segunda-feira, 21 de março de 2011

A Última Linda Dama

                                                   Arte: Frances Kuta


Tem os olhos mais penetrantes que conheci. Tão lindos que não me canso de fita-los, obsessivamente. Mesmo fechados, lindos. Me acalmam. Ela tem uma paz nas pálpebras que pacifica minha alma. Olhos pretos, inexpressivos que, mesmo fundos e cadavéricos, celestiais.

Os cabelos, brancos e desgrenhados, distribuem-se desordenados pelo couro. Armam-se selvagens para todos os lados e confundem-se a outros fios, menos presentes embora mais indiscretos, amarelos e rudes. Sempre fui fascinado pela cabeleira hirsuta e reluzente dela.

Noto sem asco o líquido grosso e translúcido que se forma e acumula no canto da boca. Limpo com um lenço de papel umedecido. Os lábios confundem-se em tom com o pálido do rosto. Quero beijá-los. Tão delicados que desenhados à mão (e pessoalmente) por Deus. Sublimes.

Acaricio o braço, pendido e frio, ao alcance da minha mão, carente do calor confortável que só ela sabe oferecer. A pele enrugada, branca e fina, reforça a maciez sufocante do primeiro toque. Todo toque é como o primeiro, e sua tez ainda me arrepia juvenil cada pelo do corpo.

Juro que percebo um movimento na mão esquerda. Uma suave retração. Minha presença, certamente! Involuntário, provavelmente... É a mão onde repousa nossa entrega apaixonada e cega. O anel dança solto nos dedos finos. São mãos acolhedoras, talentosas e eu as acaricio.

Deslizo, excitado, minhas mãos quentes pelo corpo esguio dela. Inertes. Sinto o volume que se forma em mim, uma atração incontrolável que essa mulher me provoca. As costelas expostas, coladas à pele, a bacia sobressaltando as pernas irregulares. Nossa monumental lascívia.

Quem a vê nessa introspecção passiva não imagina o fogo que guarda essa mulher! Insaciável até a ponta dos pés. Quente, como costumam dizer. Passamos muitos carnavais trancados no quarto, à base de água e alguma proteína, apenas para sobreviver. O resto era pura luxúria.

Mas para que não pensem tratar-se de uma dessas senhoras promíscuas das ruas, desposei-a na flor dos seus dezoito anos e fomos os mais sinceros prostitutos um do outro, pelas últimas seis décadas e meia. Ainda hoje conservo minha devoção ao mais perfeito ser humano.

Apesar dos momentos difíceis. E, francamente, foram muitos momentos embaraçosos proporcionados pela minha senhora. A possessividade, as fragilidades e a capacidade de entrar em cada discussão possível. Todos os seus mil argumentos. Geniosa e absolutamente única!

Mas chega uma hora na vida de um sujeito comum, que é preciso aceitar a derrota. O fracasso impotente para aquela praga ceifadora de manto negro. Fui o homem mais feliz do mundo pelos últimos sessenta e tantos anos. Estarei fadado à infelicidade pelos próximos tantos.

Assisto desnorteado, seus últimos suspiros. Sufocantes, como se em uma sala sem oxigênio. O pequeno televisor ao lado apita uma linha reta e sem esperanças. O momento próximo é o momento atual. Lembranças. Aos poucos aquele corpo vai se desconstruindo na minha frente.

Percebo, então, que não me lembro da cor dos olhos, dos cabelos, ou o batom preferido. De repente não sei mais quem é esta pessoa morta à minha frente. Olho ao redor à procura da mulher que domou minha vida e perco de vista, a última linda dama deste mundo.

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