sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O Beco da Perdição

Começou em pensamento. Discreto. Inocente. Sazonal. Ouvia por alto como era aquela região oculta da cidade, e imaginava o que o submundo escondia, madrugada adentro. Levou um pouco tempo até que virasse curiosidade. Tinha dezoito anos e total liberdade automobilística.

Na primeira noite, esperou que a cidade toda se pusesse a dormir e foi de vidros fechados, em alta velocidade, mal vendo o que se tinha para ver. Era um medo incontrolável de, por descuido, se expor a olhares familiares e prejudicar uma reputação que ainda se formava.

Esperou mais duas semanas, numa aflição sufocante, por uma abordagem que nunca aconteceu. Em alívio, estimulou-se em retornar com mais calma, numa segunda vez, ao Beco da Perdição. Mas dessa vez, ainda de vidros fechados, reduziu a marcha e fez questão de olhar.

Corpos torneados (quase todos), ousados, provocantes. Achava belo e, ao mesmo tempo, grotesco. Apetitosos pedaços de carne, expostos num leilão obscuro e anônimo. Mudo. Lançou olhares nas partes e também nos olhos, sob a recíproca lasciva que a profissão demandava.

Voltou para casa sabendo que aquela curiosidade já não era menos que uma necessidade iminente de compreender o valor daquele prazer mercantil. Tentou, por um tempo, desocupar-se desse crescente desejo. Faculdade, trabalho, relacionamentos convencionais.

Aos vinte e muitos, sobrava-lhe um buraco, alguma inconsequência qualquer, que só a juventude é capaz de permitir e perdoar. Voltou a frequentar o beco, num ritmo crescente. Aquele pensamento inicial, fugaz, era agora um objetivo. Programou-se a saciar a vontade.

Alugou um carro. Preto, de vidros filmados. Bebeu um vinho barato, toda a garrafa. Mesmo em alta embriaguez, tremia. Rodeou o beco por uma hora até que conseguisse escolher quem abordaria. Procurou um rosto, mais que um corpo, que fosse simpático, e não intimidador.

Quando encostou o carro, gostou da recepção. Um sorriso largo e confiante, como quem sabe lidar com esse tipo de situação. As palavras mal saíram da sua boca porque, também, não sabia o que deveria dizer. Num segundo, estavam ambos no carro, atracados em um drive in.

Na manhã seguinte o sorriso não disfarçava o êxtase da noite anterior. Mesmo com a clareza da relação superficial e comercial, sentia que atingira orgasmos mil vezes mais intensos que em seu relacionamento padrão, piamente adequado aos moldes conservadores da sociedade.

Entendeu, daquele dia em diante, que não abriria mão do Beco. Nunca na vida. Casou-se e estabilizou-se financeiramente. Teve seus dois filhos. Homens. Edificou a vida que lhe projetavam, sem deixar de consolidar, também, uma vida paralela. Promíscua e invisível.

Nesses dias, mantinha uma rotina semanal ao Beco. Alugara um apartamento e tinha também um carro, que só fazia esse itinerário. Não levantava nenhuma suspeita em casa ou no alto escalão do banco onde trabalhava. Nem repetia suas companhias. Era nada mais que sexo.

O vício aumentava e, gradualmente, foi tornando-se uma obsessão. As vezes tinham quatro, até cinco pessoas no carro. Já não sabia mais qual era sua vida paralela. A do Beco ou a do banco. Despertou uma curiosidade ainda mais marginal. O risco era a parte mais excitante.

Adentrou o fim do Beco, onde nunca tinha ido. A última rua, os transexuais. Já não tinha o mesmo medo da juventude e, de alguma forma, sentia falta. No flerta com o homossexual, tinha seus limites, mas, genuinamente, descobriu toques que, simplesmente, desconhecia.

Exalava sexualidade em cada um dos poros e se aprimorava quebrando tabus sociais, realizando fantasias dentro daquele apartamento. Tinha orgulho do requinte vanguardista nas suas tórridas orgias. E ainda mais orgulho do cuidado minucioso ao corpo. Exames bimestrais.

Foram quarenta e cinco anos levando duas vidas incompatíveis. Acima de qualquer suspeita e abaixo de qualquer moral. Faltava fôlego para conservar tantas aparências. Decidira que não levaria adiante. Os filhos já crescidos, a aposentadoria. Pela prostituidade do sangue, viveria!

Anunciou o divórcio e saiu de casa, sem maiores pretensões que poder dormir e acordar no apartamento da luxúria, com quem ou quens quisesse. Celebrou a liberdade em seu harém, com oito homens e dois travestis. Aos setenta anos, era já uma senhora e não devia satisfações.

4 comentários:

Anônimo disse...

Totalmente excelente...( mas dessa vez eu entendi antes mesmo de ler o final) Parabéns!! Curto muito a forma que vc escreve

Fabiano Malta disse...

Muito grato Sr(a) Anônimo. Pela leitura e pelo identificação com a forma! Meu objetivo...

Guss disse...

A parte mais foda é "Já não sabia mais qual era sua vida paralela. A do Beco ou a do banco." Muito legal mesmo.

Fabiano Malta disse...

Biiiiig Guss! Valeu meu caro, valeu msm!