segunda-feira, 4 de outubro de 2010

                                                                                              Arte: Deni


Quando entrou na minha vida, mansa e sazonal, não causou alvoroço e não fez questão de se fazer notar. Não pretendeu minha família e nem se apresentou aos meus amigos. Éramos só os dois, ainda que cercado de conhecidos. Só tinha olhos para mim e fui entrando no seu jogo.

Nos descobrimos juntos, em uma dessas noites despretensiosas da juventude. Quase passamos despercebidos ao flerte torpe do outro, mas, soubemos bem ali que estaríamos predestinados, cedo ou tarde. O tempo passou e, vida feita, caímos no colo do destino.

Me preservei, no início, e dissimulei um desinteresse. Ninguém se entrega assim tão sumariamente. Era o meu jogo até então, ter o capricho de desdenhar a devoção alheia. Eu estava vislumbrado, embora contido. Moderado, mesmo que, entre meus botões, fascinado.

Aquela presença ali, perto de mim, dentro de mim, minha, cativava meus desejos adormecidos, tão sórdidos. Era pura, autora. Toda essência e toda origem. Aquilo que o ser humano não é capaz de ser. A musa inerente e eterna da arte.

Voltei a pintar. Por ela. Com ela. Para ela. Mas já não reproduzia mais os traços lineares nem sobrepunha os tons coerentes de antigamente. Incorporei o asco ao realismo e não tinha mais mão para o impressionismo. Minha arte, tão particular, era totalmente minha agora. E dela.

Naquele momento eu já estava fundido àquela fonte inesgotável de inspiração. Sem nenhum pudor. Se com ela sempre um mar (revolto) de novidades mágicas, então, sempre com ela. E como criei naquele período! Não sabia mais da vida que acontecia do lado de fora do ateliê.

Vivíamos a arte. O tempo todo entorpecidos, comendo comida enlatada. Pintava com o óleo do atum. Sangue, esperma, urina. Gema de ovo. Qualquer liquido, toda secreção era inspiração e obra. Apesar do odor, a casa não fedia, exalava arte em todos os cômodos.

Deram minha falta. Me deram por morto, inclusive. O pessoal do escritório, como eu não voltava, mandou uma coroa de flores para a casa de minha mãe. Quase serviu para o velório dela, tamanho o choque que a velha levou! Foi nosso primeiro conflito, a família no meio.

Veio a pressão. Tomaram as chaves da minha masmorra, sim, do templo meu e dela. Já não tinha mais a liberdade de viver pela arte. Toda a explosão criativa que me proporcionava, definhava em mim sem destino, sem tela. Pintava os versos dos documentos na repartição.

Nunca mais deixei de criar, nunca mais deixei a arte e nem a deixei. A razão da existência era finalmente clara para mim. Entretanto, pelo menos, não tentaram nos separar, teriam de ser loucos! A função administrativa logo voltou a cercear minha vida. Desculpe, a nossa.

Fugimos. Em nome daquilo que nos definia: O incrível talento mútuo para a arte. Eu sem ela era ordinário. Ela sem mim, estado emocional. Pintamos o mundo, felizes e completos. Dois completos autistas, aliás. Não esperávamos nada em troca, dinheiro ou reconhecimento.

Depois de muito tempo nos acharam. Ali eu já estava velho demais para continuar fugindo. Mesmo assim intervenção. Hoje ainda pinto, quando afrouxam a camisa. Continuo com ela, como pode imaginar. E não me arrependo de um só dia em que estivemos juntos nessa vida.

3 comentários:

Ta-ti! disse...

Lindo texto!

Ta-ti! disse...

Lindo texto!

Diva disse...

Adorei o texto. Você sempre me surpreende.