segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O Mundo Conspira


Despacharam-no para Buenos Aires em um congresso internacional de antropologia contemporânea. Aldo, nunca na vida imaginou participar de um evento desses como palestrante. Poucos amigos entendiam o absurdo do convite, mas, tudo pago, embarcou.

Tinha acabado de lançar um livro de ensaios (e ensaiava algum reconhecimento). Talvez por isso (e por alguma maluquice desses intelectuais acadêmicos) pensavam que entendia da coisa do “homem”. Mas Aldo escrevia do crânio para fora e sequer sabia que diabos era um ensaio!

Mesmo assim, pousou entre os portenhos e foi logo atrás de algumas taças de vinho. Não relatou aos colegas de discurso mas, sua visita lá tinha uma só uva, ou melhor, motivo. Hotel cinco estrelas, gente jovem e velha, gente entendida e ele no meio, bêbado feito uma vaca.

Palestraria no sexto dia do congresso, o sétimo de estadia. Enquanto isso bebia. O julgavam recluso, enigmático, sombrio e interessante. E ele, ébrio que só, conhecia-se bem. Ébrio, e só! Saia do quarto para comer, beber e caminhava pelo centro. Voltava de madrugada.

Enquanto isso os organizadores diziam: “Vejam como ele passa ignorando todos à sua volta. Há algo de muito intrigante nesse homem e creio que sua palestra vai ser histórica!” – E com razão Aldo os Ignorava rudemente, ocupado em seu tour alcoólico. Mas era só isso...

Os dias foram passando e, entre uma garrafa e outra, assistia a palestras da tarde, para familiarizar-se com o vocabulário. A verdade é que não tinha preparado nem uma linha e, ouvi-los tão discursivos deveria assusta-lo, se não o acalmasse tanto, o amortecimento do álcool.

Na noite do quinto dia, maturado e fermentado, decidiu se despedir das uvas numa grande orgia de Cabernets, Merlots, Malbecs e Syrahs. Assim que o sol se dissipou no horizonte, foi à adega do Martin (um novo e bom amigo) e recrutou quatro garrafas dessas para o seu quarto.

Viu o sol invadir a janela, na manhã seguinte, no meio da última garrafa. Tivera uma noite muito produtiva, onde escreveu muito (talvez mais dois, desses ensaios) e constatou em definitivo o tino zero para a compreensão dos bouquets e taninos do vinho. Fraude!

Em algumas horas faria a palestra e dormir, a essa altura, só pioraria seu estado. Tomou um banho frio e desceu ao lobby do hotel. Cabeça latejando, boca amarrada e um mau humor familiar, já de outros carnavais. Vestiu-se sem elegância e colocou seus óculos escuros.

Fazia um dia muito quente e claro, e sua retina não suportaria desnuda o excesso de luz. Sentou numa poltrona do bar, no canto mais escuro e, para evitar interações indevidas, escondeu-se atrás de um Clarin. Em dois minutos, dormia e roncava, envolvido no jornal.

Despertou chacoalhado uns trinta minutos antes da palestra, três horas depois da entrega, na poltrona. Estavam desesperados porque não o encontraram antes e não sabiam como iria querer as coisas na sala de conferência. Pediu apenas orientação para o caminho.

Cruzou as centenas de cabeças que acompanhavam seus passos e, camuflado sob os óculos, acenou com o limite da gentileza que seu estado físico permitia. Acomodou-se na cadeira central da bancada e esperou até que todos se acalmassem e calassem finalmente a boca.

Logo que o silêncio se veio, gesticulou positivamente aos colegas de banca e, sob a pressão da cabeça prestes a explodir, deram início ao evento. Um professor/doutor de Córdoba o apresentou e, em seguida, passou o microfone. Tomou-o nas mãos com um longo suspiro.

Ficou por um longuíssimo minuto quieto, pensando em por onde começar. Logo um par de vozes sussurrou, interrompendo o silêncio e, numa fração precisa de segundos mirou os dois: “Vocês! É, vocês mesmo que falam! Definam o homem!” – E arremessou o microfone.

O cidadão que o pegou, esbugalhou os olhos suplicando que não fizesse parte daquilo. E tremia muito, braço e lábios. O segundo tratou de lhe roubar a peça e a falar, desenfreado, sobre tudo o que sabia do ser humano: Comportamento, natureza, cultura, essência. Aldo riu.

Riu da vaidade humana e, enquanto o jovem vomitava trocentos pensamentos de mil e quinhentos filósofos, sociólogos, antropólogos e afins, juntou as mãos sobre a bancada e apoiou o queixo sobre elas. Como se compenetrado. E dormiu. A dor foi dando alguma trégua.

Em certo ponto foi incomodado do sono por um leve solavanco no braço e, preocupado em ter sido descoberto, abriu os olhos. O som subiu confuso. Quando percebeu, a sala se dividia em dois grupos, que se atacavam verbalmente e ferozmente. Ainda estava bêbado. Ou sonhava!

As pessoas se exaltavam a batiam na mesa. Gritavam umas com as outras e, mesmo a banca, havia perdido a compostura. Já tinham tirado seus paletós, afrouxado as gravatas e entrado na balbúrdia. Aldo percebeu sua irrelevância ali e retomou a confortável posição. E aos sonhos.

Toda a gritaria foi novamente minguando e, mais uma vez, estava em seu paraíso, longe daquele congresso, da dor de cabeça e de tantos desconhecidos intelectuais. Um interminável oceano de vinho tinto e ele nadava, tritão, a caminho de casa.

Pouco depois, foi despertado pela segunda vez e, sob um silêncio absoluto, tinha o microfone à frente. Cochicharam em seu ouvido: “E então? Querem saber o que acha do que acabamos de dizer”. Soltou as mãos, olhou para os lados e pegou o microfone com displicência.

“Eu? Acho que é exatamente isso... E vocês, não?” – Soltou-o na mesa enquanto ia em direção à saída, absolutamente aquém daquela discussão. As pessoas caladas se olhavam confusas até que, finalmente, uma salva apoteótica de aplausos invadiu a sala assinando o veredito.

Aldo regressou com status de celebridade e as vendas do seu livro dispararam. A editora aprovou o resultado e logo o enfiou em outros congressos. Neste momento, está a caminho de Bordeaux, sedento da principal bebida local. Outra palestra histórica... O mundo conspira!

5 comentários:

Eliel disse...

Totalmente excelente!!!
Isso daria um excelente curta!!!

Fabiano Malta disse...

Haha, bora? Estou pronto para o papel do Aldo! Ou do Merlot do sétimo parágrafo! Sei interpretar bem um Merlot...

Guss disse...

Muito bom! Se rolar o curta posso ser o rapaz que pegou o microfone e tremia?

Fabiano Malta disse...

Hahahaha, tá ficando bom!

Fabiano Malta disse...

Ouvi que papeis decisivos foram escolhidos em ressacas homéricas... De Don Corleone a Odete Roitman!