quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Sujeito Indireto


Já tem um tempo que eu to invisível pro mundo. Só que ultimamente também tenho me sentido invisível pra mim, sabe? Já sentiu isso? Uma sensação estranha de que se é espectador da própria história... Sei lá que história é essa... A forma como tudo aconteceu.

E tava indo tão bem. Saí da universidade já no meu próprio escritório e o telefone não parava. As coisas caminhando direitinho e num instante eu tava casado, condomínio de luxo e filhos no colégio bilíngue. A vida tirou férias e eu já não tinha mais aqueles desafios da juventude.

Meu sócio e eu éramos braço-direito um do outro, desde a época da faculdade. O cara se tornou um criminalista de primeira e eu, modéstia a parte, era muito competente, só que tributário. Não à toa nosso escritório decolou no primeiro ano, dois jovens recém-formados.

É... tudo ia bem! Aí um dia o cara me aparece morto e o mundo começa a desmoronar para mim. Por respeito a ele assumi sua família. Mulher e dois filhos. Uma fresca e um parzinho de mimados. Quase pirei para dar conta de todo mundo e de mim, no meio disso tudo.

As investigações iam bem. Uma morte bem embaraçosa: Estrangulado no próprio escritório, numa madrugada de terça-feira, com as calças arriadas. Não era vingança. Desconfiaram de crime passional e sua mulher o odiou, uma amante! Os filhos ainda resistiram mais um tempo.

Daí descobriram, com uma montanha de exames, que a amante era um homem. Ui! Os filhos só aguentaram até aí. Meu sócio, grande parceiro e amigo de todas as horas, um puta profissional de direito, passou a defunto, abandonado moralmente. Quase apagado. Ficaram os pais que, velhinhos, foram poupados dos detalhes. Eu me mantinha reservado.

E enquanto isso, administrava tudo. Os negócios, as famílias, a integridade dele. O sol ainda reluzia forte na minha pele. Liberdade, respeito, sucesso. As relações lá em casa, sempre tão mornas, esquentaram bastante. Minha mulher e eu, as crianças. Viajamos mais e nos amamos.

A família dele, ainda desamparada estava sempre junto. Tornou-se uma relação estranha e quase bígama, embora não houvesse verdadeiro afeto da minha parte ali. Era puro compromisso com alguém que teria feito o mesmo por mim se tivesse sido o inverso.

E como podia ter sido o inverso... Não demorou até os investigadores descobrirem que omiti uma série de evidências. Sim o assassino era eu. E sim, claro, o amante também. O motivo? Torpe e típico. Ele decidiu que não me amava mais, tinha medo de arruinar seu casamento.

Mas não tinha medo de arruinar minha vida, não é? Bebemos juntos, como habitualmente fazíamos madrugada adentro, e ele me vem com essa de “vamos deixar essa farra pra lá, não temos mais idade pra isso”. Eu amava muito aquele ordinário e sai por um instante de mim.

Bem, aí a ordem cassou meu registro e, grandes merdas, eu tava preso! Passei vinte anos lá, cela especial. Não tive uma só visita. Meus pais não foram poupados de nenhum detalhe. Sei lá que fim tiveram. Fui violentado, espancado, tatuado e jogava muito truco, nas horas vagas.

Essa foi minha rotina desgraçada. Com o tempo também fui esquecendo a vida que tive do lado de fora. Era isso ou a forca. Uma tremenda lavagem cerebral. Daí fecharam o caso e eu fui liberto. Não tinha mais nada a ver com o mundo. Eu tava em outra, pirando em mim mesmo.

Fui da minha cela direto para lugar nenhum. Não tinha mais endereço, profissão, família e minha maior referência era o tetra campeonato invicto de truco mineiro com o Peroba, que morreu de facada alguns meses antes de eu sair. Bom, sem o Peroba eu só tinha a rua.

Pra ser sincero não sei nem onde estou agora. Quando canso de um lugar, ando. Vou andando até acabar a cidade e ando mais, ate começar outra. Tento, sem muito esforço, me recompor, quando tenho momentos de lucidez. Aí descolo um bico qualquer e levanto uma grana.

Mas o peso do passado é muito grande. E se to sóbrio ele vem à tona. Aí eu enfio tudo o que eu ganho no fígado e durmo tranquilo mais alguns dias. Essa sensação de paz que me dá, depois do último gole, é um dos poucos prazeres que a vida ainda capricha em me fornecer.

Tenho sorte, acho, de ser hoje, esse resto de gente que eu sou. Não preciso de nenhum fardo social. Se eu quiser dormir no meio da rua eu durmo; se não quiser me limpar, fico imundo e fedido. Bebo cada centavo que esmolo porque é meu. E não olho no olho de otário nenhum!

Porque eu sou invisível, oras! Uma anomalia invisível que nem o cheiro podre permite se fazer notar. E honestamente, eu devia estar sóbrio quando me queixei disso... Haha, sóbrio eu fico mesmo um panaca. Caçando problemas. Bom mesmo é ser eu: Sujeito indireto da própria vida.

2 comentários:

Slope disse...

Malta... direi apenas que gostei muito!

Fabiano Malta disse...

Pois lisongea-me deveras... muy grato!