários:

Slope disse...

Espero ser, à hora que aqui posto, o primeiro a ler... nada tenho a deixar a não ser um elogio à seu texto, que me impressionou mais uma vez.

Fabiano Malta disse...

Gratíssimo pela confiança em plena madrugada, Slope sir