terça-feira, 31 de agosto de 2010

Reinventando a Solidão


Martha não era uma mulher feliz. Nem de longe, como são as mulheres felizes da TV. Abandonada no mundo, passava muito tempo na companhia do aparelho a cores vinte e uma polegadas, comprado na loja pelo falecido marido, quinze anos atrás.

Não tinha ou não transmitia muitas emoções, mas, as que tinha e transmitia, eram compartilhadas unilateralmente entre as damas e os galãs das novelas das oito. Um hábito anestesiante, fortalecido pelos anos. Havia um estranho prazer nesse ritual morfínico.

Martha, quando saiu de Sapporo no Japão, aos quatorze anos e sozinha, fora arremessada para fora da ilha na esperança de uma vida melhor, longe dos campos de cevada. Acabou em uma fazenda, no interior do estado, onde se concentrava a maior comunidade nissei do país.

Aos quinze anos, novamente camponesa, acomodou-se submissa sob os braços do marido, vinte e seis anos mais vivido. Sobreviveu em dissonância com a vida por indiferentes vinte e cinco anos. Duas filhas crescidas e um velho enfermo em casa, que logo veio a falecer.

Pouco tempo se passou para se dar conta que navegava sozinha naquele oceano insípido de ilhas flutuantes. A filha mais nova migrara por estudo à capital do estado e a mais velha, ainda mais ousada, foi atrás das origens e de dinheiro, no Japão. Martha ficou, quase desamparada.

A casa grande, os ecos nos quartos vazios, os corredores largos. Tudo era imensamente oco na vida de Martha. Não havia aconchego ou algo que a abraçasse. Exceto pela TV. Sobrara apenas a TV nos confins do interior do estado e dela mesma.

E o efeito dopante da programação naquele cubo transcendental, adormecera na inocente nissei de cinquenta e poucos anos o calor dos sentimentos. As dores e alegrias da vida. Martha passeava apócrifa pelos sentimentos sintéticos da ficção, nunca os próprios.

Mas, felizmente, não foi assim até o fim dos dias, nem podia, não com a doce Martha. Ou essa história jamais teria existido!

Em um desses dias como qualquer outro (e qualquer dia era como qualquer outro), foi-se em um piscar de olhos a TV. Apagou a programação caprichosamente durante um intervalo comercial e despediu-se em fumaça preta e fedida: “Era sua alma!”, pensou entristecida.

Ineditamente sóbria no mundo real, não sabia lidar consigo e constrangeu-se no silêncio. Pigarreou. Insistiu nos primeiros socorros do controle remoto, mas, não houve massagem cardíaca ou transplante de pilhas que ressuscitasse a defunta. Aceitou dois dias depois.

Andou pela casa e assoprou a vitrola. Já nem funcionava mais. Folheou Moby Dick e outros clássicos dispostos na estante do escritório do marido. Mirou as fotos da parede no corredor. Percebeu o quanto as meninas cresceram. Não lembrava o rosto delas adultas. Fazia tempo.

Não tinha plantas, a pintura rachada e as infiltrações na parede eram o sinal mais claro do abandono. Do lado de fora, algumas ervas daninha sustentavam o universo paralelo da velha Martha. No fundo, ainda era a menininha de Sapporo, mas tinha passado tempo demais.

Por descobrir sentimentos atrofiados, guardados no íntimo mais íntimo, Martha diagnosticou-se depressiva e, mesmo nunca tendo pensado em interromper a vida, despediu-se naquela noite, com um bilhete na cabeceira da cama: “Adeus aos que ficam, nada deixo para trás...”

Na manhã seguinte, na abertura lenta dos olhos, descobriu-se viva como no dia anterior, nem mais, nem menos. Notou o papel no criado mudo, intacto. Amassou-o e arremessou ao além. Cumpriu as rotinas do dia com a inércia costumeira.

Nas primeiras horas da noite reconfortou-se empunhando papel e lápis: “Adeus aos que ficam, nada deixo para trás...” – Mas não havia um plano, na verdade. Nenhum estimulante à morte que favorecesse a despedida. Era mais um desejo de dormir e nunca mais acordar.

O ritual nefasto repetiu semanas, mas todo santo dia o resultado era o mesmo. O pé da cama já não passava de um amontoado de bolinhas de papel amassado. Até que em uma frustrada manhã de vida, algo mudou e Martha, pela primeira vez na vida, estava perplexa.

Bem abaixo do recado costumeiro: “Adeus aos que ficam, nada deixo para trás...” - Um caloroso: “Não se vá!”, arrepiou cada pelo do corpo franzino e pálido da solitária senhora. O lápis, caído equivocadamente no chão, denunciava uma nova presença.

A primeira demonstração de afeto em muitos anos tinha um tom todo sobrenatural e, mesmo assim, aqueceu suas bochechas e coração. Decidiu dialogar com a presença espiritual e, naquela noite seguinte, sem muito argumento, desdenhou: “Vou sim...”

“Por favor, fique, gosto tanto de você!” – Amanheceu o bilhete apaixonado. Martha pensou ser o marido, idealizou a figura dos pais. Não soube dizer qual o preciso espectro que estava ali, zelando por ela e, mais uma vez, arriscou: “Não fico, quero estar onde você está...”

“Mas você está onde eu estou, se for, ficaremos longe, muito longe” – É certo que não podia ser o marido, tampouco os pais, distantes quase uma encarnação. Não sobrava alternativas. As filhas, ocupadas em se estabelecer, não teriam tempo e a TV, pobrezinha, não seria capaz.

Trancou o quarto e desafiou a entidade escondendo o instrumento de comunicação entre os mundos no interior da roupa de baixo. Para alcançar o lápis, teria que remexer seu corpo e, assim, a acordaria. Antes da traquinagem, escreveu: “Pois para longe quero ir, adeus...”

Surpreendentemente na manhã seguinte, lá estava o lápis, ao lado do papel, na cabeceira da cama, culpado pelos dizeres: “Então este será o dia mais triste das nossas vidas...” – Martha já havia desistido da empreitada moribunda há muito tempo quando tinha escrito esse adeus, mas, por muito tempo ainda brincou de massagear o ego.

Levou mais algumas semanas até que entendesse estar dialogando consigo todas as noites. E quando entendeu, aproveitou para compreender o amor em si, desafiando a solidão até o fim dos dias. Pintou a casa, cultivou plantas e deu vida à própria vida. Feliz, enfim, da vida.

Comprava seus vinhos, bordava seus bordados, passeava entre os roseirais, estampando um sorriso vitorioso. E jamais, em qualquer outra ocasião, passou perto de uma TV, tamanha era a paixão e satisfação que sentia em ser quem era.

2 comentários:

Slope disse...

Gostei muito desse, comentários via email...

Má! disse...

Belo!

Incluindo a imagem! rs