sábado, 27 de fevereiro de 2010

Uma Espécie de Evolução

                                               Arte: Dalcio Machado

Judite nasceu lagarta. Não podia ser outra coisa. Que outra coisa pode nascer os filhos das lagartas? Era viscosa e gorda, apática e lenta. Exatamente como eram todas as outras na copa daquela árvore úmida. Lagartas e só. Não eram bonitas nem elegantes. Caminhavam parcimoniosas pelo tronco, beliscando uma folha aqui, outra acolá. Às vezes suspiravam impacientes ao tempo, que custava a passar. Tinham um objetivo apenas: Conservarem-se vivas ao momento do retiro mutante, onde transmutariam à vistosa borboleta. Judite não.

Tudo o que era parcimônia naquele pequeno universo grotesco, em Judite era pura angústia. E enquanto todas as outras lagartas disfarçavam-se em meio à folhagem, ela debruçava-se na ponta do galho mais fino, expondo-se aos pássaros famintos. Observava o mundo que havia fora dali e vez ou outra ouvia: “Não se preocupe Judite, um dia e em breve, será borboleta e voará por esse mundo!” – Ninguém entendia. Essa era sua preocupação maior, a angústia primeira. Tinha medo de atualizar-se em borboleta. Não parecia certo, nem seguro. Como poderia voar? Onde aprenderia? Como fugiria dos pássaros? Até onde alçaria seus vôos? Era melhor que fosse lagarta sempre. Queria poder escolher.

Não se criava vínculos naquela comunidade. Acreditava-se na transitoriedade daquela situação e laços fraternos ali, pareciam simplesmente sem propósito. Tinham a absoluta convicção que nenhuma borboleta se lembra que um dia foi lagarta. As borboletas nunca voltam. E nem falam a mesma língua. Judite tentava driblar a penosa rotina que a empurrava lentamente para seu destino fatal. Talvez funcionasse. Assistia aflita as gerações anteriores desaparecerem rumo ao retiro.

Não tinha escolha e apenas ela sofria seu destino. E se tornava cada vez mais iminente a partida. Duas ou três invertebradas da sua geração já haviam se despedido. Mas Judite não acreditava nas virtudes de ser uma borboleta, sequer acreditava nas borboletas. Berrou do alto do galho mais fino no dia que sentiu uma erupção saltar instantaneamente das suas costas. Devia ser a asa. Havia chegado sua vez.

Caminhou inerte tronco abaixo e tornou a sentir a vida quando tocou o solo úmido e fértil. Já estava no Além Mundo. Flertou a pequena erupção e, já não tão pequena, apresentava-se um cilindro fino e flácido dançando bobo na medida em que se arrastava. Se soubesse, acusaria ali um dedo.

Judite nasceu confusa, mas, não ali. Parecia natural o que estava acontecendo com seu corpo e, ainda sem escolha, decidiu que seguiria se arrastando em linha reta. Fosse até onde fosse, não sucumbiria ao casulo. Morreria lagarta. Pouco depois, o dedo flácido já eram cinco de um lado, quatro de outro.

Mais adiante, dois pequenos bracinhos esticavam-se arrastando as mãos, já formadas, pelo chão. Na parte anterior do corpo, outros dois pequenos membros acabavam de brotar. Não demorou para que enrijecessem e se ocupassem em carregar Judite a quatro patas. Pernas e braços.

O corpo modelava-se ruidosamente, adquiria cintura, pescoço e orelhas. Formas. Os olhos grandes e pretos encolhiam na mesma proporção e convertiam-se em azul turquesa. Brotaram pelos loiros e sedosos do topo da cabeça reformada. Ergueu-se sobre as pernas e manteve-se ereta. Judite havia mutado.

Judite, que nascera lagarta, era agora borboleta (?). Não voava e reconhecia-se lagarta. Todas as previsões estavam erradas. Caminhou retroativamente, pé ante pé, e ancorou na sombra da árvore úmida de onde viera. Sentia-se evoluída porque podia comparar-se àquilo que já não era mais. Tomou uma das folhas da árvore e enfiou-a toda na boca, com violência. Não cessou o apetite.

Observou as lagartas passivas sob a falível camuflagem e arrancou uma delas com os dedos. Olhou-a de perto e a meteu na boca, mastigando repetidamente, até que se convertesse em pasta amorfa. Chacoalhou a árvore dos pés à copa e não parou antes de todas as lagartas estarem no chão. Esmagou uma a uma. Não admitia a parcimônia daqueles seres subdesenvolvidos. Judite era mais, era mais que aquilo. Negou seu passado, embora soubesse ser, desde sempre e para sempre, nada mais que uma lagarta.

Agora Judite sentia-se sozinha. E estava sozinha. Precisava encontrar outras borboletas. Deixou para trás o holocausto que provocou sem saber para onde ir. Caminhar em linha reta parecia funcionar dentro da sua logística. Seguiu para onde os prédios ocupam o lugar das árvores e era como um jardim de borboletas. Todas elas se cruzando e se tocando, no chão, entre os prédios, sem alçar vôo. Notou que mal se comunicavam e, quando o faziam, emitiam ruídos estranhos ao mesmo tempo em que gesticulavam os membros superiores.

Tentou estabelecer contato com seus iguais e sentiu-se frustrada, pois era repelida de todas as formas. Decidiu-os imediatamente inferiores e atacou uma das borboletas menores. A violência do ataque foi tamanha que extraiu um fluído quente e grosso, de cor vibrante, do pescoço da pequena borboletinha. O mesmo líquido desceu pela sua garganta proporcionando um novo gosto ao seu paladar. A comoção foi geral e enfim sentiu-se acolhida. Muitas borboletas entrelaçaram-se a Judite e a tocavam com força excessiva.

Do instante próximo aos anos que se seguiram, Judite estava reduzida a uma pequena sala escura, com uma janela mínima para o horizonte. Passava o dia observando o mundo que havia fora dali e não dividia aquele mísero espaço com nenhuma outra borboleta. Sempre que tentavam, as atacava. Num dia, muito tempo depois, recebeu a visita de um pequeno inseto alado que vibrava as asas num amarelo cintilante. Permitiu que se aproximasse e repousasse em seu ombro. Admirou aquelas cores, a liberdade e paz do ínfimo ser e, reconheceu ali o que gostaria de ter sido se lhe fosse permitido escolher.

Invejou-a no instante posterior e suprimiu sua existência com um tapa brutal. Nasceu para viver sozinha. Refletiu durante dias até que se enrolou no canto mais extremo do seu cubículo e trançou seus membros com demasiada força, retorcendo-se e torcendo para que acordasse mais frágil no próximo dia.

3 comentários:

Anônimo disse...

Adoro seus contos! Gosto mais de ler suas ficções e seus poemas. Gosto pessoal... Fiquei aqui pensando que todos nós somos um pouco Judite. Eu, pelo menos, me reconheço nela em boa parte do tempo. É angustiante este reconhecimento, mas profundamente misterioso também. Vou reler o conto.

(Fer)

Mã disse...

Gosto muito da profundidade com q vc escreve, da combinação q faz com as palavras, seus textos são absolutamente impecaveis.... te admiro e me orgulho muito de vc...
parabéns e muito sucesso sempre...
beijos Mã

Fabiano Malta disse...

Ahhhh coisa mais fofa... Mã é mã!