domingo, 14 de março de 2010

Pérolas


Lilli tinha pérolas nos olhos. Destoava das demais garotinhas porque tinha no rosto duas esferas reluzentes que enfeitiçavam como pérolas raras. Eram duas avelãs brancas presas às pálpebras. E estavam o tempo todo esbugalhadas. Não tinha córneas nem pupilas, nas esferas não riscavam veias avermelhadas. Tudo o que havia era apenas aquele par liso e alvo de bolinhas de gude. Era uma visão perturbadora para alguns. Quem a conhecia, mesmo sentindo-se desconfortável, não conseguia tirar os olhos daqueles olhos.

E mesmo com o mundo a encarando dessa forma, Lilli era desprendida como ninguém da necessidade visual. Enxergava a vida com tantos outros sentidos – conhecidos e desconhecidos – embora, talvez, não com a concretude e bruteza do nosso olhar limitado. Diziam que antes, muito antes, carregava duas jabuticabas nas órbitas. Olhos negros e vivos. Mas nessa época, era mulher igual, mulher qualquer. Não no sentido do desprezo social, mas comum, sem atributos. Uma abelha na colméia. Felizmente, do dia em que acordou com os olhos perolados em diante, sua vida ganhou foco.

Passava o dia com a cabeça voltada para o céu, vagando o olhar em lugar nenhum. Era extremamente dedicada ao seu ato autista e intrigava pela parcimônia na feição. Lilli não esboçava sofrer, pensar ou angustiar-se. Tudo o que fazia, onde quer que estivesse, era fitar o céu sem os olhos, mas com todo o corpo. Uma entrega infinitamente maior. Enquanto o tempo passava, Lilli ganhava mil novos perfis nas bocas dos vizinhos menos ocupados, das domésticas mais fofoqueiras e dos meninos mais inventivos. Ou estava possuída; ou sofria a perda de um grande amor; ou havia se convertido em profeta silenciosa do caos; ou andava metida com drogas.

Naquela região da cidade, Lilli era o centro das atenções. Todos os olhos se voltavam para ela involuntariamente, a todo instante. É verdade que apenas alguns comentavam, mas os olhos eram unânimes. Ela estava em um transe desesperador. Havia quem tentasse despertá-la – conhecidos e desconhecidos –, quem arriscasse chacoalhá-la ou até derrubá-la, mas, quando caía, ficava no chão, inerte até que em um descuido dos olhos alheios, desaparecia e tornava a aparecer em outro ponto qualquer, na mesma condição.

O tempo, único ente lúcido de toda essa história, se fez passar com a velocidade exata para que toda a comunidade propusesse, em convenção individual, aceitar Lilli da forma como passara a ser: indecifrável. Agora ela já estava incrustada na personalidade múltipla daquele espaço geográfico e, ainda que complexa, passava despercebida aos olhos e bocas de todos. Muitos calendários foram trocados até que ela voltasse a ser o centro das atenções.

Foi em uma tarde improvável, daquelas em que o mundo ocupa-se em observar cada pessoa ocupando-se com seus problemas pequenos e individuais, cegos às desvirtudes maiores. Nesse dia, Lilli atravessava a rua com a mesma parcimônia de longos anos quando freiou tranquilamente do meio do asfalto, atrapalhando o tráfego.

Seu rosto, em câmera lenta, converteu-se em pânico sufocante. As veias saltaram do pescoço, a boca esticou no limite da elasticidade da pele, os dedos enrijeceram e os olhos esbugalharam ainda mais. Foi a perfeita visão do desespero. Todos ao redor pararam o que faziam, entendendo a chegada de algum momento decisivo.

Então as órbitas de Lilli tremeram violentamente e, de cima para baixo, retomaram o negro jabuticabal. Ao mesmo tempo o mundo todo tremia em um sacolejo incontrolável. Depois disso a boca fechou, as veias recuaram e os dedos relaxaram. Todo o pavor contido naquele micro espaço de tempo se transformou em paz e, com a consciência livre do peso dos males mundanos, voltou a observar as pessoas que, deitadas, apresentavam-se dominadas por uma culpa anterior ao pecado original. E os olhos, cada par de olhos, eram agora pérolas.

4 comentários:

Taiana Car Vidotto disse...

Muito bom!
Leitura super envolvente!!!
Continue publicando contos!

Anônimo disse...

Envolvente e fofa.
Retrata você!

Juliana Leal disse...

quando tiver um tempinho: www.julianahgleal.blogspot.com

Unknown disse...

Oi Fabiano! Gostei muito do seu blog, dos contos, das críticas e do seu estilo de escrever!
Muito interessante, adorei!
Beijos, Julia.