domingo, 26 de junho de 2011

O Tinto


Tomou-a pelo pescoço e dominou. Percorreu com os olhos toda a geografia, depois usou as mãos. Analisou sua cor, seu peso, sua forma e o que vestia. A cara daquilo que as coisas vestem, dizem quase tudo sobre aquilo que as coisas são. Era ela, a escolhida!

Apontou a espada para o crânio macio e torceu em espiral a lâmina, miolo adentro. Golpe frio e desapressado. Preciso como o mais nobre dos cavaleiros reais, sacou a tampa, o lacre e todo o invólucro que protegia o santo néctar. Assistiu emergir o sangue.

Espesso, vermelho, quente, vivo. Tinha um cheiro, não, um perfume. Um aroma, por si só inebriante. Espalhou-se pela sala e invadiu as narinas, temperando o ar. A saliva, brotada em excesso, fazia brilhar os lábios vampirescos e hipnotizados. A sede torpe!

Do pescoço desnudo surgiu uma gota furtiva que, assustada, do parapeito da parte superior da estrutura, escorreu-se, tatuando no corpo a rota suicida. A inútil tentativa de fugir à sede sanguinária daqueles que a aterrorizavam. Pelo caminho, fundiu-se à saliva.

A gota na boca despertou ainda mais a sede. Produziu ainda mais saliva. Provocou ainda mais aqueles dois. Com classe, como sugeria o momento, tomaram nas mãos o corpo rígido e derramaram o néctar em cálices cristalinos, meticulosamente escolhidos.

Brindaram glórias pessoais. Recentes, antigas, revisitadas. Estavam orgulhosos. Satisfeitos (não saciados). Tornaram a brindar mais uma taça do sangue auto-ofertado, e se riram do corpo ceifado que perdia a beleza à medida que tornava-se mais e mais oco.

Abandonaram o recipiente às moscas, porque ele já não importava mais. Correram em direção aos lábios salpicados do sangue. Beijaram-se efusivamente e se estimularam pelo gosto tinto que tinham. Entregaram-se ao amor forjado, repentinamente despertado.

Suspiraram e podiam ainda sentir cada toque daquela história portenha, drenada aos goles para dentro dos seus corpos turvos de prazer. O carvalho, o mel, as frutas, as favas, as geadas e as chuvas e o sol. Cada fragmento era deles agora, hemofágicamente.

O sangue da goela fundia-se cada vez mais ao sangue das veias. E continuavam se beijando. E misturando, ao mesmo tempo, as salivas. Sangue e saliva. Fundiam-se em tudo porque o sangue provocava essa necessidade. Desejavam ser um só. E se beijavam.

Espremeram-se tanto que os braços colaram e em seguida as pernas. Logo a boca e o tronco. Eram definitivamente um só. Híbridos. Fermentados. Tintos. Cabernet Franc e Sauvignon Blanc. Riram mais uma vez de si e, extasiados, dirigiram-se à adega.

2 comentários:

Má! disse...

completo esse vinho tinto... ganhou ate conto... quem diria heim!

tim tim... e parabéns!!!

beijo beijo

Diva disse...

Adorei esse conto, me lembrou alguns contos de Machado... parabéns. Abração, Diva