domingo, 9 de maio de 2010

Entre as Flores e a Vida


Descem suaves as rosas céu abaixo, contrastando na paisagem metropolitana. Deslizam lentas e vermelhas pela cortina infinita do azul turquesa no horizonte, como se caíssem sobressalentes do Éden. E giram sinuosamente o caule e agitam as pétalas como pequenos pássaros aprendizes. É a mais deslumbrante visão, jamais vista antes e jamais revisitada depois. Única: A chuva de rosas.

Em todas as direções pontos vermelhos surgem, uniformes no início, infestando o céu rigorosamente em linha, como em desfile militar. Em seguida, pelo volume que aumenta, o moderado contraste das cores começa a se transformar em fusão. Azul e vermelho são agora roxo, um roxo incandescente. Já não mais duas cores mescladas, mas, uma unidade, vívida e brilhante.

Ao mesmo tempo, a particularidade do evento provoca um zumbido cadenciado e melodioso. Uma música selvagem. Primitiva, pois, é a sucessão de tons, maiores e menores, de uma mesma nota. Aguda e contínua. E tão bonita executada à perfeição pelas flores, em uníssono. Sutil e marcante, aos ouvidos delicados daquela jovem, predisposta a passar o resto da vida nessa exata condição: observando o que vê e ouvindo o que escuta.

As rosas, distintamente caprichosas, aproveitam a situação para disseminar seu cheiro pelo ar. O tempero olfativo, suave e silvestre. Inebriam aromáticas toda a extensão das coisas que alcançam os olhos e os narizes. E, provavelmente, o além, mas ninguém poderia dizer, naquele cenário quase inabitado. Todo o ar, misturado à umidade, é contaminado pelo perfume das pétalas agitadas e, todo o roxo exala, agora, a orvalho matinal.

Setenta metros abaixo corre o Tamisa, majestoso. Toneladas de litros de água pura e translúcida evidenciam a abundante diversidade aquática submersa naquele carpete líquido. O rio abraça com minucioso zelo cada uma das rosas que interrompem a dança em sua superfície. Lá elas pousam delicadamente e se entregam, alimentando as trutas e as arraias. Mas, incansáveis na queda, as flores aladas cobrem o rio em um rubro fulguroso.

Janine paira no topo da Tower Bridge, absorta e catártica, não desequilibra porque não há brisa para lhe atingir a face desprotegida e desabrigada. Não sente o rosto ou os braços. Nem o tronco ou as pernas. É apenas sentidos. Embriaga-se com o conjunto todo, todos os sentidos alinhados, alienados.

Sua visão panorâmica foca todos os ângulos ao mesmo tempo. Trezentos e sessenta graus da Londres contemporânea. A cidade toda em preto e branco, escondida ao fundo do ofuscante painel roxo, não chama a atenção. Sem brilho, serve de aparador à chuva rósea. A moldura discreta para a grande obra de arte. Não há vida nessa Londres, apenas silêncio. Não há carros ou motos, nem ônibus, metrôs e balsas. As ruas inóspitas convidam Janine a se manter no topo da torre, segura e longe de problemas.

Como foi parar lá? Simplesmente acordou. Despertada de um pesadelo que já não se recorda da origem ou essência, quando abriu os olhos estava onde está. Feliz. Não se lembra das próprias angústias, ainda que não sejam poucas nem amenas. Mas aflições ali, não importam mais. A visão é entorpecente. E há muito tempo Janine não ocupa a cabeça com um pensamento apenas. E belo.

Quando sente a brisa invadindo forçosamente no íntimo, Janine se deixa impulsionar para fora da ponte, sem solavancos, em câmera lenta, aliás. Bóia inerte com as rosas, no meio delas, uma delas, despencando muito calmamente. Se aproxima do rio, toca a água e continua flutuando a caminho da cidade em preto em branco. Desliza pelo Tamisa se despedindo dos novos amigos que não fez, peixes e arraias. As rosas escasseiam e as cores voltam a se dissociar, vermelho e azul, só azul, preto e branco apenas.

Pelas ruas, segue flutuando, tão leve que não percebe a distância próxima do chão, mas sente não encostar. Vagueia, ainda absorta, pelas ruas vazias, sem vida nem cor. Reconhece vilas do passado, lugarejos de bons tempos, quando não existiam problemas. Ouve as vozes da infância, as gargalhadas e as cantigas de roda. Passa por praças do presente, momentos menos frequentes de felicidade, mas a felicidade adulta, moderada e provisória.

Mais adiante, lá no fim da rua, a porta de casa – verde oliva – se destaca no meio da cidade desbotada em tons cinzentos. Começa a se aproximar, sabe que não pode. A felicidade não mora lá, apenas Janine. E ao tentar frear o caminho involuntário que faz em direção à própria casa (à própria vida), Janine percebe a falta de controle dos membros. Não há força nas pernas porque não há pernas. Não há resistência nas mãos porque não há mãos, ou braços.

Janine é apenas sentidos, sem massa ou matéria. Serpenteia pela rua a caminho da porta verde oliva. Para em frente e resiste à realidade. O mundo agora pulsa à sua volta e este pulsar, vigoroso e ritmado, a tira dos eixos. Gritaria se dotasse de cordas vocais neste instante.

Porta adentro, angustia-se mais e mais a cada cômodo percorrido. Chega à cozinha e observa seu corpo, no chão, sofrendo espasmos violentos enquanto expele uma espuma branca e viscosa da boca. Começa a retomar a vida real, os problemas reais. Choraria, se fosse biologicamente capaz. Ao seu lado a seringa usada se perde no chão, ao pé da mesa. Uma colher de cabo longo descansa ao lado do isqueiro, no canto da mesa de jantar.

Lembra-se então,de como foi parar na ponte: A ordem de despejo ao lado da colher, os classificados de emprego, a despensa vazia, a cama vazia, a casa vazia, a vida... vazia. Aproxima-se do corpo, que vai perdendo os sinais vitais a cada instante.

Fecha os olhos e os torna a abrir, agora dentro do corpo, ofegante. Levanta ainda zonza e reconhece cada um dos itens maquiavélicos do seu suplício. Caminha o corpo pesado até o banheiro e contempla no espelho a expressão do seu rosto, pela vida e pela morte: fracasso.

5 comentários:

Unknown disse...

me vi em várias de suas linhas... não poderia ter usado melhores palavras, talvez até melhor que eu... que estou nesta terra-ingla, em que não se fala a minha língua!

Unknown disse...

Eu também gostei.

Má! disse...

ahh... Li novamente! é triste neh mas adorei... muito bom como sempre!!!

Fabiana Vitale disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fabiana Vitale disse...

Malta, meu querido...Doces devaneios neste conto, em especial.
Reflexões, pirações e várias indagações sobre tudo.
Torço muitíssimo por você, desde sempre. Sorte com este!

Abraço, amigo.
Fabiana Vitale (Paty)