segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Cromossomo Vinte e Um


“Volte aqui imediatamente e recolha essa bagunça, mocinha!” – Ela não se entrega, como de praxe, às intimidações do padrasto. Mostra a língua e sai forçando os passos, sem velocidade. Sabe que ele logo virá atrás e tentará mais uma vez ensinar-lhe a lição dos bons modos.

Recebe o esperado pontapé na bunda. Nádega esquerda. Bico do pé. Sempre tão previsível. Cai de joelhos e engatinha em fuga, forjando o pânico que a autoridade dele espera, fingindo a dor que já nem sente. Fica em silêncio, encenando aquela baboseira tirana, contando o tempo.

“Não interessa quem jogou a tinta no tapete. Aqui você é quem arruma! Não é a mais velha? Deveria ser responsável pelos pequenos.” – E nina no colo o guri autor da lambança que, assustado com os berros e confuso com a cena, só não chora pelo amparo caloroso do pai.

“Por isso ninguém te ama, sua ingrata! Por isso só te restou sua madrasta e eu! Nem seus irmãos são seus! – E é verdade. Do pai nem se lembra e da mãe lembra que, anos atrás, tinha tanto sono que nem saía da cama. Perdeu tanto peso que um dia desapareceu, literalmente.

E embora agora, reinserida mais uma vez no modelo tradicional de família (pai, mãe, irmãos), não pertence, ainda, à sua. E como gostava de dizer isso, aquele sádico maldito. Tudo bem, porque esse bastardo provisório logo partirá, de alguma forma, e será substituído.

Curioso, mas as pessoas ao seu redor simplesmente se vão. Morrem ou partem, e quem fica casa-se de novo. Sina. Já perdeu a conta de quantos pais e mães teve nesse rodízio maluco. Alguns irmãos, já adultos, construíram até a própria família, em algum lugar mais feliz.

Pensou nisso até o desfecho falido da lição, mais dois tapas no rosto, o sermão inútil e a expressão de ódio mútua. Sai em direção ao quintal e ancora-se na goiabeira plantada em homenagem ao nascimento de Lucinha, trinta e seis anos atrás. É seguro na goiabeira da mãe.

Não por trazer memórias de um passado mais alegre, não sente falta de passado algum. Lucinha vive apenas os prazeres do despertar e entrega todas as suas frustrações diárias aos sonhos, na hora de dormir. No dia seguinte é mulher renovada e livre de culpas e pecados.

E dos pequenos prazeres, gosta de brincar no sol, com suas bonecas, perto da goiabeira. Às vezes prefere a paquera eletrônica com os jovens galãs da TV. A fascina a programação juvenil. Passa o dia entre criança inocente e adolescente hormonal. Os dias bons.

Não gosta de como é tratada fatidicamente pelos padrastos e madrastas. Se não com arrogância e violência, apenas indiferença. Disfarça as próprias limitações e ignora o desprezo humano à sua existência. Do contrário, seria um estorvo. Apenas ser quem é. Os dias ruins.

“Menina, sua maldita, venha já aqui e acode seu pai! O que você pôs nesse frango sua assassina?” – E lá se vai mais um padrasto. Entende que terá de proteger o rosto das primeiras pancadas, as mais agressivas. E não sabe por que, não tinha nada de errado com o frango...

O dia seguinte e todo o episódio do frango foi parar nos confins do subconsciente. Lucinha, feliz, penteia e entretém suas amigas sintéticas. É só as que tem. Em breve um novo homem para chamar de pai. Outro ser qualquer para chamar-lhe a atenção, impaciente e bruto.

E leva, leve, dia por dia, um de cada vez, a difícil sina de não caber em coração nenhum. Descobrindo a felicidade das pequenezas, à sombra da goiabeira. Protegida inconscientemente pela sólida carapaça de um cromossomo vinte e um extra.

2 comentários:

Eron disse...

Cara, acho que esse texto foi demais pra minha inteligência. Mas sempre muito bem escrito. Teu estilo está cada vez mais consolidado.

Diva disse...

Muito bom! Ótima narrativa, que cria um certo suspense, com final sempre inesperado, seu estilo!