terça-feira, 22 de junho de 2010

Bom dia, Saramago


Bom dia foi o que ouviu o recém-transmutado Saramago ao abrir os olhos naquela sala branca e meio enfumaçada. José de Sousa Saramago é você, certo? – Perguntou serena a mesma voz sem corpo que ofereceu o bom dia. O tom de perplexidade que tomava o escritor permitiu apenas que devolvesse um aceno positivo, em câmera lenta e sem direção.

O que faço eu aqui? É isso o céu? – Disse, após um breve instante de silêncio, quase desacreditado das próprias crenças, tão encalacradas na carcaça em vida. Estávamos esperando por você há algum tempo! E não, isso não é o céu, você deveria saber. – Respondeu desconfiada a voz.

O que faz aqui, você me pergunta! – Introduzia a voz sem corpo. Aqui, quem chega vem para alimentar um espírito debilitado. O seu, aliás, estava há muito prometido. – Concluiu categórica a voz. E qual debilidade esse espírito deseja que eu supra? – Não se preocupe, o anseio nosso era apenas por você mesmo, e tudo o que você representa.

Saramago, ainda confuso com o destino que sua alma atingira, olhava para os lados e sentia a claustrofóbica sensação da enclausura. Mas que lugar é esse, afinal? Nunca estive aqui antes! – Sim, você nunca esteve aqui antes, mas acostume-se porque essa será sua morada por algum tempo. – A voz, aqui, não pretendia intimidá-lo.

Pois tome forma, voz! Não suporto esse desaforo de estar a falar com o além! – Exaltou-se pela primeira vez. – Não tomo forma, pois,não tenho forma. Sou de não ver e, aos olhos, não sou. – Rebateu enigmática a voz.

O silêncio tomou mais uma vez a sala branca. Saramago continuava a mirar o horizonte infinito das quatro direções e andava em círculos, inquieto. Brincava com os dedos, colados à perna e suspirava impaciente. É sempre tão mudo aqui? – Perguntou irrompendo a ruidosa quietude. Sim! – Respondeu, sem maiores explicações.

E eu posso me sentar? – Não que estivesse cansado, mas, bastante entendiado. Mas você não está de pé. – disse a voz. E como não? – Surpreendeu-se. Suas pernas doem? – Não! – Dói a coluna? – Também não! – Vê o chão, ou paredes? – É, tens razão. – Ainda acha que precisa estar sentado? Eu digo, da sensação de estar sentado? – Tanto faz!

Mas fico eu aqui, a fazer nada? – Desafiou Saramago. Já estamos fazendo. – Rebateu compaixonada a voz. E o que “estamos” fazendo? – Ironizou. Olhe para si e me diga o que vê. Estou a ver um velho confuso – Embora desconfiasse de rugas menos expressivas no alto da testa.

Saiba que, desde o instante em que você chegou, tudo o que fizemos foi conhecê-lo. Já estivemos com Caim e o Elefante, descobrimos suas Pequenas Memórias e nos encantamos com a Ilha Desconhecida. Nesse instante há um cruzamento entre a Lucidez e a Cegueira acontecendo. Não à toa a sala branca.

Saramago ainda resistia em admitir, mas, seus pulmões inflavam mais e mais com o ar puro. A pele evaporava pintas e drenava rugas, uma a uma, visivelmente. Consultamos o Evangelho de Jesus Cristo e você está certo. Passeamos pela Jangada de Pedra... – Continuava a voz.

O escritor já não resistia mais. Percebendo a concepção de mais uma obra, fluindo na velocidade do seu rejuvenescimento, aspirou-se Button e sorriu entusiasmado ao branco pueril da sala. E o que mais? – Perguntou.

Acompanhava atento à própria retrospectiva, como se lhe fosse inédita e sentia, com o calor da juventude, as mudanças do corpo. Pois, por fim, seja bem-vindo à Terra do Pecado, jovem Saramago. – Finalizou a voz ao escritor que tinha, agora, vinte e cinco anos.

No minuto seguinte, Saramago se encontrava com menos de vinte anos, depois quinze, então dez, oito, cinco, dois e então, frágil e recém-nascido, chorou por muito tempo, embolado na roupa larga que sobrava no seu corpo. Depois ajeitou-se na trouxa e dormiu angelicalmente. Foi aí que emendou, satisfeita, a voz da minha consciência: Boa noite Saramago! – E a sala escureceu.

3 comentários:

Christian Camilo disse...

muito bom Fabiano!
abraço
Christian

Julia Bertino disse...

Liiiinnndooo!! de uma sensibilidade ímpar! homenagem honrosa a um escritor fabuloso! realmente, uma perda sem tamanho...(Ju)

Anônimo disse...

E só para você saber: eu li naquele mesmo dia. Só não escrevi.
Gostei, viu?
Beijos.